2 139 625 votos. Foi esta a diferença entre o vencedor da segunda volta das eleições presidenciais brasileiras, Luiz Inácio Lula da Silva, e o derrotado, Jair Bolsonaro. Trata-se da margem mais curta entre dois candidatos presidenciais da história do Brasil desde a redemocratização em 1985. A eleição foi extremamente disputada e participada. Lula assegurou a marca de candidato mais bem votado da história do Brasil, superando, pela primeira vez, os 60 milhões de votos. Bolsonaro, apesar da derrota, conseguiu uma votação mais expressiva do que há quatro anos quando foi vencedor.

Lula da Silva venceu, mas a sua tarefa no futuro próximo será hercúlea. Para ser bem-sucedido no seu terceiro mandato enquanto presidente do Brasil (Lula foi presidente entre 2003-2006 e 2007-2010), o candidato do Partidos dos Trabalhadores (PT) terá de superar duas polarizações: uma a nível interno e outra a nível externo. Só assim conseguirá ter condições para governar e construir um caminho para o país nos próximos quatro anos. 

A polarização a nível interno será a mais importante. Lula da Silva recebe um país extremamente dividido, cujas cisões já vêm desde 2013 e que resultaram numa sucessão dramática de eventos políticos: destituição de Dilma Rousseff (2016), prisão de Lula da Silva (2018) e vitória de Jair Bolsonaro para presidente do Brasil (2018).

Bolsonaro acirrou esta polarização ao fazer dela uma estratégia política para mobilizar o apoio da sua base. Tendo concorrido e vencido as eleições de 2018 enquanto candidato “anti-sistema”, procurou comportar-se retoricamente também como um presidente “anti-sistema”. Fê-lo criando tensões com os media, universidades, agências estatais, outros órgãos de poder, governadores estaduais e oposição. A sua retórica incidiu também sobre o sistema democrático, tendo ameaçado várias vezes de não aceitar os resultados em caso de derrota.

Até à hora de publicação deste artigo, Bolsonaro não reagiu aos resultados eleitorais, deixando no ar a possibilidade de não reconhecimento da derrota. Este rito da democracia é um momento fundamental no processo de transição pacífica de poder. A sua não ocorrência só contribui para acirrar ainda mais a polarização já existente. A sua base mais radical poderá ver no comportamento do atual presidente um sinal para perturbar a normalidade democrática do Brasil. A manifestação de camionistas em vários estados brasileiros é uma amostra das atividades que podem acontecer caso a radicalização da frente bolsonarista se mantenha viva.

Dado que Bolsonaro fará pouco para contribuir para o processo de acalmia política no Brasil, esse esforço terá de vir principalmente do novo presidente. Entre os vários pontos importantes dessa estratégia de conciliação nacional, há dois especialmente relevantes. Em primeiro lugar, a formação de governo. Lula da Silva já indicou que o futuro de governo não será só do PT, tendo repetido essa intenção no discurso de vitória. É possível que representantes do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e do União Brasil (UB) possam vir a integrar um futuro governo. Os nomes mais falados são os de Simone Tebet (MDB) para o Ministério da Educação e de Henrique Meirelles (UB) para a Economia.

Estas opções seriam importantes para garantir a abrangência do governo, mas também para cimentar alianças com os respetivos partidos no Congresso. Lula terá, contudo, de o fazer preservando a liderança do PT de forma a manter a confiança da sua base que esteve consigo desde o início e nos momentos mais difíceis.

Em segundo lugar, o destino de Bolsonaro. O candidato derrotado e atual presidente enfrenta várias ações judiciais e adivinham-se mais com o levantamento do sigilo de 100 anos aplicado a vários atos durante a sua presidência. Sem imunidade, Bolsonaro poderá vir a ser formalmente processado e julgado. A forma como o governo e o sistema político lidarem com Bolsonaro terá inevitavelmente um impacto na polarização. A questão será como gerir esse impacto. Há várias possibilidades: amnistia, comissão de justiça e verdade, ou investigações judiciais. Todas estas opções estão ainda em aberto. 

Na frente internacional, Lula da Silva encontrará também um ambiente altamente polarizado. O mundo é hoje bastante diferente daquele que Lula encontrou em 2003 quando foi eleito presidente pela primeira vez. Nessa altura, apesar da tensão com os EUA por causa da invasão do Iraque em 2003, havia um espaço para cooperação internacional, mesmo entre competidores. Havia ainda uma aposta generalizada na globalização e nos seus benefícios. A China, por exemplo, tinha acabado de entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC). Hoje, a cisão entre EUA e União Europeia (UE) de um lado e China e Rússia de outro é clara. Essa cisão é política, militar e económica. Líderes europeus e norte-americanos apontam cada vez com mais força no sentido da desvinculação com as economias chinesa e russa.

Para o Brasil, este cenário está longe de ser ideal. Sendo um país de poder médio nas relações internacionais, o Brasil tende a apostar numa relação cordial e equidistante entre os vários países de forma a retirar benefícios para a sua economia. Esta crescente confrontação nas relações internacionais forçará o Brasil a fazer escolhas que serão necessariamente desconfortáveis.

Por um lado, o Brasil está nos BRICS [países de mercado emergente] com a China e Rússia, tem a China como principal parceiro económico e partilha com estes países uma desconfiança em relação à ordem mundial construída pelos EUA e Europa. Por outro lado, sendo uma democracia, defensor da lei internacional e interessado em boas relações económicas com EUA e Europa, o Brasil terá pouca margem para alhear-se destes dois atores internacionais.

Lula da Silva demonstrou nos seus dois mandatos anteriores que tem particular disposição para as questões internacionais. Essa experiência acumulada ser-lhe-á útil na navegação de um ambiente internacional crescentemente polarizado. As boas notícias são que Lula encontrará uma comunidade internacional mais entusiasta do governo brasileiro do que aconteceu durante a gestão de Bolsonaro, que descurou, em larga medida, as relações externas do Brasil. Neste contexto de tensão internacional, é provável que Lula da Silva comece por se concentrar na sua vizinhança, principalmente a Argentina. A América do Sul foi uma das áreas mais esquecidas por Bolsonaro e, por razões políticas e económicas, Lula quererá revigorar essas relações.

Os dados da noite eleitoral mostram que a vitória de Lula da Silva não marcou certamente o fim da polarização nacional brasileira, mas, caso seja bem-sucedido, o seu governo poderá impulsionar o princípio do fim destas divisões. 

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