Recebeu-nos no escritório da Avenida da Liberdade, em Lisboa, para falar sobre os tempos loucos que atravessa o país e a justiça, a braços com megaprocessos que envolvem aquelas que, durante anos, foram consideradas as elites nacionais.

Na política pertenceu ao Movimento Democrático de Libertação de Portugal, filiou-se no PSD inspirado por Sá Carneiro, conspirou contra Balsemão. Apoiou a candidatura de Maria José Nogueira Pinto (CDS) à câmara de Lisboa e entregou o cartão de militante durante liderança de Marques Mendes, hoje seu rival no comentário televisivo. Foi mandatário de António Costa nas eleições municipais e esteve ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa na campanha para a presidência da República, como fez com Cavaco Silva.

Na advocacia, José Miguel Júdice, o J da PLMJ, sociedade de advogados, foi bastonário entre 2002 e 2005 e faz parte da direcção da Associação Portuguesa de Arbitragem. Foi o advogado da Expo 98 e de alguns dos principais investimentos realizados no e com o país. Especializou-se em negociação, um tema que desenvolve no livro "À Conversa sobre Negociação", escrito a meias com Pedro Fontes Falcão, e que descreve a arte negocial ao longo da história.

Hoje é possível vê-lo todas as segundas à noite na TVI24, onde comenta a actualidade nacional e internacional, rivalizando com Marques Mendes, também advogado e ex-companheiro de partido, que comenta na SIC. "Marques Mendes tem uma vantagem: a SIC é o canal mais da classe política e as pessoas vão ali ouvi-lo para perceber o que Marcelo manda dizer, já várias vezes lhe chamei o boneco do ventríloquo. Não tenho a máquina de Marques Mendes, mas dizem-me que ele tem em regra menos 300 mil pessoas do que eu", afirma Júdice.

Lobby, corrupção, Ministério Público, economia e política. Nesta entrevista falou-se um pouco de tudo e mais viria, não tivesse chegado a hora de almoço e um compromisso no Eleven, o restaurante de que é sócio e onde ia almoçar neste dia, porque, além de se comer bem, "tenho desconto", diz bem-disposto. Num mundo às avessas, a conversa começou pelo tema do momento: futebol.

"Sou da Académica - entre os grandes sou do Benfica, porque comecei a gostar de futebol no tempo do Eusébio, e na minha geração quem não era do Benfica devia ter algum defeito"

Vivemos tempos loucos, o mundo a desfazer-se e cá na terra só se fala de futebol?

Sou do Benfica. Aliás, sou da Académica - entre os grandes sou do Benfica porque comecei a gostar de futebol no tempo do Eusébio e na minha geração quem não era do Benfica devia ter algum defeito. Estou a brincar [risos]. Mas o que está a acontecer não me admira... Há mais de 30 anos pediram-me para escrever um artigo sobre futebol para um jornal desportivo que entretanto acabou – não acabou por causa do meu artigo, de toda a maneira. Falava-se muito no escândalo de Macau e fiz uma das minhas provocações, escrevi que no futebol deve ser como em Macau: tudo detido para averiguações e depois soltam-se os que provarem que estão inocentes. Não acharam graça à brincadeira e não publicaram o artigo. Compreendo: com o futebol, tal como com a religião, não se brinca.

Digo do futebol o que se diz das salsichas: quem gosta, o melhor é não visitar uma fábrica para não saber como são produzidas

Já foi convidado para ocupar cargos com algum relevo?

Dois queridos amigos, candidatos à presidência do Benfica em épocas diferentes, convidaram-me para presidente da Assembleia Geral. Agradeci com muita ternura, mas recusei, porque de futebol só me interessa o que se passa naquela parte verde. Nunca tive grandes ilusões sobre o futebol e não esqueço outro amigo, não vou dizer de que clube, que há muitos anos dizia do seu presidente: "Ó Zé Miguel, ele não compra os árbitos, mas tem um esquema montado de tal maneira, que se um árbitro tem dores de dentes ele arranja um dentista, se a filha do árbitro tem de entrar num colégio com poucas vagas, ele encontra uma forma"... Em Portugal e nos outros países o futebol funciona assim. Por isso eu digo do futebol o que se diz das salsichas: quem gosta, o melhor é não visitar uma fábrica para não saber como são produzidas. E mais não digo.

Manuel da Costa Braz, que foi Alto-Comissário contra a Corrupção...

