[O Francisco tem 19 anos, estuda nos Países Baixos e está em viagem com um passe de Interrail que o vai levar por esta Europa fora e este é o seu diário de viagem publicado no SAPO24]
Dia 14 (22 de julho) Dica #16 para futuros viajantes: muita atenção ao fazer as reservas de alojamento e comboios. Amelia e eu fizemos todas as reservas um pouco em cima da hora, mas convém fazê-lo com pelo menos um ou dois meses de antecedência (a não ser que a ideia seja ir mesmo sem planos). Isto aplica-se especialmente aos comboios de Espanha e França ou viagens Eurostar, por exemplo, onde as marcações são obrigatórias e, com frequência, esgotam depressa. No que toca a hostéis o cuidado deve ser maior nos lugares mais turísticos, sobretudo no verão. Além disso, a regra é esta: quanto mais cedo a reserva, maior o desconto.
Amelia acorda com uma mensagem da mãe, e desta vez não é a perguntar se "está viva", mas sim se tem ideia da "ideologia política dos gatos" da família
Acordamos em casa. Já habituado a hostéis, esta foi uma noite mesmo muito bem dormida (que bom acordar numa cama a sério, com almofada a sério, num quarto a sério). Amelia acorda com uma mensagem da mãe, e desta vez não é a perguntar se "está viva", mas sim se tem ideia da "ideologia política dos gatos" da família. Para mim, Milo é socialista e Pepper definitivamente anarquista ou libertário (as fotografias provam-no). Escangalhamo-nos a rir.
Na sala de jantar, Paula e Harry querem saber o que queremos para o pequeno-almoço. Como não é a primeira vez que os visito, sei muito bem a especialidade do chef e, timidamente, pergunto pelas fantásticas panquecas que comi da outra vez. Nos Países Baixos, e também na Alemanha e na Áustria, o pessoal é doido por panquecas. Partilhei casa com um alemão que comia panquecas a toda a hora, recheadas com tudo o que estivesse à mão, doce ou salgado. Harry conta que um conhecido seu passou cinco anos a comer só panquecas - com carnes, vegetais, queijos, xaropes, o que fosse. Preguiça ou eficiência?
"Just act like you’re at home", dizia-nos Harry ("ajam como se estivessem em casa"). Mas isto não é nada como estar em casa, é mil vezes melhor. A começar por estar sempre tudo limpo (bem, por agora o meu quarto também está arrumado) e a acabar em eu não ter de fazer absolutamente nada. Perguntamos, mas parece que nunca precisam da nossa ajuda.
O tempo que levo a escrever estas duas frases é o tempo de umas nuvens cinzentas cobrirem o céu. Ah, o verão nos Países Baixos!
O tempo está ótimo. O sol bate ligeiro no pátio, onde nos sentamos para tomar o pequeno-almoço. O tempo que levo a escrever estas duas frases é o tempo de umas nuvens cinzentas cobrirem o céu. Ah, o verão nos Países Baixos! Pelo menos as panquecas estão brutais, exatamente como me lembrava. Para beber, um sumo de laranja valenciana vindo do Albert Heijn (a cadeia de supermercados mais popular nos Países Baixos). Começa a chover, mas o guarda-sol protege-nos.
Atafulhados de panquecas, chega a hora de ir explorar a cidade. Vinkeveen, que já foi município, é uma vila na província de Utrecht, a uns 18 quilómetros de Amesterdão, para onde vamos. Parece que a chuva não está para durar, mas os nossos hospedeiros oferecem-se também para nos levar ao centro da cidade - e já estou a ouvir a minha mãe: "Malucos, são completamente malucos! E a Paula não gosta nada de se enfiar em confusões e trânsito, é bom que tenham agradecido". Agradecemos, mãe. Confie que agradecemos imenso.
Van Gogh tem o seu próprio museu do outro lado da praça... Falta-nos tempo para tanta visita.
Estamos agora no Museumplein, a praça onde estão muitos dos museus mais interessantes de Amesterdão. Entre tantos, vamos ver o Rijksmuseum, talvez o mais famoso da cidade, que dá um desconto de 50% a detentores do European Youth Card (em bilhetes comprados online). O Rijksmuseum existe desde o final do século XIX e expõe uma variedade de peças de arte desde o século XII aos anos 2000, com foco nos séculos XVII e XVIII, na história dos Países Baixos e em artistas como Vermeer ou Rembrandt (van Rijn). Van Gogh tem o seu próprio museu do outro lado da praça... Falta-nos tempo para tanta visita. O que vimos valeu muito a pena e recomendo talvez um pouco mais de duas horas e meia para percorrer o espaço.
Saímos pelo lado oposto do Rijksmuseum e encontramos uma área mais calma de Amesterdão que, com o sol, que já raia de novo, lhe dá um certo charme. Caminhamos ao longo de um canal e depois em busca de um lugar muito particular, "de winkel van nijntje". Nijntje, conhecida fora dos Países Baixos como Miffy, é a coelha protagonista de livros e séries infantis. Uma espécie de Hello Kitty holandesa, que ganhou fama especialmente na Ásia (Japão/Coreia do Sul) e na Europa Central. A personagem foi criada em 1955, por Dick Bruna, escritor nascido em Utrecht. Uma curiosidade "fofa": Nijntje, em holandês, é uma espécie de diminutivo da palavra "konijntje" ou "pequeno coelho".
Amelia adorava a série e não tive outro remédio senão acompanhá-la. Saímos de lá com uma Miffy de peluche e um livro da Miffy oferecido. É obviamente um universo dedicado a crianças, mas assumo que somos crianças até morrer.
