O momento em que os portugueses ouviram pela primeira vez Aníbal Cavaco Silva foi na noite de 9 de fevereiro de 1980. Nesse sábado em que o Futebol Clube do Porto de Pedroto, bicampeão nacional, recebia, com enchente total no estádio das Antas, o rival Benfica, a quem viria a ganhar (“o capitão Rodolfo foi decisivo”, exaltou José Neves de Sousa no "Diário de Lisboa"), aconteceu uma surpresa nos ecrãs da televisão, ao tempo a RTP única: antes do jogo, surgiu uma inédita comunicação ao país pelo ministro das Finanças e do Plano do governo de Sá Carneiro, há apenas 35 dias em funções. Foi a estreia de Cavaco Silva perante os portugueses.

Quem não tivesse andado por Economia mal lhe conhecia a cara e nunca lhe tinha ouvido a voz. A pose austera daquele homem de queixo saliente impressionou: sem um sorriso ou algum aceno de simpatia, de modo sisudo, Cavaco Silva anunciou as 15 medidas que acabava de decidir com intenção de recuperação da economia portuguesa em tempo de inflação disparada. Comunicou a revalorização do escudo português em 6% e, designadamente, medidas para contenção da despesa pública e dos salários. A dicção daquele homem que arranhava os erres foi medíocre, mas a figura, a pose, o olhar, os silêncios e o discurso deixaram perceber que estava ali uma personagem com ambição e ossatura política. Aquela presença forte, apesar de desajeitada, revelava alguém que aparecia para ficar no palco político português. Aliás, voltaria a aparecer logo três noites depois, então em formato de entrevista, conduzida por Francisco Sarsfield Cabral. Foi a confirmação de que estava ali um político que iludia a imagem de político, apresentando-se como professor, técnico.

As medidas anunciadas por Cavaco Silva naquela noite de 9 de fevereiro levaram aos resultados que pretendia: em menos de um ano a inflação portuguesa baixou mais de sete pontos percentuais, de 24% para 16,6%.

Esse governo da Aliança Democrática (AD), presidido por Francisco Sá Carneiro, seria breve, com o fim precipitado no final desse ano pela morte do primeiro-ministro na trágica queda da avioneta Cessna em Camarate. A sucessão na chefia do governo da AD foi assumida, depois de algumas discussões, por Francisco Pinto Balsemão. Mas, então, Cavaco Silva escusou-se a continuar como ministro. Não foi por preferir a universidade à política. Foi por discordar da condução política de Balsemão no PSD. Passou a preparar o tempo dele, intervindo perante as bases. É nesse tempo que Cavaco Silva escreve uma carta aos militantes em que denuncia “resignação nas cúpulas” do PSD ao mesmo tempo que desafia as bases ao proclamar que “a coragem não morreu”.

Assim, não foi com surpresa que no fim de semana de 18 e 19 de maio de 1985 Cavaco Silva saiu líder do PSD no congresso na Figueira da Foz – o tal onde foi “fazer a rodagem ao novo Citroen BX” - onde a disputa prometida era entre Rui Machete e João Salgueiro, mas foi Cavaco quem ficou entronizado. Em 6 de outubro desse ano o PSD de Cavaco ganhou as eleições legislativas com 29,8% dos votos, frente aos 20,7% do PS de Almeida Santos e 17,9% do recém-criado PRD eanista. Este parlamento atomizado veio a ser dissolvido dois anos depois pelo presidente Mário Soares. Cavaco Silva passou à maioria absoluta com 50,2% nessas eleições de 87. Subiu para 50,6% em 1991. Era o tempo do boom económico e das farturas dos fundos europeus.

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O terceiro governo de Cavaco Silva trouxe o declínio do político que pronunciou a célebre frasesita: “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas”. O semanário "Independente", dirigido por Paulo Portas, catalisou o desgaste.

O “buzinão”, culminado com o bloqueio de todo o trânsito na ponte 25 de Abril, a partir das 7 da manhã e até por volta das 6 da tarde de 24 de junho de 1994, pareceu, naquele tempo, simbolizar o fim político do líder que dizia não ser político profissional. Julgou-se que essa previsão saía confirmada com o voto dos portugueses que, em janeiro de 96, na eleição presidencial, escolheram Jorge Sampaio (53,9%), deixando Cavaco Silva vencido a quase oito pontos percentuais.

Pensou-se que era a retirada definitiva de Aníbal Cavaco Silva. Não foi. Dez anos depois, com crises políticas e financeiras no ar, muitos dos portugueses que tinham ficado zangados com as derivas no final da década de governos Cavaco Silva, acabaram por voltar atrás. Terão desejado um presidente que fosse uma espécie de professor ou ministro das Finanças, e contribuíram para a eleição de Cavaco Silva para mais uma década no topo do poder político em Portugal. Então, como Presidente da República. Esta década presidencial chega ao fim com nunca vista desaprovação da cidadania. Desta vez, parece mesmo ser o fim do mais longo ciclo de poder no Portugal democrático. Tudo começou naquele início de 1980, há 36 anos.

Este texto faz parte dum conjunto de seis testemunhos pessoais de jornalistas que escolheram um momento definidor do que foi, para eles, o político Cavaco Silva. Leia também:

#1: As lições de uma ponte, por Pedro Rolo Duarte

#2: Era uma vez o Cavaco, por Márcio Candoso

#3: A 'trisneta' do Cavaco, por Diana Ralha

#5: Cavaco Silva em cinco actos, por Pedro Fonseca

#6: Um caso muito interessante, por José Couto Nogueira