Livro: "Viagem ao Sonho Americano"

Autora e Convidada: Isabel Lucas, jornalista e escritora

Moderadores: João Dinis, strategist na MadreMedia e no SAPO 24.

Anfitriã: Elisa Baltazar, moderadora do "É Desta Que Leio Isto"

Data: 2 de novembro de 2020

Ouça aqui a conversa sobre o livro "Viagem ao Sonho Americano".

Sobre a autora – Isabel Lucas:

  • É jornalista, escritora e crítica literária.
  • É formada em Ciências da Comunicação pela Faculdade Nova de Lisboa.
  • Escreve regularmente para o jornal Público.
  • Já colaborou com várias publicações nacionais e internacionais, com destaque para os artigos sobre os Estados Unidos.
  • Vive entre Lisboa e Nova Iorque desde 2011.
  • Para além da "Viagem ao Sonho Americano" é também autora dos livros "Vicente Jorge Silva – Conversas com Isabel Lucas" e "Viagens com Garrett".

Sobre o livro "Viagem ao Sonho Americano":

  • Baseia-se na viagem feita pela escritora aos Estados Unidos em 2016. Uma viagem que passou, durante um ano, pelos locais mais diversos do país, das cidades litorais às zonas mais remotas do interior.
  • Foi escrito em contexto de corrida às eleições norte-americanas de 2016.
  • É também uma "viagem" por vários livros de outros autores que escreveram sobre a América.
  • Como o próprio nome indica, procura perceber a ideia de "sonho" associada ao país.

"Impera muitas vezes a força física, a força das armas, a valentia no sentido mais primário"

  • Esta é uma expressão usada por Isabel Lucas para descrever, de certa forma, ideia de individualismo norte-americano.
  • A escritora conta que conheceu um homem na Pensilvânia que "mostrou com muito orgulho" uma arma com a qual tinha atingido um cidadão porto-riquenho.
  • Refere que "este tipo de comportamento é exibido com bastante orgulho, com uma ideia que vem muito da conquista da América".
  • Apesar desta pedra basilar histórica, Isabel Lucas frisa algumas nuances entre estados. Refere que "a maneira como se encara o sucesso pessoal nos estados mais cosmopolitas é diferente".
  • Dá o exemplo de "Trump vestir uma camisola do Super-Homem a dizer que venceu o vírus [COVID-19]" que, diz, é uma ideia pouco nova-iorquina.
  • Fala ainda "das cidades que vivem muito da emigração" onde quem vence quer mostrar que venceu" exibindo "tudo aquilo que o dinheiro pode comprar". 

"As escolhas têm sobretudo a ver com o medo"

  • A autora do livro em debate refere por mais que a eleição de Donald Trump incomode muitas pessoas "com valores democráticos, as escolhas têm sobretudo a ver com o medo".
  • Numa "sociedade constituída por emigrantes", Isabel Lucas diz que, ainda assim, o país funciona "como se o emigrante que já conquistou alguma coisa tivesse receio de que o emigrante que vem a seguir lhe retirasse o que ele conquistou".
  • A jornalista refere que "este medo da diferença" nega a própria essência da América.

"Não se consegue estar quotidianamente nos Estados Unidos sem pensar em raça"

  • Durante a viagem pelos vários locais dos Estados Unidos, Isabel Lucas foi várias vezes olhada de forma diferente devido ao seu aspeto e "em função da sua cor de pele", conta. "Eu passei por estados muito brancos e muito fechados, onde eu passo por uma pessoa do Médio Oriente, e sofri na pele o preconceito. As pessoas olhavam para mim com um ar muito desconfiado na altura [2016] em que se falava dos refugiados vindos desse tipo de países", acrescenta.
  • A crítica literária relembra a multiplicidade de etnias presentes no território norte-americano e refere que "os negros já conseguem ter uma voz mais visível", mas que, por exemplo "os indígenas ainda não chegaram a esse nível".
  • Numa América cheia de diversidade cultural, Isabel Lucas deixa a nota de que "um americano branco é americano, mas se for de outra cor qualquer tem outro nome" (como afro-americano ou latino-americano, por exemplo). Destaca assim uma segregação na própria linguagem, que nos dá "uma dimensão da nossa mentalidade", relacionada com "a falta de convívio com a diferença", que é vista como "uma ameaça".
  • Isabel Lucas remata a questão com a seguinte frase: "a raça é um assunto ao qual ninguém escapa e eles [os cidadãos americanos] estão sempre a tentar adivinhar a raça".

