Uma porta arrombada pela rusga, as janelas da escola com grades que lembram a prisão, o telefone à espera da chamada do pai, o copo vazio na mesa à refeição, as prendas do Dia do Pai que ficaram por dar, o saco de roupa para levar com o número do recluso, a fotografia do pai com que chorava todas as noites.
Estas são algumas das fotografias presentes na exposição “Reclus@ 008″, que vai estar patente até dia 19 no Teatro da Cerca de São Bernardo (TCSB), em Coimbra, e que é inaugurada na quinta-feira, no mesmo dia em que é promovido um webinar sobre o tema.
A exposição é apenas a parte mais visível do Núcleo de Intervenção Infanto-Juvenil (NIIJ), criado pelo Projeto Trampolim (financiado pelo Programa Escolhas) para dar eco aos problemas das crianças com pais presos, na sua zona de influência – Planalto do Ingote e Centro de Estágio Habitacional do Bolão, na periferia de Coimbra.
São oito crianças e jovens que tiveram ou têm o pai ou a mãe presos e que, a partir de imagens tiradas com máquinas fotográficas descartáveis, retratam a ausência, a saudade, mas também um sistema pouco adaptado aos seus direitos.
A acompanhar as fotografias estão também testemunhos das oito crianças e jovens que participaram no projeto.
“Quando tinha nove anos um guarda quis algemar-me, mas o meu pai não deixou e a seguir os polícias bateram nele”, “O trajeto de casa à prisão é distante e dispendioso”, “A última rusga que presenciei foi muito violenta” e “Era bom que não destruíssem as nossas coisas” são alguns dos testemunhos.
Para ‘Maria’ (nome fictício), de 20 anos, o Estado devia “ser mais humano”.
“As crianças precisam dos pais, mas os pais também precisam das crianças”, conta a jovem estudante no ensino superior que viu o pai ser preso quando tinha 17 anos.
Não vê o pai, que está em Espanha, há um ano. Ao fim de semana, aguarda ansiosamente pela chamada que não durará mais de cinco minutos, tempo curto para dizer tudo o que se tem passado.
Na cabeça, imagina a conversa e estrutura tudo o que tem para lhe dizer, mas quando chega a hora do telefonema os minutos são poucos.
“Parece sempre pouco tempo. Há tanta coisa que queremos dizer e depois acaba por não sair nada. Às vezes, fazemos as conversas na nossa cabeça e quando vamos ligar é ‘Olá. Como estás? Adeus e até amanhã'”, conta à agência Lusa a jovem que participou no projeto.
Ao início, quando o pai foi preso, nem chamadas recebia. Falavam por carta, que não tinha telefone em casa.
Em 2018, viu o pai ser preso em janeiro e a mãe morrer, por paragem cardiorrespiratória, em julho.
Em agosto, fez 18 anos, sem pai nem mãe em casa. “Foi crescer às três pancadas, sem opção”, recorda.
“Era tanta coisa a passar-se na minha vida e nem podia ouvir a voz do meu pai. Eu precisava de ouvir o meu pai. Com 18 anos, temos perguntas sobre o que fazer e não tinha resposta imediata. Tinha que imaginar que ele estava ao meu lado a dizer: ‘Vai correr tudo bem'”, conta.
Conhecendo o sistema prisional português e o espanhol, Maria sublinha que em Espanha, das duas vezes que viu o pai, pôde estar numa sala só com ele, enquanto em Portugal “é tudo ao molho e fé em Deus – uma hora com toda a gente numa sala”.
Também ‘Joana’ (nome fictício), que teve o padrasto e o irmão presos, queixa-se do pouco tempo e da falta de privacidade nas prisões portuguesas.
“O espaço não nos deixa ter outro tipo de conversas. Eu não contava ao meu irmão o que se estava a passar cá fora, até pelo barulho que não nos deixa ter uma conversa e depois o tempo é muito curto”, salientou.
O projeto do Trampolim levou as duas jovens a falarem sobre o assunto, a refletirem sobre a sua experiência, mas também a ouvirem outros com “histórias parecidas”.
“É bom sabermos que não somos só nós a passar por isto”, realça Joana.
O núcleo foi criado em 2019 depois de o Trampolim ter identificado este problema após uma série de rusgas realizadas no Planalto do Ingote, uns anos antes.
Ao abrigo do projeto, foram sinalizadas 49 crianças e jovens com pais que estiveram ou ainda estão presos entre 2018 e o presente ano, no Planalto do Ingote e no Centro de Estágio Habitacional do Bolão.
A coordenadora do Trampolim, Carla Mendes, viu-se confrontada com uma realidade pouco estudada e pouco conhecida, não se sabendo sequer quantas crianças no país têm pai ou mãe presos.
“O trabalho existe, mas é de forma dispersa. Aqui, se há uma rusga e se o pai vai preso, a professora fica alerta, mas há relatos de professores que dizem que a criança chegou, levantou a mesa e partiu tudo e depois vemos que teve uma rusga às 06:00 e os dois pais estavam presos e ele foi para a escola na mesma e a escola não sabia”, frisou.
Nesse sentido, para além do trabalho com as crianças, o núcleo realizou um ‘focus group’ com profissionais de diferentes áreas para abordar a temática, desde juízes, polícias ou guardas prisionais, tendo criado um relatório com propostas para um sistema mais humano.
Uma carrinha equipada para receber crianças aquando das rusgas, articulação entre instituições após as detenções, criação de salas nas prisões adequadas a receber crianças e jovens, e aumento do período das visitas e dos telefonemas são algumas dessas propostas.
“As crianças sentem muito a falta de tempo na visita e até o tipo de espaço na visita”, notou Carla Mendes, salientando ainda a importância de o sistema poder ser mais flexível nos dias ou horas de visita.
“Um dos miúdos do projeto, com 12 anos, tem mãe e pai presos. Ele tinha que escolher – o dia de visita era o mesmo – se ia visitar a mãe ou o pai. Como o pai estava mais perto, face a questões financeiras, ele ia ver mais o pai. Esteve dois ou três meses sem ver a mãe”, apontou.
Para a coordenadora do Trampolim, não é “justificável” pôr crianças naquela posição, considerando que uma adaptação do sistema que permita um maior contacto entre filhos e pais pode também ter um papel importante para “quebrar o ciclo intergeracional” de reclusão, em que há casos de “avô, pai e filho presos”.
“Já me aconteceu estar com ex-reclusos que dizem que não querem que o filho vá lá para dentro. Se tivessem mais tempo para partilhar isso com o filho seria importante, mas não há. Quando chegam [à prisão para a visita] é: ‘Estás bonito, estás bem, tens comido?’ e acabou”, frisou.
O núcleo pretende agora dar um outro passo para mudar efetivamente o sistema, tendo-se candidato ao programa Cidadãos Ativos para avançar com um projeto-piloto em Coimbra em torno da temática.
“Queremos aplicar uma metodologia de intervenção para ao fim de 30 meses ver o que funciona”, explicou, salientando que, apesar de o sistema não estar adaptado, há sinais de abertura, como o facto de a própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais estar envolvida no projeto como parceira.
“O nosso objetivo é a mudança. Ainda falta, mas estamos no bom caminho”, realçou.
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