O típico adepto do futebol que se joga com os pés e uma bola redonda, sobretudo se for europeu, irá olhar para um evento como a Super Bowl e encará-lo com um misto de incredulidade e desdém. Mais, até, se na base do seu gosto pelo desporto-rei estiver uma identificação, mesmo que ténue, com a cultura ultra e com os valores que, grosso modo, são comuns a todos independentemente das cores que vistam ou da ideologia política que professem: a aversão à comercialização e monetização de um desporto que se diz do povo, a exaltação da honra, da lealdade e do sentido de comunidade, a apologia do esforço e da luta (se isso resultar em vitória, melhor ainda), a divinização dos mais fortes e dos mais tecnicistas.
Para esse típico adepto, isso não acontece no futebol americano em geral, muito mais técnico e matemático, e onde as comunidades não existem porque os clubes não são do povo e sim dos grandes interesses económicos que, caso queiram, podem simplesmente transferir uma equipa de uma cidade para outra sem ter que se preocupar com coisas como história ou cultura. A existência de um espetáculo de intervalo só serve para lhe dar razão: trocando por miúdos, aquela coisa a que chamam desporto é tão aborrecida que é obrigada a pôr uns tipos a cantar ali no meio só para despertar algum interesse no pessoal.
É a conversão do desporto em capital, aliada à conversão da cultura em capital: «A cultura integralmente convertida em mercadoria deve tornar-se também a mercadoria-vedeta da sociedade espetacular», escreveu Guy Debord, que nunca há-de ter gritado golo. Claro que o típico ultra, por mais que brade aos céus o seu anti-comercialismo, se irá esquecer de que não há história ou cultura que valha hoje em dia ao futebol quando este não é menos que comercial – pelo que desdenhar a Super Bowl acaba por ser só mesmo anti-americanismo primário. Mas onde é que íamos? Ah, sim, o espetáculo de intervalo...
Um filme sempre pop
Se quisermos ir mais a fundo, aquilo a que os norte-americanos chamam de half-time show existe desde sempre. Durante as primeiras décadas de existência, a Super Bowl chamava ao terreno de jogo, enquanto as equipas descansavam e planeavam novas estratégias, as bandas filarmónicas de universidades e liceus locais (além de um ou outro nome mais popular, como Ella Fitzgerald ou as Rockettes), até que as televisões se aperceberam de que poderiam desviar as atenções do grande público caso oferecessem os incentivos necessários, i.e., filmes, séries, ou espetáculos de artistas de renome que levassem os menos fanáticos pelo desporto a mudar de canal e esquecer touchdowns, punts, quarterbacks e outros termos semelhantes. Exemplo: em 1992, a Fox transmitiu um episódio gravado ao vivo da popular série de sketches “In Living Colour”, que conseguiu “roubar” milhões de telespectadores à Super Bowl, então transmitida pela CBS. Resultado: no ano seguinte, em vez de Gloria Estefan, o espetáculo de intervalo contou com... Michael Jackson.
Desde então que o entretenimento tem sido oferecido quase exclusivamente por grandes estrelas do rock e da pop. Diana Ross, Boys II Men, Stevie Wonder, Aerosmith ou U2 foram alguns dos que pisaram aquele palco até 2003, quando a controvérsia estalou: durante a sua atuação, Justin Timberlake expôs inadvertidamente um dos seios de Janet Jackson, gerando um enorme caos mediático que levou a CBS a ser multada (a cadeia de televisão conseguiria, mais tarde, ver essa dívida perdoada em tribunal), levou a cantora a ver a sua carreira indelevelmente manchada, e levou milhões de pessoas a procurar pelo vídeo com a maminha de fora por essa internet afora – inspirando o jovem Jawed Karim a criar um website conhecido como YouTube. E levou, também, ao aumento do interesse do público no half-time show – talvez porque schadenfreude seja uma palavra bonita. Nos anos seguintes, passaram pela Super Bowl nomes como Paul McCartney, Rolling Stones, Prince, Bruce Springsteen, Madonna, Beyoncé, Coldplay ou Lady Gaga – elencos de luxo, que fariam as delícias de qualquer festival de música.