"Ele [Donald Trump] sabe para quem é que fala"

  • Isabel Lucas relembra que, quando fez a viagem pelos Estados Unidos, em 2016, a grande questão em cima da mesa era "o papão dos refugiados" e Trump ascendeu a presidente também por causa disso.
  • A jornalista relembra o grande chavão da campanha de Donald Trump – "fazer a América grande outra vez" – e refere que o presidente eleito há 4 anos "sabe para quem é que fala", ou seja, sabe o tipo de eleitor que quer conquistar.
  • No que toca ao trabalho de Trump no último mandato, Isabel Lucas afirma que o sucesso do mesmo se deve aos "resultados imediatos" que estava a conseguir, nomeadamente na criação de emprego, independentemente das condições desses empregos.
  • A autora de "Viagem ao Sonho Americano" defende que os americanos vêm em Trump "o culto do indivíduo no mau sentido", por pensarem: "ele conseguiu, ele é rico".

"Ninguém levou muito a sério aquilo que começou por ser uma piada"

  • Sobre o papel dos jornalistas na cobertura da campanha e do mandato de Donald Trump, Isabel Lucas lembra que estas ações se dão "numa altura em que o jornalismo está a viver uma crise".
  • A autora de "Viagem ao Sonho Americano" considera que "ninguém levou muito a sério aquilo que começou por ser uma piada" e que se "cometeu o erro de não tratar a questão como ela devia de ser tratada".
  • No entanto, Isabel Lucas, também ela jornalista, classifica como excessivo culpar os jornalistas pela chegada de Donald Trump à Casa Branca. 

"Conheci mais de mim do que propriamente dos Estados Unidos"

  • Isabel Lucas afirma que é fácil seguir viagem com "livros como ponto de partida". Contudo, esclarece que o grande desafio é "largar o livro e ir à procura das pistas".
  • A escritora revela que, durante o tempo em que fez a viagem pelos Estados Unidos, conheceu mais de si "do que propriamente dos Estados Unidos".
  • A jornalista refere ainda que durante a viagem teve de fazer uma espécie de "tripla tradução": ouvir os testemunhos, entender os testemunhos dentro de si mesma, e perceber a forma como os podia passar a pessoas que não conheciam a América. Este processo tornou mais "evidente" do que nunca "a importância e responsabilidade deste trabalho enquanto jornalista".

"A literatura fica mais perto daquilo que eu acho que é a verdade": livros recomendados por Isabel Lucas durante a sessão para entender a América:

  • "Moby Dick", de Herman Melvile – "A américa está sempre à procura de um épico (…) A constituição americana pode considerar-se um épico e tem um lado quase sagrado. (…) O "Moby Dick" parece-me um romance mais complexo a esse nível. Fala de religião, de ciência, das grandes questões que nos incomodam enquanto seres humanos. Fala da relação da natureza, importante para determinar o que é isso de ser americano num território imenso."
  • "A Piada Infinita", de David Foster Wallace – "Ele era uma pessoa cheia de demónios a viver dentro dele, apesar de ter um grande humor. (…) Estava a escrever num tempo antes deste, mas parece que foi neste. Há ali qualquer coisa de profético. (…) Ainda não experimentei abrir o livro nesta altura, porque tenho algum receio daquilo que vou encontrar sobre estas nossas perplexidades e tudo isto que estamos a viver [pandemia da COVID-19] ."
  • "Pastoral Americana", de Philip Roth – "É um grande livro sobre a América, que nos fala (...) das lutas de classe entre raças e religião."
  • "Folhas de Relva", de Walt Whitman – "É um livro que também se percebe pelo lado da poesia, como se fosse uma grande canção num tom poético. (…) É um livro essencial que muitos autores jovens têm como referência. É o Fernando Pessoa lá do sítio, mas é um Fernando Pessoa menos triste."
  • "Em Casa", de Marilynne Robinson – "É um livro muito bonito, que se passa nas montanhas do Idaho. Também nos traz outra América diferente".
  • "Luz em Agosto", de William Faulkner – "Um livro que acho incrível para entender a América e que tem essa capacidade de não ser ultrapassado."
  • "O Grande Gatsby", de F. Scott Fitzgerald – "É um livro muito curtinho e muito bom, onde se percebe também esse tempo da América [anos 20 do século XX]."
  • "O Silêncio", de Don DeLillo – "Ele [o autor] tem essa capacidade incrível de escrever à frente do tempo. (…) É como se tivesse esse lado de nos revelar qualquer coisa de inquietante."
  • Livros de Toni Morrison – Escreve sobre a ideia de "casa". (…) "A América é uma grande casa onde todos querem pertencer. Todos os que lá vivem têm o direito de entrar, mas só alguns conseguem aceder. Há muita gente que fica à porta, precisamente por essa segregação. (…) Depois dependendo das divisões, há quem tenha acesso à parte mais nobre da casa."
  • Livros de Cormac McCarthy – "Não são livros fáceis. São livros duros. Mas eu acho que se percebe (...) a relação com a paisagem."
  • Livros de James Baldwin – "O James Baldwin tem estado a ser recuperado. (…) Aquilo que ele escreveu continua a ser muito atual. (…) Isto tem mais que ver com a genialidade de alguns autores do que propriamente com a literatura."