Com uma canção que une o tradicional e o moderno, a Ucrânia e o mundo, os Kalush Orchestra são os grandes vencedores da edição deste ano da Eurovisão. Favoritos desde muito cedo, o grupo volta a colocar a Ucrânia na história do festival — depois de, em 2016, com a vitória de  Jamala ("1944"), se tornar o país da zona leste da Europa a ganhar o concurso por duas vezes.

"Para a Ucrânia, este é o ano mais importante de sempre na Eurovisão", assumiram os Kalush Orchestra. A vitória é interpretada em todos os sentidos, como dizia o front-man Oleh Psiuk, ainda antes da final, ao britânico The Telegraph. "[Vencer] significaria que todos os ucranianos teriam vencido. Porque a Ucrânia tem de vencer – em todos os sentidos”, antecipou.

A banda foi buscar o nome à cidade ucraniana de Kalush, de onde é natural Oleh Psiuk. Situada no sopé das montanhas dos Cárpatos, a localidade serviu de inspiração à banda, que só juntou o "Orchestra" há cerca de dois anos. Ao trio original de músicos que compõem o grupo, o rapper Oleh Psiuk, o multi-instrumentista Ihor Didenchuk (que volta a pisar o palco eurovisivo depois de, em Roterdão, ter estado com os Go_A, banda da qual também faz parte) e o dançarino Vlad Kurochka, juntou-se o flautista Vitalii Duzhyk (que toca a tradicional flauta de madeira sopilka) e outros dois vocalistas, Tymofii Muzychuk e Oleksandr Slobodianyk.

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A Ucrânia saltou para a liderança das casas de apostas dois dias após a invasão da Rússia, a 24 de fevereiro (a Rússia, essa, ficou fora desta edição, numa decisão tomada pela EBU logo a 25 de fevereiro). O favoritismo da banda, no entanto, não se encerra no contexto que o país vive atualmente, uma vez que o tema a concurso entrou no top 5  assim que o grupo foi anunciado como o representante do país na edição deste ano.

Isto porque "Stefania" não foi a primeira escolha. O tema foi aliás o segundo classificado, atrás de Alina Pash, no concurso nacional que escolhe o representante da Ucrânia na Eurovisão. Mas a 19 de fevereiro, a delegação ucraniana anunciou que Pash já não seria a representante do país, depois de ter havido protestos devido ao facto de a cantora ter atuado na Crimeia em 2015, um ano depois de a Rússia ter ocupado aquela região.

Kalush Orchestra

Quem são: Oleh Psiuk, Tymofii Muzychuk, Ihor Didenchuk, Vitalii Duzhyk, Oleksandr Slobodianyk e Vlad Kurochka

Género: rap, hip-hop, folk

Atividade: 2019 - presente

Discogragia:

  • "Hotin" (2021)
  • "Yo-yo" (EP, 2021)

Onde ouvir/seguir:

O anúncio de que os Kalush Orchestra representariam o país na Eurovisão chegou a 22 de fevereiro, dois dias antes de começar a guerra. À data, o grupo de folk-rap ucraniano estava de regresso a casa, depois de ter terminado uma tournée pela Polónia e pela Ucrânia. Foi Oleh Psiuk, o rapper que lidera a banda, que depois de ter acordado com explosões nos arredores de Kiev, conta o The Economist, ligou para o seu empresário a dar a notícia: “A guerra começou”.

No palco da Eurovisão, a banda incorporou o azul e o amarelo da sua bandeira nacional, juntamente com outros motivos decorativos que evocam tradições do país. Alguns dos membros dos Kalush Orquestra apresentaram-se com trajes tradicionais ucranianos históricos do início do século XX: Oleh, por exemplo, envergava um keptar (colete) Hutsul, com origem num grupo étnico das montanhas dos Cárpatos, e Tymofiy um traje completo com a mesma origem. O chapéu panamá cor-de rosa de Oleh, a sua imagem de marca já, encerra a estética tradicional, dando-lhe um toque mais moderno.

Mas os planos nem sempre passaram por aí. Com a guerra, a banda teve de reunir uma nova equipa, depois de terem perdido a maior parte dos técnicos e criativos, explicou o produtor Oleksii Zhembeovskyi ao The Economist. E como a Eurovisão não autoriza que sejam transmitidas quaisquer imagens políticas, não foi possível incluir imagens do conflito no cenário, o que não impediu a banda de agradecer, na primeira semifinal, por todo o apoio que tem sido dado à Ucrânia, e de pedir de ajuda para Mariupol, na final.

"Parei de pensar na Eurovisão"

Quando a guerra começou "parou tudo". "Só pensávamos em como nos mantermos vivos e em como proteger as nossas famílias. Parei de pensar na Eurovisão”, lembra Tymofiy Muzychuk ao The Economist.

Também para Oleh, a música deixou de ser uma prioridade e começou a pensar em "como é que podia ajudar o país". "Não servi no exército, nunca disparei uma arma, mas talvez possa ajudar de outra forma”, disse, em declarações à BBC, no início de abril (numa peça onde é possível ver a banda a gravar imagens em vários cenários bombardeados pelos russos). E foi assim que nasceu a De ty (Onde estás?), uma organização sem fins lucrativos, com mais de trinta pessoas, que fundou, e que tem como objetivo principal dar apoio a refugiados em questões de habitação, transporte e medicação.

