São funk, são soul, são os vencedores do Festival da Canção. Em inglês e com um tema construído como uma homenagem aos "anos dourados" do evento da RTP, que escolhe o nome que representa Portugal na Eurovisão, este ano a ter lugar nos Países Baixos.
Antes de rumarem para Roterdão, o Campo Pequeno recebe este sábado os The Black Mamba, que celebraram em 2020 uma década de história, para um concerto que será uma "despedida antes da partida para um grande desafio". Em Lisboa vai ouvir-se "Love ison My Side", canção que "já não dá para sair mais" do alinhamento.
Quem falou connosco foi Tatanka, autor e intérprete da canção. O músico, que já viveu em Roterdão e agora está de regresso "pela porta grande", irá tocar numa arena onde um dia esteve para ir ver um concerto de Joss Stone. A conversa gira em torno do grande evento e das coincidências em torno da vitória, do tema e do destino (a história de "Love is on My Side" conta o percurso "cheio de sonhos" de alguém que Tatanka conheceu em Amesterdão).
Da banda, que nasceu em 2010 para tocar no Speakeasy, bar de Gil do Carmo que encerrou portas há um par de anos, fazem ainda parte Miguel Casais (bateria e, como Tatanka, parte da formação original), Pity (baixo), Marco Pombinho (guitarra) e Gui Salgueiro (piano).
Os The Black Mamba atuam na segunda meia-final do maior evento televisivo do mundo, a 20 de maio, e sobre o que dizem as casas de apostas Tatanka não está preocupado. "Isso é para corridas de cavalos", brinca.
Até porque, como lembra, "cá ganhámos numa final épica, contra todas as odds". Chegados aos minutos finais, a banda empatou com Carolina Deslandes, sendo a votação do público decisiva para a escolha do vencedor do Festival da Canção. E por falar em Carolina, Tatanka acredita que, tal como a voz de "Por um triz", os The Black Mamba quebraram barreiras, não por não levarem um tema na língua de Camões, mas porque não tiveram problemas em submeterem-se ao "escrutínio" associado ao Festival.
Falamos no Dia Mundial da Língua Portuguesa. Aproveitemos a data para desbravar um dos temas que mais tem sido abordado. Fazem história ao levar à Eurovisão, pela primeira vez, uma canção cantada inteiramente em inglês, o que não tem sido bem recebido. Por que é que assim tem sido?
Acho que não foi mal recebido. Como foi a primeira vez, acabou por se dar muita atenção a esse tema. Mas há várias maneiras de olhar para a coisa. Há quem, naturalmente, preferisse que fosse uma música em português. Porque estão habituadas a que vá [à Eurovisão] uma música em português. Acham, e na minha opinião acham-no legitimamente, que nos representaria melhor uma música cantada na nossa língua materna do que uma música cantada numa língua estrangeira. Eu respeito-o. Mas até a própria votação foi unânime, as duas músicas mais votadas [pelo público] foram em inglês. E esta foi a edição do Festival da Canção com mais votos do televoto de sempre.
"Para o ano acho que já haverá mais gente com carreiras sólidas a assumir as próprias canções. E a cantar em inglês, ou na língua que lhes apetecer"
Os 12 pontos do público foram atribuídos ao tema do NEEV, "Dancing in the Stars". Essa reação é apenas por levarmos um tema em inglês Eurovisão ou por terem sido os The Black Mamba a vencer?
Acho que é por ser a primeira vez. Certamente noutros anos havia quem preferisse que fosse um tema em inglês: 'levamos sempre um tema em português e porque é que não levamos em inglês' ou 'temos mais hipóteses de ganhar em inglês'. Acho que se deu ênfase ao tema da língua apenas por ser a primeira vez. Estamos orgulhosos por quebrar esta barreira da língua. A música é uma linguagem universal.
Vamos ter mais temas em inglês nas próximas edições do Festival da Canção?
Eu acho que sim. Quando fui convidado... O convite é feito aos compositores e são eles que escolhem os intérpretes. Como tenho uma carreira a solo, em português, a primeira coisa que pensei foi em levar um tema em português. 'Nunca ninguém ganhou em inglês. Vou em português e como Tatanka. E se ganhar em inglês?', pensei. Era uma oportunidade única para a banda, a Eurovisão tem uma força enorme. Se ganhássemos tínhamos a oportunidade de mostrar a nossa música a muito mais gente. E já está a acontecer, temos feito entrevistas deste género para o mundo inteiro: China, México, Azerbaijão... Os nossos números no Spotify dispararam na Alemanha, Reino Unido e América. Decidimos assumir o risco e levar um tema em inglês. Calhou bem, acabámos por fazer história. Esta vitória foi muito importante, mas a edição em si também foi muito importante por se quebrar estigmas e barreiras.
Da língua?
