Há qualquer coisa no semblante de Trump e de Hillary que nos deixa, desde o início, com um pré-aviso de como as coisas vão correr. Ela vem serena, e bem disposta, talvez demais. À primeira oportunidade mostra que quer ser calorosa, que está ali como mais uma americana num dia normal de família e de trabalho. A neta faz dois anos, e ela quer parecer casual quando o diz. Com isso vai também justificar que, mais do que nunca, se preocupa com o futuro do país, que é o seu e o dela.
Mas, de alguma forma, tudo isto se podia prever de Hillary Clinton e da sua grande experiência nestes palcos da política. Trump era a grande incógnita. Que candidato pisaria o palco montado na Universidade de Hofstra? O Trump sem pose presidencial que há menos de 24 horas ameaçava levar uma ex-amante de Bill Clinton ao debate ou um Trump tentativamente presidencial e “nice guy” como alguns julgaram ter vislumbrado na entrevista com Jimmy Fallon? Ou outro Trump qualquer, inventado na hora?
Trump não desiludiu aqueles que acreditam que é aquilo que tem mostrado ser. Ainda não tinham passado dez segundos e já a palavra México vinha para a discussão como exemplo de um país – tal como a China – que “rouba” empregos e empresas aos Estados Unidos, empregos com a emigração e empresas com a deslocalização.
E de quem é a culpa? Dos acordos de comércio. Com o NAFTA à cabeça, o pior de todos, afirma. E quem disse que o NAFTA era um marco extraordinário? Hillary Clinton. A democrata sorri – vai usar esse truque ao longo de todo o debate – e começa a falar de como se cria riqueza. Da importância da classe média, do carinho que a classe média deve merecer aos políticos. De como a crise de 2008 evidenciou o que de pior pode acontecer quando não se cuida da classe média. Porque, e agora cabe-lhe a ela a alfinetada, nem todos “têm a sorte” de Donald Trump de começar a vida com um negócio de milhões herdado do pai. Ela, por exemplo, teve um pai sem grandes posses, um empresário de média dimensão e, décadas depois, a candidata a presidente dos Estados Unidos acredita que é por aí que a América vai crescer, pelos pequenos negócios e grandes ideias.
Trump acusa o toque mas não se fica. Dinheiro do pai, sim, mas houve mérito. Transformou uma pequena fortuna numa grande fortuna – e é isso que a América precisa. Aproveita e pergunta porque razão Clinton, que está há 30 anos na política, só agora se preocupa com a regulamentação e com os incentivos às empresas.
Hillary não pestaneja e volta ao ataque. Recorda uma frase assassina. Aquela em que Trump desejou que a economia colapsasse, que o imobiliário colapsasse, para fazer dinheiro. O milionário que nos habituou às suas entradas sem filtro, interrompe também sem pestanejar: “it’s called making business”.
Ela volta a sorrir. Muda de tema. Traz para cima da mesa as energias limpas. Quem vai ser a superpotência das energias limpas? A América tem de ser essa superpotência. Ironiza com o adversário, diz que “Donald” não acredita nas alterações climáticas, que acha que são coisas dos chineses.
[Hillary vai tratar sempre Trump por Donald. Há qualquer coisa de paternalista na forma como diz o seu nome, sempre que o faz]
Um Trump pouco preparado para falar de energia agarra-se às suas bandeiras genéricas. Então e o Michigan, então e o Ohio e os empregos que de lá fogem? Como se vai salvar a América?
E Hillary, que já anda nisto há 30 anos, e nada de soluções.
Hillary continua a sorrir e diz que tem pensado nesses problemas da América. “Há 30 anos?”, torpedei-a Trump. “Não há tanto tempo …”. Hillary sorri outra vez e pisca o olho. Tem a técnica da câmara, sabe bem que aquela expressão será vista como de confiança, dela, e como de infantilidade, espera, de Trump.
