Como ganhar umas eleições e perder um país.
Este poderia ser o título deste artigo não fosse o caso de o país ser o Reino Unido e do vencedor das eleições ser Boris Johnson. Um e outro têm currículo em matéria de surpreender pelo que, apesar de evidências preocupantes, tudo isto ainda pode acabar bem.
Mas vamos primeiro definir o que é “tudo isto”.
Já não é de ficar ou de sair da União Europeia que se trata. Eles, britânicos, e nós, europeus, já demos para esse peditório e já perdemos a conta às oportunidades anunciadas e perdidas de “ter as coisas feitas”, para parafrasear o slogan com que Boris Johnson conduziu os Tories [Partido Conservador] a uma vitória convincente nas eleições de ontem.
Tudo isto é agora sobre “como as coisas são feitas”, no que respeita à Europa e à relação de Inglaterra com o resto do mundo, e sobre o próprio reino. É que a vitória de Boris veio com uma fatura chamada nacionalismos, não o grande nacionalismo britânico, mas aquele que durante séculos provocou guerras e golpes palacianos entre ingleses, escoceses, irlandeses e galeses. É disso que se trata.
Olhando para a noite de ontem, só uma pessoa podia estar tanto ou mais feliz que Boris e essa pessoa era a líder dos nacionalistas escoceses, Nicola Sturgeon. Podia e estava. O Partido Nacional Escocês (SNP), partido que lidera, terá 48 dos 59 lugares que a Escócia ocupa em Westminster – o que é uma maioria muito expressiva da onda nacionalista. Sturgeon não perdeu tempo logo na sua primeira intervenção: “A Escócia enviou uma mensagem muito clara: Não queremos um Governo de Boris Johnson, não queremos deixar a União Europeia e queremos que o futuro da Escócia fique nas mãos da Escócia”.
Em 2021 há eleições na Escócia e, se nada mudar, um novo referendo à independência poderá voltar a estar em cima da mesa.
Na Irlanda do Norte houve um pouco de tudo, num país onde há um pouco de tudo, quer no que respeita à religião (católicos versus protestantes), quer no que respeita à política (defensores da integração no Reino Unido ou unionistas e nacionalistas).
O círculo de Belfast Norte foi ganho pelo Sinn Féin ao líder do DUP (Partido Unionista Demorcrático), Nigel Dodds. Belfast Sul será representado pelo SDLP, os nacionalistas moderados. E em North Down serão os não alinhados da Aliança (que promovem a convergência entre católicos e protestantes) a representar o círculo.
Nas contas globais, antes das eleições de ontem existiam no parlamento inglês 11 representantes da Irlanda do Norte a favor da União (integração no Reino Unido) versus 7 nacionalistas (pela autonomia da Irlanda). Depois dos votos contados, essa relação passou a ser de 8 unionistas e 9 nacionalistas.
Em Gales, o Plaid Cymru, o partido nacionalista galês, elegeu quatro representantes.
Com estas contas, não será difícil antecipar que mais que o Brexit, ou mesmo à boleia do Brexit, um Reino Unido "das nações" estará em efervescência na próxima legislatura.
Como perder umas eleições e depois de ter ganho um partido. Ou a Paixão de São Jeremias
É preciso recuar a 2015 para entender a paixão deste Partido Trabalhista de Corbyn que ontem sofreu uma derrota expressiva e mesmo histórica ao perder representantes em círculos onde isso não tinha acontecido nos últimos 100 anos. Em 2015, Jeremy Corbyn já tinha 66 anos, muito caminho político debaixo das solas dos sapatos, estava longe de ser um principiante. Mas foi ele que devolveu aos trabalhistas um “purismo” socialista visto, e saudado, como uma linha purificadora daquela outra esquerda que o deixou de o ser, a terceira via de Blair e dos seus herdeiros.
Corbyn ganhou o partido e, dois anos depois, não tendo ganho as eleições, conseguiu deixar o Parlamento inglês literalmente "pendurado", condicionando a primeira-ministra Theresa May com os resultados que hoje conhecemos. Os 40% dos Labour nas eleições de 2017 souberam, para muitos, a vitória e Corbyn, um pouco em modo Bernie Sanders nos Estados Unidos, tornou-se idolatrado por muitos ativistas de esquerda, nomeadamente os mais jovens. É isto o socialismo, é isto, pensaram muitos. E, em vários momentos, foram as suas profundas convicções socialistas que o levaram a conquistar eleitores e simpatizantes - um dos casos apontados é o do incêndio da torre de Grenfell, processo doloroso em Inglaterra quer pelo número de vítimas, quer pela exposição das fragilidades de um certo capitalismo. Este é um território em Corbyn está como peixe na água, fosse tudo assim tão óbvio.
Não é - e o Brexit, além de não ser óbvio, era terreno pantanoso. Corbyn nunca escondeu a sua pouca simpatia pela Europa, mas também nunca pensou que um dia tivesse de escolher entre duas antipatias, a quem tem à Europa e a que tem aos promotores do Brexit como ele veio a acontecer.
A 31 de outubro, no lançamento da sua campanha, o líder trabalhista declarou que "a grande questão destas eleições é: de que lado é que estamos?". Uma péssima pergunta para quem tinha dificuldades em responder à primeira pergunta que era o Brexit.
O grande problema da linha política do líder trabalhista nestas eleições foi apenas um: não ter uma. E como não há nada que a natureza humana odeie mais que o vazio, o espaço foi preenchido pelo resto e o Labour verteu votos para todos os partidos, incluindo os conservadores. Blyth Valley deu o mote logo no início da noite eleitoral: este círculo eleitoral, fundado em 1950, foi sempre sinónimo de vitória para o Partido Trabalhista britânico. Até ontem, dia em que o candidato conservador Ian Levy venceu a candidata trabalhista Susan Dungworth. Também Sedgefield, o círculo por onde foi eleito nos vários mandatos Tony Blair, a eleição foi decidida a favor dos conservadores.