Muito amigo e que muito admirei, mas não o vejo há muitos anos. Cheguei a ser advogado dele numa patifaria que lhe fizeram, ainda estou para descobrir porquê, uma coisa que apareceu num jornal, com chamada de primeira página, a acusá-lo de estar metido em esquemas de desvios de dinheiro em Cahora Bassa. Ficou devastado, era completamente falso. Fui seu advogado e ganhou.

... Costa Braz diz que há muitos anos a corrupção que existia era exactamente no futebol.

Já havia muita nas câmaras e também ao nível do Estado.

Muita gente pede dinheiro para entregar a políticos e depois não entrega, fica com ele

Hoje generalizou-se?

Sabe, penso que há muita gente que é corrompida sem saber.

Acredita mesmo nisso?

Eu explico: muita gente pede dinheiro para entregar a políticos e depois não entrega, fica com ele. Não quer dizer que alguns não entreguem. Há até uma história de alguém que dizia a quem estava a pagar para ganhar: "Olhe, às vezes o ministro não consegue... Mas ele é muito honesto e se não conseguir devolve o dinheiro". Ele guardava o dinheiro, obviamente não entregava nada ao ministro, e se o cliente tinha sucesso ficava com ele, se não tinha sucesso devolvia a quantia. Imagine o que é fazer isto num concurso onde há, por exemplo, quatro concorrentes. Recebia dos quatro e um ganhava sempre. A corrupção é um flagelo e estou à vontade, porque quando era bastonário, na altura em que rebentaram as histórias da pedofilia, disse sempre que o pior crime é o da corrupção. Politicamente. Por isso uma das coisas que mais me choca é chamar corruptor passivo ao burocrata, ao ministro ou ao presidente da câmara, e corruptor activo ao empresário – isto segundo a lei.

Ou seja?

Significa que o tipo que recebe o caroço é o corruptor passivo, quando em 99% dos casos são os políticos, os autarcas, os burocratas que vão pedir dinheiro aos empresários. Um cliente meu disse-me uma vez: "Eu tenho de dar sempre porque todos dão. É um imposto. Pagaria para não dar, mas todos têm de dar porque o mecanismo está feito assim".

Eu diria que 10% das pessoas são sempre sérias, 10% das pessoas são sempre desonestas e 80% das pessoas depende

Porque é que o empresário não nega, pura e simplesmente?

Não, é ao contrário. O mundo pode estar cheio de tipos desonestos, mas se o decisor for honesto, não há corrupção. O corruptor activo é o burocrata, porque é ele que, em regra, pede dinheiro. E era assim que devia estar na lei. Se alguém quiser dar e o burocrata, o ministro ou o presidente de câmara for sério, não há corrupção. A luta contra a corrupção não se faz nas empresas, faz-se no Estado. Mas é isso que ninguém quer ver. Depois, se os corrompíveis tiverem medo, se tiverem uma ética, se a selecção do pessoal político tiver um vector de seriedade, a corrupção baixa imenso. Os mesmos empresários que em países onde não há corrupção não corrompem, vão para países do Terceiro Mundo e corrompem. Não estou a desculpar os empresários, e também há gente muito séria na classe política, mas com enormes dificuldades. No Brasil é sintomático: quem não recebesse dinheiro das empresas não conseguia fazer política. Então triunfavam. A selecção natural faz-se a favor daqueles que têm mais dinheiro e por isso todos acabam por fazer o mesmo e a sociedade passa a achar normal. Até chegar alguém que diz que não é normal. Eu diria que 10% das pessoas são sempre sérias, 10% das pessoas são sempre desonestas e 80% das pessoas depende. Portanto, há que lutar contra a corrupção onde é possível, que é naqueles que recebem: os burocratas, os políticos, os presidentes de câmara.

Não se sente culpado, enquanto advogado, pelo nível a que chegou a corrupção?

Posso dizer-lhe que nada. Há 20 anos que não faço criminal, faço arbitragens e coisas do género. Fiz durante uma fase da minha vida, mas fazia sobretudo actividade de corporate, concursos públicos, contratos, empresas e grandes empresas, aquilo a que muitas vezes se chama - mas, nós, advogados não gostamos - advogado de negócios.

Não gostam porquê?

Porque achamos que chamar advogado de negócios a um advogado é insultá-lo. Um advogado trata dos negócios dos clientes. Uma vez disse isto ao Cavaco Silva.

E ele, o que respondeu?