Porque se falava de energias, decide retomar o elogio ao trabalho do marido Bill enquanto presidente e diz que acredita que “podem” voltar a fazer um bom trabalho. Fala no plural. Os Clinton são uma instituição.
Trump irrita-se com tantos violinos. Vocifera contra a NAFTA - é o pior acordo de sempre. Voltam a discordar, Clinton aplica-lhe mais uma alfinetada e diz que sabe bem que ele vive na sua própria realidade. Há risos na assistência.
Trump orgulha-se de ser um grande empresário, mas nos números dos planos económicos não se revela grande barra. Ao invés, Hillary mais parece que esteve a estudar para um teste e sabe tudo de cor e salteado. Sabe por exemplo que o seu plano fiscal cria 10 milhões de empregos e o de Trump faz perder 3,5 milhões.
Aqui o republicano entra em modo cowboy americano, saca da expressão “tremendous” e garante que o seu plano é o melhor desde Ronald Reagan que, já agora, também era cowboy. É estranhamente um homem do campo contra a burocrata da cidade que diz que todo o seu plano pode ser consultado no seu site – cita o endereço www e tudo.
Trump quer lá saber do site. Está na altura de fazer tiro ao alvo. “Se ela diz que vai combater o ISIS é porque está escrito no site e o general MacArthur não havia de gostar disto”, troça. Algures na América profunda, algures na América das armas, esta parte deve ter sido recebida com gargalhadas.
Pelo menos tenho um plano. Clinton não desiste. Não, não tem. Está a dizer ao inimigo tudo o que vai fazer. Trump também não desiste.
Continuam a varrer temas. Falam das empresas que fogem dos Estados Unidos, da repatriação dos lucros, de como incentivar que regressem. Trump continua a dizer que em 30 anos Hillary nada fez. Hillary continua a rir e diz que, no final do debate, vai acabar responsável por tudo o que aconteceu à América.
Trump: "Why not?"
Clinton: "Why not? - Join the debate for some more crazy things."
A democrata joga a cartada do inimputável. Trump não percebe ou não se incomoda e responde com uma careta para a câmara.
Depois continua. “We are in a big fat ugly bubble”. Uma bolha gorda e feia criada pela Reserva Federal e pela sua política de taxas de juro. “A FED não está fazer o seu trabalho, está a ser mais política do que a secretária Clinton”.
[Trump irá alternadamente chamar a adversária de secretária Clinton e de Hillary. Revela-se menos determinado no efeito que causa a primeira opção e que é de a responsabilizar como governante]
O debate vai aquecer. Os impostos são sempre um problema, em qualquer parte do mundo. A economia está mal porque o Donald não paga impostos. Clinton quer cercá-lo com a declaração de rendimentos que o milionário se tem recusado a mostrar.
Quando Hillary mostrar os e-mails, eu mostro a minha declaração de rendimentos, diz Trump. Coisa que os advogados lhe dizem para não fazer.
Clinton não perde a deixa e continua a cercar. Qual caçador(a) que atrai a sua presa, lança iscos à espera que a natureza funcione. Tem a convicção, afirma, que Donald não mostra a declaração de rendimentos por uma das seguintes razões:
- talvez não seja tão rico como diz
- talvez não seja tão caridoso como diz
- talvez não sejam conhecidos todos os seus negócios
- talvez não queira que os americanos saibam que não pagou sequer impostos, não contribui nem para as forças armadas, nem para os veteranos, nem para as escolas.
Nesta etapa, a candidata está inspirada e com o vento de feição arruma também com o tema dos e-mails guardados e perdidos no seu servidor pessoal. “Errei com os meus e-mails e assumo a responsabilidade”. Depois disto, o quê?
Será no segmento seguinte que Trump terá uma das frases da noite. Reza assim: “É altura deste país ser governado por alguém que saiba alguma coisa sobre dinheiro”. Donald fala de dinheiro, de empresas, de riqueza a um país que delira com as histórias do meu primeiro milhão. Ser milionário tem qualquer de religioso para uma boa parte dos americanos – e Trump tem muitos milhões.
