Apesar da máscara, reconheci-a de imediato. Estava no alpendre da casa, no fim do caminho de acesso, com o peso sobre um pé, a outra perna em descanso, a mão esquerda a agarrar o pulso direito de modo que os dedos e o polegar formavam uma algema, num gesto característico, de que ele troçara algumas vezes, dizendo-lhe que ela parecia estar a entregar-se às autoridades. Ainda usava o cabelo comprido, apanhado ao alto, num puxo desordenado. Trazia chinelas e calções de corrida, uma T-shirt gasta de uma banda, uma viseira transparente e um par de luvas cirúrgicas azuis. Tinha os braços e as pernas suaves e bronzeados.

A casa em si não era espalhafatosa, pelo menos se comparada com algumas das mansões visíveis da estrada, mas essa modéstia era um sinal de um luxo quase inimaginável. Desde o portão, tinha conduzido cerca de um quilómetro e meio através de um bosque, seguindo um caminho de acesso que subia uma colina com vista para a cintilante massa de água de um lago. A escala da propriedade era totalmente inesperada, um mundo em miniatura que parecia espraiar-se para o horizonte em todas as direções. No centro ficava não um castelo de um magnata ou um desses edifícios ornamentais que atafulhavam essa parte do estado, mas uma casa de campo de dois pisos, telhado de duas águas e revestimento de telhas de cedro  escurecido. Por cima da porta, havia uma glicínia azul, e por baixo dela, Alice.

Rui Cardoso Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 17 de julho, uma quarta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu novo romance "As melhoras da morte", editado pela Tinta-da-China.

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Já não via Alice há vinte anos. Não tinha havido carta nem adeus. Num dia, estávamos juntos, a viver no apartamento abafado que a tia dela tinha em Londres, e no dia seguinte ela tinha partido, deixando-me a apanhar os cacos. Encontrar-me com ela após tanto tempo foi um choque físico, um impacto súbito que senti em todo o corpo. Já estava atordoado. Tirar os sacos da bagageira exigia toda a minha força e, quando descobri quem ela era, tive de parar para me recompor. Vinte sacos de papel cheios de artigos de mercearia, cada um com uma palavra de código impressa para que pudesse saber qual a encomenda a que pertencia. As palavras de código, tiradas ao acaso de um dicionário, eram um dos poucos aspetos interessantes do trabalho. Prestava-lhes sempre atenção, chegando às vezes a anotá-las. Talvez um dia viesse a criar uma obra com elas.

Tinha a expectativa de que Alice entrasse em casa. Era o que a maioria dos clientes fazia. Não queriam muita intimidade. vetor foi um dia uma palavra de código. Não podia efetivamente censurá-los. Ninguém sabia nada. Éramos governados pelo medo e pela desinformação. No entanto, não posso dizer que aquilo não me perturbava, todas essas portas rapidamente fechadas, as caras nervosas que disparavam instruções através de janelas cerradas. É difícil ser-se sempre visto como uma ameaça, isso esmaga-nos. Dei por mim a resmungar em surdina contra os clientes, articulando argumentos unilaterais. Julga que me apetece estar aqui? Mas Alice ficou. Permaneceu no alpendre, a agarrar o pulso, a observar-me. Uma parte do pacto que tinha feito comigo mesmo alguns anos antes era que, fosse o que fosse que estivesse a fazer para sobreviver, não aceitaria humilhações. Se as pessoas olhassem para mim de uma determinada maneira por eu estar a limpar retretes ou a recolher lixo, isso era um problema delas e não meu. Mas era duro ver-me pelos olhos de Alice, um homem de meia-idade com uma máscara cirúrgica suja, curvado para retirar os artigos de mercearia da bagageira de um carro amolgado, a coxear um pouco, ao dirigir-se a ela.