Temos de voltar pelas sete e já são quase cinco. Recorremos à viagem de barco (que eu já tinha feito antes com a minha mãe) para ver a aprender mais sobre Amesterdão. É provavelmente a melhor opção para turistas, sobretudo se o tempo é pouco, e pode custar entre 14€ e 24€. Um rapaz da EcoTours convence-nos a entrar no seu barco aberto, bebida incluída e a possibilidade de falar com o capitão (que também é nosso guia): 19,5€.
Num antigo bairro judeu até à Segunda Guerra Mundial, um turista pergunta: "Então e para onde foram os judeus?". Fiquei sem palavras.
A viagem tem vários pontos caricatos. Um acontece quando passamos à frente de um bar numa casa inclinada e o guia explica que lá dentro há um aviso: "Se beber o suficiente, vai ver a casa direita". Outro é quando passamos pela feira da ladra, num antigo bairro judeu até à Segunda Guerra Mundial, e um turista pergunta: "Então e para onde foram os judeus?". Fiquei sem palavras.
Voltando atrás, há um motivo para as casas serem tortas nos bairros de Amesterdão. A cidade está construída sobre um chão composto maioritariamente por argila, onde as fundações de madeira dos edifícios vão afundando. As casas inclinam-se à medida que as fundações cedem - antes de serem substituídas, mas depois mantém-se tortas.
Tortas e estreitas. Porquê? Esta aprendi na minha primeira visita a Amesterdão: inicialmente, e durante muitos anos, os proprietários pagavam impostos com base na largura da casa, pelo que estas foram sendo construídas com a menor largura possível. Com outras consequências práticas. Por exemplo, nas escadas e corredores destas estruturas não cabem móveis como camas ou armários. A solução foi colocar no topo dos edifícios uma roldana, usada para fazer entrar os móveis pelas janelas.
Amesterdão atravessa uma crise habitacional. Já há quem viva em barcos-casa ao longo dos canais, mas os preços são proibitivos.
Mesmo assim, sem espaço para mais construção, Amesterdão atravessa uma crise habitacional. Já há quem viva em barcos-casa ao longo dos canais, mas os preços são proibitivos. Muitos políticos, incluíndo os que atualmente governam, culpam os imigrantes e estudantes internacionais pela falta de habitação e esquecem-se da praia de problemas que conduziu a esta situação, como a má gestão do setores imobiliário e da construção civil.
Desde a crise mundial de 2008, as coisas apenas pioraram, o preço dos materiais de construção subiu e as licenças são difíceis de conseguir. O mesmo se passa em Maastricht, onde vivo, e no resto de quase todo o país. Em Amesterdão, o problema é exacerbado pelo turismo de massas.
Algo que não tinha reparado antes é a forma como o antigo muro da cidade está incorporado na paisagem. Torres, relógios, tudo construído em cima do antigo muro. Passar pelo bar flutuante estilo chinês (o Sea Palace) também vai ter sempre piada.
Uma nota curiosa é que há cerca de 900 mil bicicletas em Amesterdão, mais do que o número de habitantes. Os dados oficiais dizem que todos os anos mais de 15 mil são retiradas dos canais, mas também são pescados carros devido à inclinação do estacionamento. Também é comum encontrar rapazes a fazer chichi para os canais depois de uma noitada a beber cerveja. Por isso, são vários os sinais de proibição colocados nas pontes. As multas não são brincadeira.
O passeio prolonga-se e ficamos sem tempo para mais. Passamos pelo centro e apanhamos o metro para o ponto de encontro com Paula e Harry.
À medida que fazemos este percurso lembro-me porque é que não tinha gostado tanto de Amesterdão da outra vez. Não é o Red Light District que me incomoda, é o ambiente.
A nossa última paragem é num Albert Heijn perto da Dam Square, onde compramos alguns doces para Amelia: stroopwafels, duas waffles finas e crocantes recheadas com caramelo (claro, a Paula também já tinha preparado algumas para nós levarmos), chocolate da Tony’s Chocolonely, uma marca holandesa conhecida pela sua integridade e esforços para fazer chocolate sem recurso à escravatura (algo ainda muito comum nesta indústria), gevulde koekjes, bolachas com um recheio à base de amêndoa, e snacks diversos, como frikandelbroodje (folhado de salsicha) e bitterballen (croquetes redondos), tudo em versões vegetarianas para Amelia.
Vamos para o metro mais próximo, em Westermarkt, e somos obrigados a passar pelo Red Light District. À medida que fazemos este percurso lembro-me porque é que não tinha gostado tanto de Amesterdão da outra vez. Não é o Red Light District que me incomoda, é o ambiente. É demais, tem pouco verde e muito barulho, muitas armadilhas turísticas, pouca autenticidade.
Seguimos de metro até à Bijlmer Arena, o estádio do Ajax, o nosso ponto de encontro com Paula e Harry. Somos recebidos calorosamente, como se tivéssemos acabado de nos encontrar pela primeira vez, e vamos para casa. Descansamos enquanto o jantar é preparado: massa com tomate, courgette, cogumelos e falafel. Para os carnívoros, bife e salsichas. Parecem contentes por nos ter cá, ainda bem. Conversamos, conversamos - eu e Harry sempre à volta de uma copo de vinho. O sono começa a atacar.
Antes, planeamos o dia de amanhã. De novo Amesterdão? Não, é um pesadelo em termos logísticos e queremos chegar a Maastricht ainda antes de anoitecer - Amelia quer conhecer a cidade, claro. Depois de amanhã despeço-me dela, cada um regressa ao ponto de partida. Paula tem de estar em Utrecht à tarde e decidimos que é de lá que seguimos caminho. Antes de dormir ainda tenho tempo de fazer a barba, assim estarei mais fresco para o último dia de viagem. Caramba, o tempo voa.
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