Quem tem amigos mais dados àquele tal de rock n' roll certamente que já ouviu de suas bocas as seguintes expressões: “hip-hop nem é música”, “eles só estão para ali a falar”, “é tudo em playback”, “samples é plágio”, “põem umas miúdas descascadas em vídeo e já está”. A lenga-lenga conservadora repete-se, ano após ano, disco após disco, espetáculo após espetáculo, e vai vencendo pelo cansaço – porque chega uma altura em que não vale mesmo a pena tentar explicar o que é isso de hip-hop.
Mas há quem vá tendo uma paciência de santo e suba a um palco para dar a lição que se exige. Como os Roots, que já andam nisto há mais de trinta anos, que já somam onze álbuns de estúdio (com um 12º a caminho), e que contam nas suas fileiras com dois grandes senhores do mundo hip-hop: Ahmir Thompson, baterista mais conhecido como ?uestlove (lê-se "Questlove"), e Tariq Trotter, rapper e MC que responde por Black Thought (e que se tornou viral há dois anos por causa deste freestyle). Mesmo que muitos, inclusive alguns dos que se deslocaram até Cascais, só os conheçam por serem “a banda do Jimmy Fallon”...
Reduzir os Roots à comicidade é no entanto um erro. Basta, aliás, ver qualquer entrevista com ?uestlove. O baterista, que também ajuda na produção, possui um conhecimento enciclopédico da música hip-hop capaz de invejar qualquer Wikipedia. Já Black Thought dá que falar pelo seu flow e pelos seus versos, contendo esquemas rimáticos surpreendentes e uma consciência socio-política enormíssima. Não são “apenas” dois músicos mais; são veteranos, ensinando a quem quiser escutar tudo o que fazem.
Em estúdio e ao vivo, junte-se-lhes um guitarrista que arranca solos como um qualquer Brian May, um baixista com uma técnica irrepreensível onde o groove é que manda, uma secção de sopros e dois hábeis manejadores de MPCs e está feita a festa. Quer dizer: se o público não os acompanhar, a festa não serve para nada. Felizmente, os que se deslocaram ao Hipódromo Manuel Possolo, em Cascais, estavam prontos para isso, correspondendo como se desejaria aos muitos pedidos de Black Thought para palmas e gritos e braços no ar, e assistindo ao concerto de pé, sem conseguir parar de dançar (houve quem tentasse ficar sentado, mas desse género de estátuas nunca rezará um espetáculo destes).
Prontos, mas quase não estiveram: uma sucessão de falhas levou ao cancelamento do concerto dos HMB, que assegurariam a primeira parte desta noite de EDP Cool Jazz, e deixou no ar algum receio de que o mesmo pudesse acontecer com os Roots, que regressaram a Portugal sete anos após terem atuado no festival Sudoeste. O receio perdurou durante os 15 minutos de atraso entre a hora anunciada e o início do espetáculo, que se deu com o produtor Jeremy Ellis a disparar e a manipular samples na sua máquina, testando a vontade de uma multidão que o agraciou com palmas. E depois escuta-se: “Hot music!”, qual grito de guerra, qual descrição do que estava por vir. Uma música calorosa e puramente negra, saída dos subúrbios para invadir o mundo.
Envergando um robe onde se lia “Reigning Champ” (somos levados a discordar: o campeão, hoje em dia, por aquilo que vende e que versa, é Kendrick Lamar), Black Thought foi conduzindo com mestria o concerto, acompanhado por uma banda que raramente teve ou deu pausas para respirar. E pensamos: há imensos rappers e aspirantes a rappers que poderiam aprender uma coisa ou duas com os Roots, que oferecem ao seu público um concerto na aceção mais tradicional da palavra, tocando que nem loucos, dançando que nem maníacos e cantando sem playbacks ou coisa que o valha.
A lição dos Roots atingiu o seu zénite quando o grupo se entrega a um medley onde incluem vários sucessos do hip-hop antigo e atual, casos de 'A Milli' (de Lil Wayne) ou 'C.R.E.A.M.' (dos gigantescos Wu-Tang Clan). Não que tenha sido esse o único momento em que veneraram o género no qual se inserem: destacou-se 'Lookin' at the Front Door', dos Main Source, e ainda uma versão smooth jazz (para fazer pandã com o festival) de 'Old Town Road', êxito viral do rapper com sabor a country Lil Nas X, com um trecho de 'My Favourite Things', imortalizada para sempre por Julie Andrews.
Numa noite onde a electricidade podia ter falhado e desiludido os irrequietos, os Roots mostraram-se sempre ligados à corrente, chegando ao fim com a clássica 'Move On Up' (de Curtis Mayfield), misturada com 'Apache (Jump On It)' (dos Sugarhill Gang), antes de mostrar aos portugueses a batida que inventou dezenas de géneros, do hip-hop ao drum n' bass (o chamado amen break, de 'Amen, Brother', dos Winstons). Um “façam barulho!” na boa língua de Camões, os pedidos de “soul power!” e “power to the people!”, e Black Thought a cumprimentar as filas da frente fizeram soar a campainha e assinalaram o fim da aula. Fossem todos os professores assim e gostaríamos muito mais da escola.
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