Há outra questão. A maior parte dos compositores convidados, no caso de serem intérpretes e terem uma carreira sólida, preferem não se expor ao escrutínio de uma votação. Acham que já não precisam, e acabam por dar o tema a novas vozes ou a pessoal menos conhecido do público. Este ano acabou por ser uma batalha titânica entre nós e a Carolina Deslandes, que deverá ser das artistas mais populares em Portugal. Empatámos em termos de pontos, mas acabámos por representar uma mudança em termos de paradigma. Se és um bom intérprete, canta a tua canção. Se te sentes bem a cantar, liberta-te um bocadinho dessa paranóia do escrutínio. Se lhes garantissem que ganhavam, todos queriam participar. Acho que cada vez mais os compositores com carreiras sólidas, e convidados para participar no Festival da Canção, vão interpretar as suas próprias músicas. Isso elevará o nível das participações, porque normalmente são pessoas muito mais experientes para lidar com este tipo de pressão. Na hora H não é fácil. Apesar de concordar, e achar muito fixe, que o Festival mostre novos talentos e novas vozes. Para o ano acho que já haverá mais gente com carreiras sólidas a assumir as próprias canções. E a cantar em inglês, ou na língua que lhes apetecer.
De todas as entrevistas, qual a pergunta mais estranha que vos colocaram?
'Que produtos de cabelo é que tu usas, Tatanka?'. Ao qual eu respondei: 'liguem à minha mulher e perguntem-lhe, que ela é que os compra e eu uso os dela'.
Já tinham recebido o convite para o Festival da Canção em 2020, mas não o aceitaram porque estavam nesse momento em tour. Entendes isso como um sinal? Caso tivessem ganho, não teriam a oportunidade de defender o tema na Eurovisão...
Tínhamos uma tournée com datas que batiam com as duas meias-finais. Já quase nem me lembrava que o Nuno Galopim tinha dito que me ligava para esta edição. Acredito um bocadinho que as coisas acontecem quando têm de acontecer.
Qual era a vossa relação com o Festival da Canção?
Eu não tinha muita, mas dentro do grupo há quem tenha. Sei que o Gui e o Miguel [Casais] acompanhavam com os pais, quando eram pequenos. Os meus pais não seguiam, e como não acompanhava em casa acabo por não ter esse imaginário vindo da minha infância. Mas a minha avó era amiga da Maria Guinot, e essa era a única ligação. Não tenho memória de edições passadas, mas acabei por ir mais a fundo neste universo quando fui convidado pelo Francisco Rebelo [Cais do Sodré Funk Connection, Fogo-Fogo ou Orelha Negra] para fazer um medley, mais funk e soul, em retrospetiva das grandes canções. É aí que acabo por descobrir uma série de canções que nem sabia que existiam, como "O vento mudou" [1967], do Eduardo Nascimento. Esse universo acabou por dar o mote à produção e estética da música de "Love is on My Side". O próprio staging [palco], das roupas à luz, é alusivo àquilo que considero os anos dourados do Festival da Canção. Os anos do Carlos do Carmo, Paulo de Carvalho... Tentámos levar a nossa canção um bocadinho para aí.
Esta música esteve quase para entrar no vosso último álbum, “Mamba King”. Porque é que acabou na gaveta?
Mais ou menos. Começámos a fazer esta música em 2016, para entrar no nosso último álbum [que saiu em 2018]. Dessa versão, que ficou inacabada, só sobraram quatro ou cinco notas, as principais do refrão. Se te mostrasse a música como ela era, não a irias reconhecer.
A final da Eurovisão é em Roterdão, onde já viveste, e o tema tem na raiz uma história de alguém que conheceram em Amesterdão. Não são muitas coincidências?
Vivi em Roterdão em 2007, quando já não estudava, mas ainda não era profissional de música. Durante esse período nunca consegui tocar, nunca ninguém me deixou tocar em Roterdão [risos]. Lembro-me de passar perto da arena Ahoy, onde vai acontecer a final da Eurovisão, um Pavilhão Atlântico lá do sítio, e de querer ter ido ver um concerto da Joss Stone. Agora volto pela porta grande, para tocar num dos maiores eventos televisivos do mundo. São uma data de coincidências muito bizarras.
No outro dia, fui ao armazém que tenho aqui perto, para ir buscar uma flight case para levar material... Como vamos estar muito confinados ao hotel, porque a coisa está a ferro e fogo em termos de Covid-19, decidimos levar o estúdio e gravar cenas enquanto não temos nada relacionado com a Eurovisão. Fui ao armazém e não encontro essa, mas outra mala. 'Vai ser fixe para levar fatos e afins', pensei. Ao abrir encontro uma etiqueta da KLM, a transportadora aérea holandesa. Essa foi a mala que levei para Roterdão... Não sabia que ainda a tinha.
"Isso [as casas de apostas] é para corridas de cavalos. Não quero estar preocupado com isso, mas sim com a nossa prestação"
Gostavam de encontrar a pessoa cuja história inspirou a canção?
Não acredito nessa possibilidade. Foi um encontro frutífero, estávamos a tocar numa coffee shop, as pessoas entravam e saíam, e ela foi mais uma das pessoas que meteram conversa. Falámos uns cinco minutos, há elementos na história que tive de adaptar. Não sei se ela saiu do país dela quanto tinha 16 anos... Não sei o seu nome, por exemplo. Só sei que que saiu muito nova de um país de leste, que pensava que ia alcançar a liberdade, mas que acabou na toxicodependência e na prostituição. O que eu gostava, sim, é que ouvisse a música e percebesse que era sobre ela. 'Contei a minha história àquele gajo e ele fez uma música...'. Isso seria uma vitória muito grande.