"Arghgrauch!" Ficou um bocadinho nervoso. Depois expliquei. A primeira vez que me disse aquilo eu não disse nada, mas à segunda respondi: "Ó sotor, o sotor não sabe, mas está a insultar-me. Não tem consciência disso, mas chamar a um advogado "advogado de negócios" é insultá-lo. Se quiser que lhe fale de advogados de negócios, tem alguns no seu governo e nem sequer são licenciados em Direito". Mas, enfim, nenhum empresário que queira corromper vai pedir ajuda a um advogado, não tenha dúvidas sobre isso. Lembro-me de um cliente, daqueles que convidaria para minha casa, que me disse isto: "Ó Júdice, este assunto não é para o sotor. Este assunto é para o sotor..." Não lhe digo o nome, era um deputado famoso que os jornais apanharam numas coisas e que disse que só tinha dois clientes. Bom, pelo menos três tinha, eram clientes meus que foram para ele dizendo que os assuntos não eram para ser tratados por mim.

Porque é que não diz os nomes? Porque é que em Portugal nunca se dizem nomes?

Sou o contrário dessa pessoa, tenho arranjado muitos inimigos por dizer as coisas tal como as penso. Mas dê-me o direito – porque não estou a acusar ninguém, até porque estes casos estão prescritos - de não falar de pessoas que toda a gente sabe quem são, porque acabaram todos mais ou menos descobertos.

Há pouco disse que os clientes não iam ter consigo para pedir coisas que achariam menos éticas. Mas mas podem ir ter consigo para os safar ou não?

Não é muito verdade. Até porque não faço praticamente direito criminal, como disse. É raríssimo.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Mas é sócio de um escritório de advogados que actua em todas as áreas.

Com certeza que sim, mas não vão ter comigo, vão ter com os meus sócios que são especializados nessas matérias. E safar pessoas é um dever e um direito dos advogados. Vou contar-lhe uma história curiosa: um dia, por coincidência nesta sala, um senhor que tratava de assuntos imobiliários, tinha um processo crime por corrupção disse-me que era culpado e queria que o defendesse. Respondi que se não me tivesse dito que tinha corrompido eu tinha o dever deontológico de acreditar nele e se descobrisse que me tinha mentido o que faria era mandá-lo passear. Assim, ele tinha três hipóteses: escolher outro advogado, permitir que eu fosse falar com o Ministério Público para tentar algo semelhante ao estatuto de arrependido (que em Portugal não existe) ou deixar-me fazer a sua defesa sem nunca afirmar que não corrompeu, apenas destruindo as provas que o Ministério Público pudesse ter. Ele optou pela primeira.

(...) não tenho problema rigorosamente nenhum em tentar safar, como diz, os meus clientes, porque os advogados devem tentar safar os clientes

O advogado não é obrigado a aceitar tudo...

Não, o advogado não é obrigado a aceitar tudo. E se me perguntar se já defendi pessoas que provavelmente eram culpadas, com certeza. Se lhe disser que já absolvi pessoas que provavelmente tinham cometido o crime? Ah, se calhar sim. E se já aconteceu pessoas que eu defendi não terem cometido o crime e serem condenadas? Claro que sim. Embora em toda a minha vida tenha feito dez ou quinze casos destes, também aceito causas pro bono - ainda agora estou a ajudar uma senhora cabo-verdiana que foi selvaticamente agredida por um polícia. Mas não sou um advogado especializado em criminal. Apesar disso, não tenho problema rigorosamente nenhum em tentar safar, como diz, os meus clientes, porque os advogados devem tentar safar os clientes. E o Ministério Público deve tentar condená-los.

Quando faz negócios – agora estou a meter-me consigo – pensa se está, eventualmente, a prejudicar o país?

Depende do que entenda por prejudicar ou beneficiar o país. Não fujo à pergunta, mas esta é uma história muito engraçada. Quando Marcelo Rebelo de Sousa, no Congresso em Tavira, foi abandonado por todos, designadamente barrosistas, não resisti e acabei por aceitar ser membro da comissão política de Marcelo Rebelo de Sousa — e arrependi-me passados 15 minutos. A primeira vez que me convidou, aliás, foi para tudo o que eu quisesse, menos líder. Não aceitei. A segunda vez convidou-me para ser o segundo vice-presidente, a primeira era a Leonor Beleza. Não aceitei, porque já era um grau de profissionalização que não queria, mas aceitei ser membro da comissão política. No dia de encerramento do congresso, quando faz o discurso final, faz um ataque violentíssimo, muito demagógico e populista, há que dizê-lo, aos empresários que fazem contratos com o Estado em que prejudicam o interesse público. Não me lembro se disse nomes ou se foram eles que se sentiram, um deles Belmiro de Azevedo, outro Ricardo Salgado – apesar disso Marcelo não sentiu nenhuma dificuldade em continuar a ir passar férias com ele. Eu achei que ele não estava a ser completamente correcto e ajudei a Manuela Ferreira Leite, que teve de se defender e ao PSD na Assembleia da República. Tive longas reuniões com ela e o que disse, naturalmente, é que Marcelo tinha visto o filme todo errado: que acontece é que o Estado negoceia pessimamente.