Este ano, a aposta foi na prata da casa. Sendo o jogo em Los Angeles, nada faria mais sentido que ter como cabeça de cartaz Dr. Dre, o homem que, nos anos 90, colocou o som do hip-hop californiano (o funk dos Parliament aliada à retórica gangsta) nas bocas do mundo, o mesmo som que fez de Tupac Shakur herói e mártir em quantidades exatas. Enquanto produtor, o seu currículo é mais do que invejável. “Straight Outta Compton”, o pesadelo das mães suburbanas em 1988, “The Chronic”, a banda-sonora de milhões de aficionados da erva em 1992, e “Doggystyle”, o disco que fez de Snoop Dogg um rei em 1993: três discos considerados como dos melhores que o hip-hop já viu, três discos com o dedo de Dre. A seu lado, três dos seus principais discípulos: o próprio Snoop, Eminem, que deve a sua carreira a Dre, e Kendrick Lamar, que se apaixonou pelo rap quando viu Dre e Tupac a filmar o vídeo para 'California Love'. O joker deste five of a kind (só para quem gosta de póquer): Mary J. Blige, nova-iorquina que na viragem do milénio também colaborou com Dr. Dre, já depois da disputa Este-Oeste ter arrefecido.
Rap, versão limpa
«Isto já devia ter acontecido há muito», afirmou Dre numa conferência de imprensa pré-Super Bowl, na passada quinta-feira. «Hoje em dia, o hip-hop é o maior género musical do planeta. É de loucos que tenha demorado tanto tempo a sermos reconhecidos». A frase pode conter o seu quê de vitimização, mas faz sentido: o espetáculo de intervalo já contou com rappers, mas nunca foi dedicado exclusivamente ao hip-hop – ou, pelo menos, ao hip-hop que se ouve (ouvia?) nas ruas, como o de Dre o é (o foi?). Mas talvez a organização estivesse à espera do timing ideal, sendo que a última semana mostrou que não há coincidências: além de o jogo ser em Los Angeles, além de “The Chronic” cumprir em 2022 trinta anos de existência, soube-se que Snoop Dogg vai adquirir a editora Death Row, sem a qual não teríamos os discos já supracitados, e viu-se Dr. Dre disponibilizar seis canções novas, todas elas parte da banda-sonora de “GTA Online: The Contract”.
Mesmo que nenhum destes nomes tenha recebido um cachê pela sua atuação, como é apanágio da Super Bowl (a organização paga apenas algumas despesas e custos de produção), todos eles têm muito a ganhar. Em 2021, o espetáculo de intervalo oferecido por The Weeknd fez disparar os números relativos ao streaming das suas canções, e também as vendas físicas dos seus discos. Uma semana depois, a Live Nation anunciou que a sua nova digressão – entretanto adiada – havia alcançado o número redondo de 1 milhão de bilhetes vendidos. Dr. Dre, que anunciou em setembro ter terminado o seu novo álbum, tem tudo para vir a beneficiar deste espetáculo de intervalo; o mesmo com Snoop Dogg, que lançou, na passada sexta-feira, o seu 19.º álbum de estúdio, “BODR”, pela Death Row.
Porém, e apesar dos 7 milhões de dólares que desembolsou do seu próprio bolso para 15 minutos de, essencialmente, publicidade grátis à sua arte, Dr. Dre quase que não podia fazer o que quis. Horas antes do espetáculo, foi noticiado que a NFL não permitiria ao músico cantar o verso still not loving police («ainda não gosto de polícias», em tradução literal), presente em 'Still D.R.E.', um dos seus maiores êxitos. E nem os seus camaradas de palco escapariam: a Eminem seria proibido ajoelhar-se, em homenagem a Colin Kaepernick, e Snoop Dogg não poderia usar a roupa que tinha em mente, sob o pretexto de que se assemelhava demasiado à de um gangue. Nos bastidores, Dr. Dre ter-se-á insurgido contra o que chamou de «censura nojenta».
Entre Compton e Nova Iorque
Se foi a NFL a dar um passo atrás ou Dr. Dre a ignorar as indicações da liga, não se sabe. Certo é isto: após uma primeira parte com trinta minutos que se arrastou por quase hora e meia – é o que acontece quando os cronómetros param juntamente com o jogo –, e após ter sido montado o cenário – casas brancas, cadillacs, dançarinos e uma banda com um senhor na bateria, chamado Anderson Paak – eis que Dr. Dre e Snoop Dogg surgem no centro do relvado, em cima dos telhados falsos, com o segundo a envergar as cores azuis dos “seus” Crips, um dos seus principais gangues da Califórnia. O mote foi dado com 'The Next Episode', antes da primeira pequena explosão de alegria, via 'California Love'.