Mas Clinton, a secretária, uma vez mais vem com o trabalho de casa feito. Então e as empresas que faliram, e os fornecedores que ficaram por receber? Trump atira-se para a frente na câmara, revira os olhos, expira fundo. Sublinha que construiu uma “unbelievable company”. E que sim, tirou partido das leis da nação para salvar a sua companhia incrível. Onde é que está o problema?
Vai ainda falar-se de raças, de violência e de oportunidades. Tulsa e Charlotte estão bem presentes na memória da América. Clinton faz o longo discurso, o politicamente correcto discurso da igualdade, do desconforto da desigualdade, da injustiça que provoca o medo e o confronto, da necessidade de a América se encontrar. Refere-se ao “criminal justice system”. Trump irá apelar de seguida a “law and order”. Impossível não pensar na série de ficção de grande longevidade, ainda em exibição, em Portugal, na Fox Crime
Mesmo quando se fala de raça, desigualdade, violência, Trump nunca deixa de ser o empresário. Conhece bem Charlotte, diz, e adora a cidade – tem lá investimentos. Dirá o mesmo de Chicago – onde tem propriedades.
A propósito ou sem propósito, o tema da certidão de nascimento de Barack Obama entra no debate. Trump diz que foi uma conquista sua: conseguiu que Obama mostrasse a certidão de nascimento. (Para quem justificadamente nem percebe porquê, ou para quê, a primeira grande questão política de Trump foi discutir a nacionalidade de Obama).
Clinton chama a si a superioridade moral do tema. Trump quase que lhe diz para não se fazer de sonsa [parece conversa de liceu – sim, porque a secretária Clinton nunca foi grande amiga de Obama; o que como sabemos, é verdade]. Hillary vai sorrindo e seriando. E lá vem mais uma alfinetada. Cita Michele Obama e o seu “fantástico discurso na convenção democrata”: when they go low, we go high.
Ainda se discutiria ciberguerra, Putin e, claro, ISIS, Síria, Iraque. Trump acusa Hillary e Obama de terem saído mal do Iraque e por causa disso, por não terem deixado tropas para trás, terem estado na origem do ISIS, além de não terem retirado o acesso ao petróleo – e por inerência ao financiamento do grupo terrorista. A secretária de Estado recorda-lhe que ele apoiou a invasão do Iraque sob a liderança de George W. Bush e que essa sim, esteve na origem de todo o mal posterior. Trump nega. Nega e perde-se minutos a fio em detalhes que poucos quererão sequer saber.
O debate está prestes a terminar. Mas Trump tem ainda tempo para mais um tiro no pé. Resolve falar de temperamento, essa coisa volátil, sobretudo nas mulheres. Afirma que tem “melhor” temperamento que a adversária – que Clinton está aparentemente serena ali no debate, mas ainda no outro dia a vira alterada.
As mulheres, ai as mulheres.
Ele, ao invés, tem “a winning temperament”.
Concretiza melhor. Hillary tem falta de estamina e para se ser presidente tem de se ter uma “tremendous stamina”.
“Quando ele negociar cessar-fogo, reféns, acordos, oportunidades em novos países, pode falar comigo sobre estamina”. A secretária não perdoa.
Trump também não. É de experiência que ela quer falar. Experiência ela tem. Mas é uma má experiência - sublinha e sublinha.
Passaram-se assim 90 minutos. Quando tudo acabou, o casal Clinton juntou-se em palco e distribuiu cumprimentos. Sabem de cor as regras do protocolo. Donald Trump quase se esquecia de cumprimentar o pivot do debate. Esperou pela mulher e saiu de cena sem grande efusividade. É também por isto que dizem que é um outsider. E se não fosse tudo o resto, até podia ter (alguma) graça.
Nota: Este artigo foi reeditado às 13h17 de dia 27 de setembro, tendo sido alteradas algumas expressões e corrigidas repetições, mas sem qualquer alteração no conteúdo.
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