O Estado escolhe muito mal os seus assessores: políticos, económicos, financeiros. Escolhe mal e por isso é mal aconselhado

Negoceia pessimamente porquê?

Porque negoceia com calendários apertados, que o oponente conhece, e torna-se fácil. O Estado escolhe muito mal os seus assessores: políticos, económicos, financeiros. Escolhe mal e por isso é mal aconselhado. Terceiro, o Estado não tira nenhuma vantagem da circunstância de ser para advogados, contabilistas, financeiros ou economistas o maior cliente do país. O que Estado podia ter feito – e quando fui bastonário da Ordem dos Advogados criei as condições jurídicas para isso – como faz Espanha. Espanha tem os abogados del Estado, que são advogados altamente especializados naquilo a que vulgarmente se chama os negócios. Entram para o Estado logo após a licenciatura, são mais bem pagos do que nas sociedade de advogados privadas, aprendem muito e têm grandes oportunidades de trabalhar em assuntos de grande qualidade. Ou seja, a elite dos jovens licenciados em Direito vai ser abogado del Estado. Têm de fazer exames duríssimos para entrar, o que garante que só ficam os muito bons, durante cinco, dez, quinze anos e depois sim, são os privados que os vão buscar. Em Espanha, o Estado praticamente não usa advogados de fora.

Em Portugal há os gabinetes jurídicos do Estado e das empresas públicas, mas depois, para qualquer coisa, contrata-se fora.

Quando fui bastonário pedi uma audiência ao ministro das Finanças para lhe dizer que, com uma solução como a espanhola, o Estado pode poupar muito dinheiro, evitar conflitos de interesse, e a única exigência da Ordem dos Advogados era que esses advogados não fossem advogados de privados. Porque o que acontece hoje é que muitos advogados públicos são também advogados de privados e os clientes vão buscá-los, porque eles conhecem o lado de dentro. Eu ponho a minha voz onde estão as minhas ideias.

Porque é que nunca aconteceu?

Porque achou-se que não valia a pena, com certeza, ou porque o Ministério Público não quer... Eu dizia: separem as duas profissões como em Espanha: os que tratam da investigação criminal, que é o Ministério Público, e os que são advogados do Estado, que é outro grupo. O Ministério Público ser advogado do Estado é um erro absoluto.

As nossas instituições são demasiado corporativistas?

O corporativismo é normal. É prejudicial, claro. Quando me candidatei a bastonário escrevi muito e dei muitas entrevistas a explicar as minhas ideias, quem votou em mim sabia ao que ia. Na altura escrevi um artigo comparando o corporativismo ao colesterol: há o colesterol bom e o colesterol mau. Também há o bom e o mau corporativismo. O mau corporativismo mata o bom. O problema não é o corporativismo, não é os grupos sociais defenderem os seus interesses, isso é a lógica do sistema democrático.

Qual é o problema?

O problema é fazê-lo de uma forma que, a prazo, é prejudicial aos seus próprios interesses. Dou-lhe um exemplo: a certa altura um bastonário que me sucedeu [Marinho e Pinto] veio defender que era ilegal os escritórios de advogados terem uma tabela com os preços praticados ou os critérios utilizados. Mas a isto chama-se informar o consumidor, é informação perfeitamente normal. Ora este é o mal do corporativismo. Assinei uma deliberação do conselho geral, unânime, considerado motivo disciplinar grave um advogado receber pagamentos em dinheiro ou não passar recibo. Quando afirmei que há advogados que são verdadeiros gangsters, fi-lo porque me chegavam casos lancinantes, como o de um homem detido e em vésperas de julgamento, a quem o advogado pediu 5 mil euros. O senhor disse que não tinha, e o advogado perguntou: "Mas o senhor não é casado? Então, a sua mulher que vá prostituir-se e o senhor paga-me esse dinheiro". Não sei se era verdade, mas, a ser, o advogado era um gangster. Sou favorável a que cada um lute pelos seus interesses, a que existam estruturas de pressão, mas é preciso ter cuidado. Havia um lobby poderosíssimo das empresas que faziam estudos ambientais e que conseguia que o Estado não aceitasse estudos feitos por empresas estrangeiras. Era perfeitamente normal as empresas portuguesas não quererem estrangeiros, mas era perfeitamente anormal o Estado aceitar isso.