Diz essa canção que a Califórnia sabe como se faz uma festa. Mas o que sucedeu ao longo dos 15 minutos, mais coisa menos coisa, de intervalo não foi propriamente uma festa: foi algo real, tanto quanto algo gerado a partir do e para o entretenimento pode ser real. Nada de fogo de artifício ou luzes ofuscantes, nada de gritaria (tirando um berro poderoso de Mary J. Blige em 'Family Affair'), nada de visuais pensados para televisões com grandes polegadas. Apenas e só um conjunto de músicos a celebrar Dr. Dre, o cabecilha de uma espécie de supergrupo que, como que num DJ set, foi desfilando sucesso atrás de sucesso, banger atrás de banger.
Para um espetáculo de intervalo da Super Bowl, onde torrentes de glitter valem bem mais que a música, talvez isso não tenha servido. Mas, para mostrar ao mundo o que foi e continua a ser a cultura hip-hop californiana, chegou e sobrou – ainda que não se tenham escutado preciosidades como 'Nuthin' But A G Thang' ou 'Let Me Ride', que tão bom uso teriam dado àqueles cadillacs. Escutou-se, isso sim, e foi uma das surpresas da tarde-noite, a voz de 50 Cent, que enquanto convidado especial interpretou a canção que fez dele estrela pop, 'In Da Club'. Foi a segunda ligação da Califórnia a Nova Iorque, décadas após uma disputa que resultou na morte das maiores estrelas de ambos. Ou a terceira, se considerarmos o papel que a Roc Nation de Jay-Z teve em todo este espetáculo de intervalo.
Sempre D.R.E.
Se 'California Love' marcou presença no alinhamento também como homenagem ao falecido Tupac Shakur, a segunda metade do espetáculo foi um abraço amigo à nova geração do hip-hop, encarnada na figura de Kendrick Lamar. O rapper de Compton, que dias antes foi extremamente elogiado por Eminem («ele está no topo, no que aos liricistas diz respeito – não só de agora, mas de sempre», disse), fez-se rodear por uma espécie de seguranças Miss Mundo com faixas onde se podia ser 'Dre Day', antes de se atirar a uma 'Alright' com resquícios de 'M.A.A.D. City' no seu início. A lírica, acelerada, deixava subentendida a ideia de que Kendrick não está para se contentar com os louros que já recebeu. Ainda há muito trabalho por fazer, muita coisa a provar.
Por exemplo: Kendrick Lamar ainda não ganhou um Óscar, e Eminem conta com um no currículo – por 'Lose Yourself', que como seria de esperar fez parte do alinhamento deste espetáculo. A canção, cuja vitória nos Óscares de 2003 terá muito provavelmente levado o mainstream a aceitar definitivamente o hip-hop, foi decorada em palco por dezenas de figurantes, todos eles com hoodies semelhantes ao que Eminem utilizou em “8 Mile”. Um dos versos parece especialmente apontado a esta Super Bowl: You only get one shot. Só se tem uma oportunidade. E esta foi a primeira do hip-hop num espetáculo de intervalo. «Muita gente não queria o hip-hop em palco, mas cá estamos», afirmou Snoop Dogg dias antes. «Queremos abrir as portas a mais artistas de hip-hop», acrescentou Dr. Dre.
Porém, o maior gesto de Eminem nesta Super Bowl não foi o de interpretar 'Lose Yourself', e sim o de se ajoelhar – e ajoelhado ficar por largos momentos. Ouvido da televisão, o público presente no estádio parece ter, grosso modo, apreciado o gesto que se tornou num símbolo da luta anti-racista. Claro que não gostou tanto quanto dos primeiros acordes do piano de 'Still D.R.E.', canção que vinte anos depois ainda não perdeu qualquer força, e que foi a escolhida para terminar o espetáculo. Sem censura: Dre disse mesmo que ainda não gostava de polícias. E tudo acaba com a frase it's the D.R.E., como que dizendo que a este homem ninguém diz o que cantar, fazer ou vestir, como que dizendo que independentemente de quem ganhasse esta Super Bowl ele continuaria a ser a pessoa mais respeitada dentro daquele estádio. Para o ano haverá nova Super Bowl e novo espetáculo, e provavelmente um regresso à normalidade pop. Este ano, mesmo que este não tenha sido vistoso, foi honesto. E com isso até um ultra europeu poderá concordar.
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