Caetano Veloso é um tipo pretensioso. Não fomos nós quem o disse; foi ele, e repetiu-o por mais um par de vezes ao longo do primeiro de três concertos no Coliseu dos Recreios, parte da digressão em torno de “Meu Coco”, álbum que editou em 2021. Disse-o como graçola auto-depreciativa e disse-o para vincar a posição que detém no cânone da música, não só brasileira, como de todo o planeta. Só se assume pretensioso quem tem obra que o mostre.
Quem é de facto pretensioso nunca o diz e nunca a tem; esconde a mediocridade com o seu orgulho. Caetano tem essa obra e poderíamos enumerá-la de alto a baixo, referir discos como “Transa”, movimentos como a tropicália, estórias como o interrogatório a que foi sujeito pela ditadura militar brasileira: «Perguntado se sabe cantar o hino nacional com a melodia de 'Tropicália', respondeu que é impossível, porque os versos do hino nacional são decassílabos e os versos da 'Tropicália' têm oito sílabas poéticas»...
Esse escarro na cara da autoridade só seria possível sendo pretensioso, sendo Caetano, sendo mestre na arte da palavra poética. A esses pretensiosos de coração perdoamos até o atraso de quinze minutos, tempo suficiente para deixar alguns fãs nervosos, o nervosismo a dar lugar a um rosto aceso com o cair do pano. O Português é o negro dentre as eurolínguas, canta logo depois, um dos versos do tema que dá título ao disco e ao espetáculo: tão negro quanto a mulher é o negro do mundo, já diziam John Lennon e Yoko Ono, se bem que com recurso a uma palavra bem mais ofensiva. O português pode não ter o impacto do inglês, do francês, do castelhano, até do italiano, mas desafiamos qualquer um a ser mais poetas do que nós (podem ser tão poetas como nós, isso levamos na boa).
A primeira meia hora do concerto passa tão de repente que, mesmo detestando o músico (uma blasfémia), não daria para nos sentirmos cansados. 'Anjos Tronchos', toda ela tensão rock, espalha pelo Coliseu uma mensagem de agonia em relação à modernidade, completa com uma referência a Billie Eilish. O passado começou a escrever-se com 'Sampa', o nome de Rita Lee cantado e a doer mais agora que já não a temos connosco, a canção extremamente aplaudida por quem preferiria ouvir apenas os clássicos. Caetano, porém, 81 anos de baiano do coco aos pés, não quis que isto fosse um mero reaproveitar da fama antiga; esses 81 anos serão cantados pelo que já foi, mas também pelo que está a ser agora.
Se 'Muito Romântico' começou a cappella e mereceu igualmente inúmeros aplausos, pertenceu a 'Não Vou Deixar', base jazz que não destoaria num disco dos BadBadNotGood, o momento mais bonito, e musicalmente mais rico, da noite. O refrão a desaguar em brincadeira e desafio: Apesar de você dizer que acabou / Que o sonho não tem mais cor / Eu grito e repito: Eu não vou!, José Régio a agradecer desde o túmulo, o artista a despir o casaco e a merecer assobios, femininos e masculinos, da plateia (como que para lembrar que, em 2022, Caetano assumiu, sem assumir de facto – porque um rótulo é uma coisa ruim – a sua bissexualidade). Plateia essa que se apresentou híbrida: para cada grupo de imbecis que, nos camarotes, se dedicavam a tirar selfies com flash, havia alguém que, com a maior doçura do mundo, exclamava oh meu Deus, foda-se, lindo! aquando da aparição no alinhamento de 'You Don't Know Me'.
Da primeira vez que se dirigiu ao público, Caetano salientou a importância que Portugal teve, «para a cabeça e o coração» do próprio. Uma importância tal que se sentiu na obrigação, ou na vaidade (foi aqui que ele se referiu a si mesmo como pretensioso pela primeira vez, e queremos acreditar que sentiu ambas as coisas), de cantar um fado, chamando ao palco o guitarrista André Dias e uma outra estrela, Carminho, que esgotou esta semana um Coliseu.
«Acho que contribuí para que a juventude portuguesa dos anos 70 e 80 voltasse a amar o fado», afirmou, e como verificar a veracidade dessa declaração dava uma trabalheira desgraçada, mais vale acreditar, mesmo. Até porque é mais bonito acreditar quando o fado em questão é 'Você-Você', composto após uma conversa com a fadista, conforme explicou.
Em 'Araçá Azul', bem que tentou que os presentes cantassem, mas as gargantas soaram tímidas; foram-no menos com a obrigatória 'O Leãozinho'. Um jogo interessante de luzes pontuou 'O Pulsar', tema baseado num poema visual de Augusto de Campos, que Caetano apelidou de «o maior poeta vivo brasileiro». Antes de 'A Bossa Nova É Foda', o músico aproveitou para saudar Jaques Morelenbaum, que «quase [o] curou da [sua] timidez musical», lançando-se à canção com uma urgência assinalável.
Não poderia faltar 'Baby', com gritos de viva Gal! vindos das bancadas, o «para sempre» acrescentado por Caetano ao nome da falecida artista. 'Menino Do Rio' pode não ter superado a versão feita por João Gilberto (seria dificílimo), e o bis da praxe, com 'Mansidão' e o funk de 'Odara', colocou um ponto final naquela que foi uma hora e meia de um Narciso que, mais que achar feio o que não é espelho, o virou para a plateia para que esta se pudesse rever naquilo que cantava – e ser tão feliz como os Narcisos deste mundo. Caetano Veloso pode dizer que é pretensioso à vontade. É que Caetano Veloso é aquilo que diz ser a bossa nova.
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