Voltando às contratações do Estado...

Se o Estado não tem as competências altamente especializadas para certas matérias - e uma vez que optou por não fazer o tal coro com os abogados del Estado – é perfeitamente normal que em certas ocasiões tenha necessidade de especialistas que não tem em casa. Não vejo nada de mal nisso. O que vejo de mal é que geralmente essas escolhas são feitas por ajuste directo, sem consulta do mercado.

O Banco de Portugal contrata muios advogados fora, apesar da equipa que tem. E com a história do BES/Novo Banco...

Está a ver o Banco de Portugal, com os seus quadros burocráticos, a trabalhar do meio-dia às cinco e ainda a vender o banco?

Considero o governador do Banco de Portugal uma pessoa incompetente.

Bem, Carlos Costa chegou a dizer que havia 18 interessados.

É incompetente. Considero o governador do Banco de Portugal uma pessoa incompetente. Mas é um bom exemplo: o Banco de Inglaterra abriu um concurso internacional para escolher o presidente do banco central e ganhou um economista do Canadá. Em Portugal, se abrissem um concurso, ganhava o tipo que a política queria. Não escolhem as pessoas para os cargos de forma competitiva. Uma vez anulei um concurso e ganhei, depois de alguma luta. Um dos critérios para concorrer era ter feito trabalhos para o Gabinete do Nó Ferroviário de Lisboa e só havia uma empresa nessas condições, o que era uma vantagem competitiva enorme. Depois o burocrata, o político, o secretário de Estado, um dia disse-me: "O seu cliente nunca mais ganha um concurso". E eu respondi: "O meu cliente talvez não ganhe, mas o senhor vai para a cadeia, seu fdp". É por isso que não tenho só amigos.

Disse-me em tempos que a PLMJ não cresceu à conta do Estado.

Lembro-me de que a certa altura a percentagem de assuntos públicos era inferior a 2% da nossa receita. Por várias razões, uma delas é que ninguém no seu são juízo quer trabalhar para o Estado se puder trabalhar para o privado. O privado paga melhor, mais depressa e não tem as limitações dos concursos públicos, além de que o cliente respeita mais o advogado e não o obriga a fazer coisas com as quais não está de acordo. O Banco de Portugal, por exemplo, tem excelentes advogados, o advogado chefe da equipa é um dos meus mais antigos e velhos amigos, um belíssimo advogado. Foi um ajuste directo bem feito. Antigamente eram em regra os amigos, primos ou cunhados ou alguém do partido, uma forma de compensar. O Estado aprendeu que escolher maus advogados é um erro. Repare, há vinte e tal anos também fiz cursos de project finance, mas gostava mais da lei laboral e dediquei-me a isso. No caso das parcerias público privadas, por exemplo, um procurador do Ministério Público não sabe rigorosamente nada daquilo. O modelo actual também não faz deles especialistas, porque hoje estão no Porto a fazer uma coisa, amanhã vão para Setúbal fazer protecção de menores e depois outra coisa qualquer. Os procuradores não têm um estímulo para se especializar e muitas vezes o Estado escolhe mal os advogados exteriores.

Foi advogado da Parque Expo, deve ter milhares de histórias.

Estava no estrangeiro e quando regressei tinha um recado do comissário Cardoso e Cunha. Veio ter comigo e disse-me: "Tenho os ministérios cheios de juristas, mas eu preciso de um advogado. Por favor, aceite". Depois, como sabe, fui nomeado para a Parque Expo. Aliás, ainda há dias passou na televisão uma entrevista com a Manuela Brandão [que chefiava a equipa legal], sem ela não teria havido Expo'98 – porque há sempre os tipos como o António Costa, que aparecem seis meses antes do fim como se fossem os salvadores da pátria. Fui advogado da Parque Expo desde o dia um e fui porque era duro a negociar. O dossier era muito interessante, foi uma experiência fantástica, fiz tudo o que possa imaginar, tudo passou por mim e veio ter comigo. Conseguimos poupar centenas de milhares ao Estado. Para dar uma ideia, o que pagámos pela saída de todas as petrolíferas, e eram umas quatro ou cinco, foi menos do que pedia só a Petrogal. Conseguimos não perder um caso em tribunal e fizemos acordos de expropriação que pouparam muito dinheiro. Teria sido um erro colossal, e Cardoso e Cunha sabia isso, se tivessem contratado funcionários públicos, que trabalhavam em horário normal. Os resultados não teriam chegado.

