"Se me prenderem, viro herói. Se me matarem, viro mártir. Se me deixarem solto, viro presidente", afirmou Lula da Silva em 2016. Virou herói e presidente seis anos depois.
O desafio de Lula começa com a forma como Bolsonaro vai encarar a derrota e fazer a transição do poder ao longo dos ainda quase três meses de mandato que lhe restam. "O que Bolsonaro mais fez ao longo destes quatro anos foi desafiar, foi esticar os valores da democracia, e é pouco provável que cumpra os trâmites" habituais, avisa o jornalista brasileiro Álvaro Filho.
Se para uns o silêncio é de ouro, para Álvaro Filho é preocupante. Habituado à "verborreia", o jornalista preferia que Jair Bolsonaro mantivesse o modo histriónico do costume, "pelo menos sabíamos o que está a preparar".
Até agora, nenhuma reação, embora o deputado federal Claudio Cajado já tenha vindo dizer que "a família Bolsonaro vai falar ao país nas próximas horas".
Lula chega à presidência do Brasil 20 anos passados da sua primeira eleição e encontra um país muito diferente e um contexto mundial adverso. O desafio é aplicar a receita do passado a um cenário de guerra, escassez de alimentos e alterações climáticas.
"PIB é importante, mas ninguém come PIB", diz Álvaro Filho, lembrando que Lula conseguiu então tirar 35 milhões de pessoas do limiar da pobreza e o Brasil desapareceu do mapa da fome.
A verdade, diz, é que "o Brasil nunca esteve tão Venezuela. É um país isolado, que dá apoio a governantes de quem ninguém quer estar perto, como Putin e companhia, é um país pobre, onde as pessoas fazem fila para comprar comida, e é um país que não respeita o processo democrático. Por isso, nem entendo como é que os apoiantes de Bolsonaro dizem que com Lula o Brasil vai virar Venezuela.
Para já, o receio mais imediato é a violência nas ruas. O jornalista José Couto Nogueira acredita que não haverá uma escalada de violência e que as escaramuças serão pontuais.
A longo prazo, preocupa-o mais o fundamentalismo religioso dos evangélicos e o seu projeto de tomada do poder. É uma coisa "meio de estado islâmico, meio extrema-direita americana", concorda Álvaro Filho. Mas, deste ponto de vista, Bolsonaro não passou de um peão.
Desta vez os eleitores escolheram Lula, mas os conservadores têm maioria no Congresso Nacional, com vários aliados de Bolsonaro eleitos, incluindo o senador Sergio Moro (Paraná), ex-juiz da Lava Jato e responsável pela prisão de Lula.
Para Álvaro Filho, isto não trará qualquer problema a Lula, habituado a acordos e coligações. E o presidente eleito já começou a piscar o olho à oposição. "O PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro] é o grande partido do Congresso, não é para amadores. E Lula sabe lidar com isso, não precisa sequer de artifícios como o "Mensalão"".
Não é à toa que se diz que os banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro como nos governos de Lula. "Os banqueiros vão ganhar", mas os mais pobres também vão ganhar. "É pacífico".
Talvez por isso Bolsonaro tenha o apoio da elite brasileira, "que é diferente da americana ou da francesa. Não se vê um apoio total a Le Pen em Paris, onde estão os intelectuais. Também não se vêm um apoio a Trump em Manhattan ou Nova Iorque. Mas foi em Jardins [São Paulo, zona nobre], onde o metro quadrado é mais caro, foi que a deputada [Carla Zambelli] saiu caçando um homem de arma em punho, feito Charles Bronson".
"Há uma mágoa em relação a Lula por ele ter feito emergir uma classe que era invisível. O filho da patroa passou a estudar com o filho da empregada na mesma universidade pública", explica Álvaro Filho. "E isso causa uma certa confusão, porque o Brasil ainda tem uma entrada social e uma entrada de serviço em cada prédio e em cada apartamento". Uma realidade que está a ser replicada em Portugal para atender a elite brasileira que veio para cá, garante Álvaro Filho, dando o exemplo de Cascais.
O escritor recorda uma curta-metragem do cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho, também de Pernambuco, "Recife Frio", que ficciona uma cidade tropical que se transforma num local frio, chuvoso e triste. "Subitamente, o melhor lugar para dormir na casa passa a ser o quarto de serviço, porque era o mais quente, não tinha janelas nem ventilação. Então os patrões vão dormir no quarto de serviço e põem os empregados no quarto principal", ri.
"A elite brasileira vem para Portugal e alia-se ao Chega, mesmo que o objectivo do Chega seja mandar todo o mundo para casa, eles inclusive", afirma. "Mas têm de se diferenciar de alguma maneira, para não serem iguais ao resto dos imigrantes. É o sapo a abraçar o escorpião e a acreditar que o escorpião vai mudar a sua natureza", afirma.
O que já está a mudar são as mais altas figuras internacionais. E se alguma coisa pode ajudar Lula, "são as relações internacionais". "Lula tem um grande apoio internacional, foi muito rápida a resposta dos diversos países [...] Vamos perceber uma diferença de Portugal com o Brasil, e Lula precisa desses parceiros", assegura Álvaro Filho.
Aos 77 anos, Lula moderou o seu discurso. De resto, diz José Couto Nogueira, "o poder é rejuvenescedor". E, como lembra Álvaro Filho, ao contrário dos vices anteriores, que eram empresários, desta vez Lula escolheu um político, Geraldo Alckmin.
Apesar da crise internacional, os jornalistas Álvaro Filho e José Couto Nogueira acreditam que Lula da Silva tem grandes hipóteses de fazer um mandato estável e conseguir reproduzir o que fez no passado. "Não vai inventar a roda" e "vai ter de fazer um afago aos eleitores".
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