Olham para o que dizem as casas de apostas ou isso não vos diz nada?
Isso é para corridas de cavalos. Não quero estar preocupado com isso, mas sim com a nossa prestação. A única coisa que garantimos é que vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para prestigiar e dignificar as nossas cores, a nossa bandeira e a nossa cultura.
Cá ganhámos numa final épica, contra todas as odds [apostas]. Com a Carolina Deslandes e mais duas músicas que sentíamos, nos números de YouTube por exemplo, serem as mais preferidas, a do NEEV e a dos Karetus, canções mais atuais até que a nossa. Não quero estar obcecado com isso nem quero que isso atrapalhe a minha prestação. Sei que sou muito forte na performance e sei não deixar que os nervos me abalem, porque já sou um rapaz experiente nestas andanças. Tenho muita confiança em mim. Em nós.
Mudaram alguma coisa no staging ou no tema?
Vai mudar muita coisa, vai ser uma surpresa agradável. Já vi o stand-in, com pessoas a fingir que somos nós no palco e com vários planos. É uma cena gigantesca, não tem nada a ver. Mas não vamos cair na tentação de produzir demais... Temos uma música simples, direta, com uma mensagem clara. E vamos manter as coisas o mais simples possível, tentando tirar partido da parafernália de equipamento que temos ao nosso dispor e que nunca mais na vida iremos ter. Vamos manter a cena classy, simples, sem grandes aparatos.
Já ouviram os outros temas? Têm algum favorito?
Gosto muito da canção francesa, "Voilà", da Barbara Pravi. A Eurovisão tem um tipo de pop de que não sou muito fã, mas esta destaca-se. Vai mais ao encontro do meu gosto pessoal. Não conheço ainda muito dos outros temas, vou ter tempo para os ouvir lá.
A vitória no Festival da Canção, e tudo que daí adveio, deu-vos força para compor coisas novas?
Muito, foi logo uma das primeiras coisas que disse ao pessoal: 'malta, temos de nos juntar e aproveitar esta injeção'. Injeção de positivismo, de estado de graça, este astral bom... Materializar tudo isso e deixá-lo espelhado nas novas músicas. Já estamos a acabar uma música nova que planeamos lançar em breve.
O concerto deste sábado está a ser encarado como um teste antes de rumarem aos Países Baixos?
Não, acho que será mais uma despedida. Uma despedida antes da partida para um grande desafio. Gostava muito que fossem para nos dar uma injeção de moral. O concerto é mais um concerto. Não há nervosismo e não terá grandes alterações no alinhamento. Normalmente fazemos um best-of dos três discos, e este também será assim. A novidade será mesmo a "Love is on My Side", essa vai ter de estar lá.
Essa dificilmente sairá do alinhamento...
Já não dá para sair mais, temos de tocar essa música para sempre. Até porque depois da vitória tornou-se logo um sucesso. Toca em todas as rádios, vais a um supermercado e está a tocar. Estamos muito felizes por isso, como é óbvio. Quando as coisas ganham asas, é deixar voar.
Há quanto tempo não dão concertos?
Demos alguns o ano passado, seis ou sete, sem contar com os da tour que nos impossibilitou de participar no Festival da Canção.
O que são seis ou sete comparados com os mais de 250 que deram num dos primeiros anos de Black Mamba?
É uma semana... Uma semana, não. Chegámos a dar dez concertos numa semana.
Tendo nascido como um grupo para tocar num bar, como olham para a situação destes espaços impossibilitados de abrir devido à pandemia?
É trágico. Está a ser trágico para muita gente, para os proprietários de bares ou discotecas, que não têm mesmo oportunidade de trabalhar. Os restaurantes tiveram o take away, nós, músicos, alguns lives ou um concerto aqui ou ali. Eles estão fechados. Infelizmente, calculo que a maioria não conseguirá sobreviver. Já deve ter acontecido.
E as bandas e projetos que tocavam nestes espaços ficaram sem palco e sem montra.
Talvez até seja uma boa oportunidade para fazer música. A pandemia foi uma oportunidade de o pessoal parar, pensar, e fazer novas cenas. Como sou patrocinado por uma marca sei que a venda de equipamentos profissionais caiu muito, mas a venda de aparelhos amadores disparou. O pessoal que tem esta paixão pela música, mas que tem outros trabalhos, subitamente teve tempo para ir para casa, para tocar guitarra e cantar. Esse tipo de projetos, que acaba por não depender financeiramente da música, tem tempo para criar música e, quando se apresentarem, estarem mais sólidos.
Os The Black Mamba têm concertos a 8 de maio no Campo Pequeno, em Lisboa, e no dia 28 de maio na Super Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota, no Porto. Os espetáculos, inseridos no festival Santa Casa Portugal ao Vivo, têm bilhetes à venda nos locais habituais. Os preços variam entre os 10 e os 12 euros, em Lisboa, e os 10 e os 18 euros, no Porto.
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