Lembra-se de um caso em particular?

Negociei o contrato com o fornecedor daquele que é hoje o pavilhão Altice e, na véspera de Natal, descobrem que havia um erro: os critérios do Laboratório Nacional de Engenharia Civil estavam errados e afinal eram precisas mais dezenas de milhares de parafusos para sustentar a estrutura e o construtor queria mais 300 ou 400 mil contos. Um desespero, final do prazo, e estive a negociar até à última: pagámos 20% do que ele queria. A culpa era nossa, o critérios eram do laboratório, mas eu tinha recusado um cláusula que dizia que a qualidade do produto era aferida por essas regras e alterei-a para "por essas regras ou quaisquer outras que a experiência demonstre que sejam as adequadas". Com isso poupei ao Estado para cima de 300 mil contos. É preciso olhar para os advogados desse ponto de vista. E não os advogados que fazem os contratos em que se define uma rentabilidade mínima nas parcerias público-privadas, são os bancos de investimento, os financeiros, os auditores. Portanto, eu diria que o Estado, tal como o conheço, precisa imenso do apoio de grandes advogados para poupar muito dinheiro. Podia ter uma solução alternativa? Podia, mas nunca quis ter.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Muitos deputados, sobretudo os advogados, são criticados por fazerem leis por medida. Há forma de se evitar, também aqui, o conflito de interesses?

Essa não é uma questão que diga respeito apenas aos advogados, mas também aos professores, aos sindicalistas e outros. O problema que há na política portuguesa a esse nível — há 30 ou 40 anos que defendo isto — é que devia haver uma profissão legalizada do lobbying. E todos os funcionários públicos, e isso inclui deputados, deviam ser proibidos de fazer lobby, um comportamento que devia ser criminalizado. Também defendo, e sempre defendi, que a actividade de advogado devia ser incompatível com a actividade de lobbyist. Por qualquer razão que desconheço continua a não se legalizar a actividade.

Tem uma ideia do porquê?

[Pausa] Preconceitos, talvez, na maior parte dos casos. A mesma ideia que leva e que levava a maior parte dos conservadores – e Portugal é uma sociedade conservadora – a proibir a prostituição e a mantê-la em casas escondidas. Não estou a comparar as profissões, estou apenas a dizer que muitas vezes se prefere proibir, sabendo que existe. Outra razão: muita gente tem provavelmente medo dos preços a pagar pela legalização do lobby. Esse tal advogado que para assuntos não muito éticos servia, era um deputado, um agente do partido e do poder. Portanto, tratava de negócios, de resolver problemas. O que eu não gosto e não aceito é que quando se fala destas coisas se fale de advogados, ninguém fala de economistas, de auditores. E a maior parte dos advogados que estão na Assembleia da Republica são modestos advogados, fazem uma advocacia de final de dia, trabalham às vezes ao fim-de-semana, não têm contratos com o Estado. É gente séria e é injustíssimo dizer-se isso. Se me perguntar se conheci alguns advogados que aproveitavam os benefícios de serem políticos para resolverem coisas, ah, acredito que sim. Mas também conheci alguns não eram sequer advogados nem tampouco licenciados em Direito. Tem de haver regras e a falta de regras facilita os cambalachos.

O ministro [Siza Vieira] cometeu um erro, mas é um erro que não tem a mais pequena consequência, não há qualquer gravidade naquele comportamento

Há regras básicas e mesmo assim temos tido alguns casos de aceitação de presentes ou de ministros sócios em empresas.

Sobre isso, já o afirmei, penso que é um erro irrelevante. Ou seja, o ministro Siza Vieira devia ter tido uma cautela especial em escrutinar situações que hipoteticamente pudessem encaixar mal na lei. Mas considero irrelevante porque muitas vezes quando é constituída uma sociedade e feita a escritura já está tudo preparado há tempo - provavelmente ele, que aparece como sócio gerente, não se lembrou. Tantas vezes como advogado me esqueci de coisas... Costumo dizer que sempre que julgo que sei uma coisa vou ver duas vezes. Quando não sei, vou procurar e fico a saber, quando julgo que sei tenho de ver duas, porque muitas vezes estou enganado. O ministro cometeu um erro, mas é um erro que não tem a mais pequena consequência, não há qualquer gravidade naquele comportamento, não tem nada a ver com o Estado, não tem nada a ver com as suas funções.

