O Grupo Vita, estrutura autónoma criada pelos bispos portugueses para prevenir situações de abusos sexual na Igreja e acompanhar vítimas que os tenham sofrido, recebeu nas últimas semanas um pedido de ajuda por parte de um agressor, “que aceitou um processo de ajuda”, e registou um caso em que “a abusadora foi uma mulher, uma freira”. E já sinalizou 42 situações nas estruturas da Igreja e enviou 15 casos para a Procuradoria-Geral da República (PGR) e para a Polícia Judiciária (PJ).
As novidades foram dadas pela coordenadora do Grupo Vita, a psicóloga Rute Agulhas, em entrevista ao programa 7MARGENS, na Antena 1, antecipando a divulgação do primeiro relatório daquele organismo, que será apresentado publicamente no próximo dia 12, em Lisboa.
A diferença do número de casos sinalizados para os que foram entregues à PGR e PJ “é porque em muitas situações o suspeito” já faleceu, esclareceu Rute Agulhas. Quanto aos casos do agressor e da freira abusadora, Rute Agulhas diz que eles introduzem “uma diversificação das situações” de pedidos de ajuda recebidos pelo Grupo Vita. “São situações que muitas vezes são mais residuais” mas que agora “começam pouco a pouco a surgir”. No caso do agressor, a coordenadora sublinha a importância de ter aparecido este caso, porque esse é um caminho mais difícil ainda de trilhar”. Até porque defende, “não podemos prescindir do apoio aos agressores”, até como forma de prevenir novos abusos.
Rute Agulhas deu outra novidade: no dia 12, o Vita vai apresentar também um extenso documento intitulado “Conhecer, Prevenir, Agir – Manual de prevenção da violência sexual sobre crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal”. Este manual pretende propor um conjunto de práticas que ajudem no conhecimento desta realidade, da sua prevenção e da denúncia e acompanhamento dos casos de abuso.
De acordo com Rute Agulhas, o manual pretende dar instrumentos para “conhecer o enquadramento legal, civil e canónico desta problemática”, bem como “as grandes dinâmicas associadas à violência sexual sobre crianças e adultos vulneráveis na perspectiva das vítimas, mas também saber e compreender melhor o funcionamento das pessoas que cometem crimes de natureza sexual”.
No domínio da prevenção, o documento propõe, entre outras coisas, “como elaborar mapas de risco, como estabelecer códigos de conduta e o que fazer junto das crianças e dos jovens na perspectiva de programas mais centrados” nessas faixas etárias.
Nos modos de agir, o manual diz o que se deve fazer “com os canais de denúncia”, os que devem ser concretizados “na perspectiva da detecção e sinalização e dos vários tipos de acompanhamento de que as vítimas podem beneficiar”.
Depois de, no final de Outubro, o Vita ter informado que recebera 62 pedidos de ajuda – todos de vítimas, na maioria de pessoas adultas que terão sido vítimas de violência sexual na infância e adolescência em estruturas da Igreja Católica em Portugal – Rute Agulhas diz que estão já referenciados vários casos novos. Mas nos próximos dias haverá ainda atendimentos presenciais e por isso é prematuro actualizar já o número de pedidos de ajuda.
Vários outros dados recolhidos pelo Grupo Vita confirmam tendências verificadas já pela Comissão Independente (CI) que, em Fevereiro, apresentou o relatório sobre abusos sexuais de crianças na Igreja Católica em Portugal: muitas pessoas têm ainda medo de falar do facto de terem sido abusadas – e têm mesmo medo de falar ao telefone, por exemplo – e muitos abusadores justificavam o abuso com argumentos como “é Deus que quer, é vontade de Deus, é uma forma de agradares a Deus, Deus quer que os homens se amem”.
Outro campo em que há resultados com dados semelhantes é o das consequências do abuso nas vítimas: problemas de sono, disfunções sexuais e tentativas de suicídio são relativamente frequentes. Outro campo é o da alteração a nível das crenças religiosas, o “dano espiritual”. Muitos dizem “deixei de acreditar em tudo”, outros que acreditam em Deus mas não conseguem “entrar numa igreja” ou ver um padre. Mas há quem continue a ter fé – no caso da CI, esta era mesmo a maior parte dos casos.
Na entrevista, Rute Agulhas defende ainda que “deve ser feito um estudo” sobre os abusos sexuais “a nível nacional”, uma das medidas sugeridas pela CI e que, apesar de audiências de vários ministros e no Parlamento, não avançou. A coordenadora do Grupo Vita diz que este organismo continuará a insistir nesta ideia, bem como na concretização de medidas preventivas. “Temos de pensar em medidas antes de o problema acontecer”, afirma. “Em Portugal, este paradigma da prevenção primária é oculto, não se fala, não se pensa sobre isso.” Além disso, acrescenta, a psicóloga sente que por vezes “há uma atenção selectiva: ou seja, com uma lupa olhamos para o que está a acontecer na Igreja e parece que estamos a desvalorizar e a não dar o mesmo impacto a esta realidade que acontece” em outros sectores da sociedade – famílias, escolas, desporto, etc.
A entrevista é ainda ocasião para Rute Agulhas explicar o que o Vita tem feito ao nível da formação para a prevenção e para anunciar outras duas iniciativas: para Janeiro, o Vita está a preparar um documento sobre indemnizações; e em breve, na página do organismo na internet, o Vita pretende publicar quatro estudos de investigação sobre a realidade dos abusos, também como forma de contribuir para este conhecimento.
Na parte final da entrevista, à semelhança do que acontece semanalmente, Rute Agulhas comenta a notícia do 7MARGENS segundo a qual a Assembleia da República atribuiu o Prémio Direitos Humanos 2023 à Plataforma de Apoio a Jovens ex-Acolhidos e ao Prochild – Laboratório Colaborativo, a par da Medalha de Ouro Comemorativa do 50.º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos aos membros da extinta Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa.
A coordenadora do Vita sugere ainda o filme Três Cartazes à Beira da Estrada, filme de Martin McDonagh, de 2017, que ganhou vários prémios (entre os quais os Óscares para melhor actriz e melhor actor secundário), que se baseia na história verídica de Marianne Asher-Chapman, uma mãe do Missouri, que desde 2003 procura os restos mortais da filha.
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