“Se queres que um livro seja bom, tens de o pôr em risco de ser um falhanço”. Quem o disse foi Nathan Hill, à conversa com Rita Fazenda no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada. O escritor norte-americano falava do processo de escrita, de construção de uma história — que, no caso do seu Nix - Fantasmas do Passado, levou dez anos a fazer.
Para ser, há que começar. E o “Arquipélago de Escritores”, em Ponta Delgada, teve na sua primeira edição um começo cheio: cheio de autores, cheio de discussões — e muitas vezes até cheio de público.
“Estamos a semear”, diz Nuno Costa Santos, o curador do encontro literário, ao SAPO24. “Se isto tiver sequência e conseguir arranjar uma identidade, aí sim podemos marcar o campeonato dos encontros em Portugal e se calhar também fora — por causa deste cheirinho internacional com três escritores americanos, o que tem a ver com uma relação especial que os Açores têm com os Estados Unidos, por causa da emigração”.
A Nathan Hill juntaram-se Diana Marcum, Anthony Marra e a brasileira Lélia Nunes, no leque de autores internacionais. David Machado, Gonçalo M. Tavares, Isabel Lucas, João de Melo, João Tordo, Joel Neto, Leonor Sampaio da Silva, Onésimo Teotónio Almeida, Pedro Mexia, Sandro William Junqueira, Urbano Bettencourt, Vamberto Freitas e Vasco Rosa foram alguns dos autores regionais e nacionais anunciados.
Para aos escritores, “não houve renitência” em vir para o meio do Atlântico, conta Nuno Costa Santos. “Às vezes há dificuldades de agenda — como haveria para outros encontros. A dificuldade é coordenar as agendas com as disponibilidades de ocorrência dos próprios festivais”. “É um bocadinho difícil por causa deste lado, mas acho que as pessoas gostam de vir aos Açores e acho que é um território em si bastante literário”.
O arquipélago é literatura. Ponta Delgada também. “Há muitas apresentações de autores de cá. A livraria Solmar, durante anos, foi trazendo muitos escritores, sempre favoreceu esta ideia de escritores continentais virem cá — e até estrangeiros, entre eles o Enrique Vila-Matas, que criou amizade com os autores”.
“Aqui sempre se valorizou muito a literatura”, diz o curador. “Séculos de isolamento criaram também a necessidade de as pessoas se exprimirem, no caso literariamente — e não estou só a falar de autores publicados em editoras locais com um certa dimensão ou nacionais; tenho em casa muitas edições de autor de poetas que viveram nos anos 1940, 50, 60 cá e que eu acho extraordinários”, diz.
“Para mim é precioso. Acho que esses autores também devem ser acarinhados — e isso tem a ver com uma tradição, com uma pulsão que é consagrada neste encontro e tem sido consagrada noutros encontros que também existem cá”.
Aos livros e escritores juntou-se também a música de Medeiros/Lucas, que fecharam a noite de sábado com um concerto místico no Teatro Micaelense.
“Este encontro tem esta característica mais multidisciplinar e aproxima-se realmente do conceito de festival. Agora vamos estar à procura de uma identidade própria, que espero que seja semeada já”, explica Nuno Costa Santos.
“Acho que é preciso estarmos à altura também do que foi feito antes e não cair na tentação de não fazer nada. Como o Pedro Mexia disse, há aqui [nos Açores] uma identidade própria, que foi assinalada pelo Vitorino Nemésio, com o termo "açorianidade", que foi um termo criado de uma forma mais ou menos intuitiva, como eram muitas coisas em Vitorino Nemésio, mas acho que caracteriza muito um sentimento que existe, de forma diversa, porque as ilhas são diferentes de umas para as outras, aqui nos Açores”.
Diferenças que salientam as semelhanças. O isolamento do território que vai ter com a solidão do escritor. O sofrimento dum povo insular, que vai ao encontro das dores do escritor. Os paralelismos encontram-se ao passar nas ruas de Ponta Delgada, entre placas que assinalam as casas de Almeida Garrett, o suicídio de Antero de Quental.
“Se escreveres sobre a morte e não chorares enquanto o escreves, não te estás a responsabilizar por isso”, disse Nathan Hill. Apesar da fantasia criadora, da criatividade surreal, escrever é muitas vezes sinónimo de viver, ainda que, como explica o açoriano Joel Neto, seja possível “escrever sobre mundos fabulosos num quarto com quatro paredes brancas, numa secretária branca, num computador Macintosh branco”.
Dores ou volúpias; reais ou imaginadas, as histórias (dos escritores, mas também dos livros) estiveram em destaque no meio do Atlântico, num cruzamento de caminhos, estreias e regressos — que no final são a matéria de se fazem as narrativas.
“Quando regressamos compreendemos melhor o lugar de onde partimos”, disse a autora Clara Macedo Cabral, que vive no Reino Unido desde 2005. Porque “é preciso sair da ilha para ver a ilha” — escreveu Saramago, no ‘Conto da Ilha Desconhecida’ —, da mesma forma que há de ser necessário ir para a ilha para ver o continente.
A primeira edição do "Arquipélago de Escritores" começou na quinta-feira e terminou este domingo, 18 de novembro. Organizado pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, o evento teve produção da agência literária StorySpell, contando com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e do Governo dos Açores, através da Secretaria Regional da Educação e Cultura.
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