E António Costa ter comprado uma casa que vendeu pouco depois com uma mais-valia substancial?

Tem todo o direito de o fazer. Porque é que uma pessoa na política não há-de ter o direito de comprar uma casa que está no mercado por um preço e de a vender se o mercado lha comprar mais cara? Porquê? Os jornalistas ao escreverem sobre estas matérias estão a fazer o que os desonestos querem: desviar-se do que é importante. Por cada milhão de sound baites à volta da casa do Costa, não se fala do que é verdadeiramente desonesto. E isso dá trabalho. Porque os desonestos não são tontos, se António Costa quisesse fazer um negócio desonesto com a casa, não comprava em nome próprio, não vendia em nome próprio. Tenho criticado António Costa quando acho que merece ser criticado, como elogio quando acho que merece ser elogiado, mas tenho António Costa na conta de um homem sério, como tenho o Siza Vieira na conta de um homem sério. E se os tivesse na conta de desonestos talvez não disseste nada, mas nunca diria que os tinha na conta de honestos. Um advogado pode não dizer a verdade, mas nunca deve mentir.

Omite.

Pode omitir. Há alguém, que não omita coisas na sua vida? Vem a sua melhor amiga, feia como os trovões, e você diz-lhe: "Estás tão feia, minha querida!" Quem é que faz isso? Agora, talvez não valha a pensa dizer: "Que linda que tu estás", isso já seria hipocrisia. É bom muitas vezes não dizer a verdade, as sociedades não sobreviveriam sem isso.

A transmissão pela SIC de excertos de inquéritos do processo Sócrates. O que tem a dizer sobre isso?

Uma coisa sórdida. Sórdida da parte do órgão de comunicação social. Eu já estive sentado num banco dos réus acusado pela Polícia Judiciária por um assunto que tinha a ver com um cliente. Fui absolvido na Primeira Instância e na Relação. Como qualquer arguido, fui interrogado pelo Ministério Público, mas não era muito agradável que aquilo estivesse a ser filmado e que amanhã aparecesse em algum lado e eu sou profissional. É uma coisa sórdida, o grau zero da dignidade humana em matéria de justiça.

Eu não vi [as gravações do caso Sócrates]. Não vi por higiene, sabia que ia passar, vi que ia acontecer e deliberadamente não quis ver

E no entanto, para quem viu, aquela passa a ser uma verdade: dos interrogados, do Ministério Público, dos advogados de defesa.

Quem viu ficou com uma visão distorcida, que é a da câmara e daquilo que da câmara foi passado para os jornais. Eu não vi. Não vi por higiene, sabia que ia passar, vi que ia acontecer e deliberadamente não quis ver. Gosto muito de preservar uma certa higiene mental. Quando foi a inauguração da Expo'98 – e já disse que tudo passou por mim, desde a proposta ao governo de soluções legislativas, à negociação de contratos, construções – telefona-me a Manuela Brandão porque, calcule, convidaram o poder do mundo para a inauguração e não convidaram a conservadora [do registo predial]. Por solidariedade, ela decidiu que não ia e eu decidi que não ia por solidariedade com ela. E não fui à inauguração da Expo'98, onde provavelmente iriam agradecer-me, por uma questão de princípios. Passaram-se 20 anos e estou a contar a história pela primeira vez. Repare, houve ali problemas jurídicos notariais e registrais complexos.

Pode dar um exemplo?

Conseguiu-se construir um edifício metade em domínio público marítimo, metade em terra. Ou fazer a Estação do Oriente, que tinha quatro tipos de propriedade: domínio ferroviário, domínio rodoviário, domínio privado do Estado e domínio público do Estado. Foi muito importante a coordenação com a conservadora do registo predial, que teve de inventar soluções que nunca se tinham pratiado em Portugal. No caso da Estação do Oriente eu e a minha equipa fomos buscar a França uma situação em que acontecia algo semelhante, estudando o regime jurídico de La Défense, e conseguimos convencer a conservadora do registo predial a registar assim. Voltando atrás, se está a jantar em casa de amigos, marido e mulher, que acha que são o melhor do mundo, e de repente, por qualquer motivo um deles perde a cabeça e desata a insultar o outro, não pode esquecer o que ouviu, mas vai fazer tudo para não se lembrar, sabe que os seus amigos não gostariam que tivesse acontecido à sua frente e se puder sair dali rapidamente não vai hesitar. Foi o que eu fiz, não vi o que se passou, limitei-me a saber. Claro que num zapping, nos jornais, vi como aquilo acontecia, mas preferia não ter sabido.