Tradução para inglês de "Stefania"*

Mother Stephania Stephania mother
The field is blooming, but her hair is getting grey
Mother, sing me the lullaby
I want to hear your dear word
She was rocking me as a baby, she gave me a rhythm,
And you can‘t take willpower from me, as I got it from her
I think she knew more than King Solomon.
I‘ll always find my way home, even if all roads are destroyed
She wouldn‘t wake me up even if there was a storm outside
Or if there was a storm between her and grandma,
She trusted me over everyone else
Even when she was tired, she just kept rocking me
Lully-lully-lullaby
Mother Stephania Stephania mother
The field is blooming, but her hair is getting grey
Mother, sing me the lullaby
I want to hear your dear word
I‘m not a kid anymore, but she will always treat me like one
I‘m not a kid anymore, but she keeps worrying about me, anytime I‘m out
Mother, you are still young. If I don‘t appreciate your kindness, I‘m moving towards a dead-end
But my love for you has no end.
Mother Stephania Stephania mother
The field is blooming, but her hair is getting grey
Mother, sing me the lullaby
I want to hear your dear word

* o tema é cantado em ucraniano

Caminho contrário tomou Mikola Kycheriavyy, empresário da banda, que chegou a juntar-se ao exército. “Quando se lê a história ucraniana, percebe-se que não se pode ficar parado num momento como este”, explicou ao The Economist. Mesmo sem experiência militar, Mikola foi destacado para defender os subúrbios de Kiev. Também ele “nunca tinha segurado numa arma antes”. Mas rapidamente percebeu que dispunha de outras armas: as redes sociais — e a banda chegou a angariar mais de 30 mil euros por dia para comprar munições, coletes à prova de balas, capacetes e kits médicos, segundo a publicação antes referida.

"Stefania", a canção vencedora, foi escrita para homenagear a mãe de Oleh, que ouviu a música pela primeira vez quando foi tocada ao vivo na final nacional ucraniana do Vidbir (concurso com formato semelhante ao 'nosso' RTP Festival da Canção). Com a guerra, a letra ganhou um novo significado, principalmente o verso: “Encontro sempre o caminho de casa, mesmo que todas as estradas estejam destruídas”.

A canção, cantada em ucraniano, tem fortes influências do que se faz no panorama musical internacional, mistura diversos estilos (do rap ao hip-hop, passando pelo folclore ucraniano) e foi escrita muito antes da guerra. Depois de tudo ter começado, "[a música] assumiu um significado adicional e muitas pessoas começaram a vê-la como a mãe, a Ucrânia, no sentido de país. Tornou-se realmente próxima do coração de muitas pessoas na Ucrânia e a sua relevância aumentou”, assumiu Oleh Psiuk numa conferência de imprensa já em Turim.

“A canção é sobre a minha mãe, nem um único verso é sobre a guerra, mas para muitos ucranianos, tornou-se um símbolo desta guerra”, já tinha dito também à BBC. A percepção mudou, até para quem a escreveu: onde antes apenas se lia “mãe”, agora há quem interprete como “pátria”. “Identifico-a com a Ucrânia hoje, não apenas com a minha mãe”, contou ao canal britânico.

Nem todos rumaram a Turim

A ida para Turim, cidade que recebeu o festival da Eurovisão, só foi possível graças a uma autorização especial do governo, que declarou lei marcial depois da invasão russa, ficando assim impedidos os homens com mais de 18 anos de sair do país. Em março, a banda chegou mesmo a gravar uma atuação para ser emitida no concurso caso não conseguisse sair da Ucrânia.

E nem todos o conseguiram; Svyatoslav Hnatenko ficou para trás, "para lutar". “No primeiro dia da guerra decidi juntar-me à Defesa ucraniana. Para mim, isto [a guerra] é mais importante que a banda”, confessou à BBC. "Ele está a defender Kiev e nós estamos a representar todos os ucranianos", disse Psiuk durante um conferência de imprensa, a 5 de maio.

Antes de rumar a Turim, a banda fez uma curta tour para divulgar "Stefania" entre os eurofãs (como é, aliás, habitual com todas as representações nacionais). A promoção pré-eurovisão passou no último mês por Barcelona, Londres, Amesterdão, Telavive e Madrid. Em todas as atuações foram acompanhados em palco por um código QR, um meio para recolher donativos para organizações de apoio à crise migratória, consequência do conflito, relatam vários meios especializados.

Além das apresentações, os Kalush Orchestra aproveitaram para estar com refugiados de guerra. "Acreditamos que a nossa missão é apoiar as pessoas enquanto estamos aqui", diss Oleh, citado pela BBC. "Representando a Ucrânia neste momento difícil de guerra, quero fazer o meu melhor para ser mais um porta-voz da Ucrânia", acrescentou, depois de se apresentar para cerca de 5.000 fãs do festival em Amesterdão. Como disse o comediante Trevor Noah na apresentação dum discurso, em vídeo, do presidente Volodymyr Zelensky na cerimónia dos prémios Grammy, a 3 de abril: “Mesmo nos tempos mais sombrios, a música tem o poder de levantar o ânimo e dar esperança de um amanhã melhor”.

O que se segue à Eurovisão? "Voltaremos para casa para dar a nossa contribuição", respondeu Psiuk à agência de notícias italiana Ansa, na véspera da primeira semifinal. Que encontrem o caminho, como diz o verso de “Stefania”, “mesmo que todas as estradas estejam destruídas”.

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