Pousei os primeiros sacos na soleira da porta, tentando não cruzar o olhar com o dela. Sem aviso, estava a ser puxado para uma versão de mim que julgava ter deixado para trás. Se me tivessem perguntado dez minutos antes, teria respondido que mal me recordava do tempo passado com Alice, pelo menos em pormenor, como de facto me sentia com ela, as diversas coisas que fizemos. Teria admitido que de vez em quando pensava nela, mas também teria dito — e estaria a dizer a verdade ao fazê-lo — que as minhas recordações eram ténues e não tinham qualquer matiz emocional, à exceção de um vago sentimento de embaraço. Éramos muito jovens. Nenhum de nós se tinha portado bem. Na época, a rutura tinha sido sentida como se deixasse uma cicatriz permanente, e talvez assim fosse. Por certo, deformou os meses posteriores, mesmo os anos, mas há muitas coisas que acontecem numa vida. Há tantas perdas. Alice quase já não contava. Era o que teria dito.

Comecei a recuar em direção ao carro, tentando absorver o que estava a acontecer, esta mulher viva que tinha subitamente descido sobre as minhas recordações como uma persiana. Vinte anos de mudança, de repente, a evolução dela de magricela fumadora compulsiva a senhora de um tipo qualquer de reino de conto de fadas. Tinha os joelhos a tremer. Estava

com falta de ar. Tinha uma ou talvez duas viagens mais para fazer. Mais duas hipóteses de ela me reconhecer. Tinha encomendado umas caixas de água engarrafada. Pareceram-me inusitadamente pesadas quando lhes peguei e as carreguei até ao alpendre. Cambaleei. Fiz uma careta de dor, grato por ela não poder ver a minha cara. 

Livro: "Ruína Azul"

Autor: Hari Kunzru

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 27 de junho de 2024

Preço: € 18,80

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— Jay?

Tudo o que queria era que aquele momento se desvanecesse, para me meter no carro, sair dali e tirar Alice da cabeça. Há acontecimentos fugidios que tocam a nossa vida com tanta brevidade que mais tarde pensamos se efetivamente ocorreram. invenção foi um dia uma palavra de código.

— Jay?

É claro que eu tinha mudado. Estou mais pesado do que aos vinte e cinco. A barba está a ficar branca e os olhos estão mais encovados, como calhaus que caem devagar por um poço abaixo. Fiz trabalho manual durante muitos anos, muitas vezes ao sol, e se me visse num espelho, num dia bom, ficaria com a ideia de um pedaço de madeira recolhida no mar. Cheia de nós, esfregada por areia e água, mas pelo menos suave e limpa. Sempre considerei importante estar limpo. A pior parte de encontrar Alice outra vez quase foi o saber que não tomava duche havia vários dias. Estava consciente de como cheirava, ofendido por vergonha alheia. O suor ansioso da precariedade. O fedor de uma saúde má e de comida de estação de serviço.

— Jay, és tu?

Que opção tinha? Fiz um esforço de vontade para me virar e a encarar. Tive a sensação de que o meu espírito estava a ser retirado do meu corpo com pinças, para ser estendido e exposto. Olha para mim, Alice. Uma mera membrana esfarrapada. Um pedaço sujo de ectoplasma que não separa nada de nada.

Obriguei-me a falar.

— Olá, Alice.

Assim mesmo. As duas sílabas de um nome. Os nossos amigos costumavam justapor os nossos nomes. Jayanalice. Aliceanjay. Não fui capaz de a olhar nos olhos de imediato, pois sabia que neles iria ver piedade, talvez repugnância. Quando consegui, senti uma intensidade para a qual não estava minimamente preparado. Não estava apenas a ser confrontado por ela enquanto juiz das minhas debilidades, um problema qualquer do meu passado, mas por ela, outra pessoa que existia para lá de mim, para lá da minha compreensão. Alice ficou repentinamente presente, totalmente presente, e depois excessivamente presente, desbordante, abrasadora, uma torrente, uma correnteza de estrelas. Disse outra coisa que não fui capaz de captar porque estava caído por terra, a tentar respirar. A gravilha pressionava-me desconfortavelmente a face direita. Sentia-a contra as palmas das mãos. O coração martelava-me o peito e eu observava uma paisagem que parecia, daquele ângulo, a superfície de Marte.