"A culpa foi do Brexit" terão pensado muitos trabalhistas durante a noite de ontem. É duvidoso que seja verdade. A derrota do Partido Trabalhista ontem começou a desenhar-se ainda no Parlamento da era Theresa May, com acordos sucessivamente falhados. Entre travar os outros Tories que se adivinhavam à espreita, e que são estes Tories de Boris Johnson, e travar o Brexit, os trabalhistas apostaram na segunda hipótese. O problema é que o fizeram sem que o líder do partido tivesse ele próprio essa convicção assumida. E quando se olham os eleitores olhos nos olhos, essas coisas percebem-se.
A vitória de Cummings. Outra vez
O que fez destas eleições também uma batalha de chavões ou slogans.
E entre quem sabe o quer dizer e quem sabe o que não quer dizer, geralmente ganham os primeiros. Não foi diferente em Inglaterra e, no que respeita aos trabalhistas, decorreu, mais uma vez, da dificuldade de Corbyn e dos corbynistas clarificarem o que pensavam e o que queriam fazer no que respeitava ao Brexit.
O Labour fez campanha com o memorável (só que não) slogan: É tempo de uma mudança real [It’s time for real change]. Então vejamos: podia ser sobre impostos, habitação, educação, agricultura. E, sim, também podia ser sobre a questão mais estrutural, mais definitiva e que realmente importava nestas eleições: o Brexit. Mau timing numa altura em que os ingleses procuravam, mais que tudo, um compromisso, fosse qual fosse o sentido.
Do outro lado, Dominic Cummings, assessor e mentor de Boris Jonhson na campanha de 2016 do Brexit, deixou escola. Se há três anos a palavra de ordem dos brexiters foi “take back control” [recuperar controlo], desta vez foi um indubitável “get Brexit done” [fazer acontecer o Brexit].
Disseram ao que iam e quem ouviu, e concordou, não precisou de segundas leituras.
O que fará Johnson com esta vitória?
O líder conservador conseguiu uma vitória expressiva. Pediu uma maioria absoluta para fazer o que tinha de ser feito - e deram-lhe. Maior que a (pálida) vitória de Cameron em 2015 – essa mesma, a que levou ao referendo do Brexit, que levou ao 'sim' ao Brexit e que levou a três anos de “quero sair e quero um pónei”. Maior que a de John Major em 1992. E só batida pela da dama de ferro, Margaret Thatcher em 1987, back in the days.
Os analistas esperam um Boris Johnson muito ativo na frente fiscal, onde certamente investidores e classes mais endinheiradas esperam boas notícias, mas com raides que, com ele, nunca serão ao acaso, de medidas populares, nomeadamente no investimento público e no corte de impostos. A receita para manter o poder não é assim tão diferente de país para país – é escolher a quem se precisa agradar e quando, sendo que uns países podem mais que outros.
Uma visão pragmática ou até maquiavélica que não anula o pensamento político que o líder conservador tem, nem as medidas que daí irão decorrer. Sobre os principais alvos de investimento público, lá como cá, os temas da saúde com a prioridade ao NHS que é o Sistema Nacional de Saúde britânico e de segurança estarão na ordem do dia. Como ironizava Matt D’Anconna, analista do site inglês Tortoise, será algo que pode convergir num slogan como “dar segurança aos pacientes e aterrorizar os criminosos”.
Johnson não escondeu, pelo contrário, que se via como o Churchill na frente de batalha que tem sido o Brexit. Não gastemos linhas em discussões extemporâneas, mas usemos apenas um paralelismo, que é válido: Churchill ganhou a guerra e perdeu as eleições, Boris pode muito bem ter ganho as eleições e descobrir que perdeu a guerra. Qual guerra? A que vai importar uma vez esteja resolvido o tema que não tem deixado nos últimos três anos britânicos – e europeus, já agora – pensar noutro futuro que não a próxima votação do Brexit e o calendário daí resultante.
Com o Brexit politicamente arrumado – não será tão simples assim, mas destas eleições e desta maioria absoluta isso pode, pelo menos, esperar-se –, Boris terá de regressar a um país que tem problemas e desafios mais sérios para resolver que não apenas a pertença à União Europeia. Um país socialmente partido entre novos e velhos, cosmopolitas e rurais e, mais importante que tudo isso, entre ingleses, escoceses, irlandeses e galeses.
Também um país com novos atores políticos. A começar pelo líder da oposição. Jeremy Corbyn, por enquanto fica, mas anunciou durante a madrugada que não vai continuar a liderar os trabalhistas. É de supor que os corbynistas levarão vantagem na sucessão, mas esse é mais um tema em aberto para os próximos meses.
Também nos Liberais Democratas a hora é mudança com a saída de Jo Swinson, a líder que não se conseguiu fazer eleger no seu próprio círculo eleitoral.
E, por trágico-cómico que possa ser, personagens como Nigel Farage, o ex-líder do Ukip, o partido que promoveu em primeiro lugar a saída do Reino Unido da UE, continuam em órbita numa versão inglesa da expressão "vão andar por aí".
This England is hard to love [Esta Inglaterra é difícil de amar], escreveu o jornalista inglês, Chris Cook, o que é um facto. O Brexit poderá ter inscrito o nome de Boris Johnson nas páginas da história, mas será pelo futuro da União que será julgado. Mas se é para ser sentimental é bom que se diga que sem amor dificilmente acabará bem.
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