O Ministério Público é muito incompetente – pelo facto de dizer que são incompetentes já vou ter chatices, mas são incompetentes

Como diz António Barreto, há muitos acusados e poucos condenados. Porquê?

Incompetência do Ministério Público. Quando eu era bastonário, no tempo da pedofilia, que infelizmente infectou o meu mandato, convidei o procurador-geral Souto Moura de quem era velho amigo para almoçar em minha casa, discretamente, e disse-lhe: "Se queres fazer boa investigação, acaba com os grandes processos. Se tens em relação a um criminoso um conjunto de comportamentos que achas criminosos e de que tens provas, acusa-o e depois trata do resto". Mas o Ministério Público faz processos gigantes, impossíveis. Os juízes têm ali uma incapacidade até de memória. O Ministério Público é muito incompetente – pelo facto de dizer que são incompetentes já vou ter chatices, mas são incompetentes.

E só há um juíz para julgar todos estes casos?

A sua pergunta mostra o erro que é Carlos Alexandre. Disse julgar, a muitos aparece como acusador, mas a ninguém a aparece como sendo o juiz das liberdades. E o juiz de instrução criminal no modelo constitucional e legal português é o juiz das liberdades, o papel dele é controlar os abusos da investigação, controlar onde as liberdades e as garantias estão a ser ofendidas.

Tem razão. O que eu queria perguntar é se há apenas um juíz de instrução, já que os casos importantes – Monte Branco, Operaçáo Furacão, Portucale, Face Oculta, BPN, Vistos Gold, Operação Marquês, entre outros – lhe vão parar às mãos?

Não gosto de juízes que aparecam nos jornais e nas televisões. Também não gosto muito de advogados que estão sempre a falar à saída dos julgamentos, mas percebo que seja uma atitude defensiva. Mas a justiça deve ser discreta. Se ler os interrogatórios feitos pelo juiz Carlos Alexandre, vê que ele assume-se com uma agressividade que nem o Ministério Público tem num interrogatório para com os arguidos. É isto. Devia mudar de profissão, mas parece que não quer. Andou durante anos a recusar que houvesse um segundo juiz de instrução e o que está a acontecer hoje é um assassinato de caracter do segundo juiz de instrução criminal, Ivo Rosa. Estão a desfazê-lo. Para que fique claro, a comunicação social portuguesa não aceita outro juiz que não seja o Carlos Alexandre.

Por que motivo as instituições em Portugal têm tanta dificuldade em assumir decisões?

Costuma-se dizer que a palavra saudade não tem tradução, mas há uma palavra em inglês que define muito bem isso que está a perguntar: accountability [responsabilidade com ética]. Esta é que não tem tradução em português e há muitas explicações, uma é que na cultura portuguesa, mesmo os não católicos, habituaram-se a que se fazem os pecados, vão ajoelhar aos pés de um senhor vestido de preto, pedem perdão dos pecados que ninguém sabe, o padre dá uma penitência que também ninguém conhece e são absolvidos. Claro que a regra do jogo é não voltar a fazer os mesmos pecados, mas isso... E quando ao longo de gerações nos habituamos a que podemos fazer isto, isso explica muita coisa. Há um ethos no catolicismo que teve como subproduto a desresponsabilização fácil. Em segundo, nós portugueses somos completa e naturalmente propícios a vícios sociais como a corrupção. Como os outros, não gostamos da corrupção, mas toleramos a corrupção permanente. Havia uma altura em que para consultar um processo dava-se dinheiro ao funcionário judicial. Isso é corrupção e o processo podia ser consultado mesmo que não se desse dinheiro, mas dava-se.

Porque toda a gente fazia?

Toda a gente dava, porque socialmente era aceite que toda a gente desse. É uma coisa normal em Portugal. A certa altura fui eleito presidente da comissão política distrital do PSD e um senhor que tinha ganho um concurso para fazer uma obra, e tinha o equipamento e a obra parada e não lhe pagavam, veio ter comigo para lhe resolver o problema. À medida que ia explicando porque achava que lhe poderia resolver o problema, eu ia dizendo: "Porque eu sou do PSD", "porque o presidente da câmara em causa é do PSD" e ele respondia: "É isso mesmo, sotor", "parece que me adivinha o pensamento, sotor". Até que eu expliquei que era por isso mesmo que não podia aceitar o caso. Não era crime ser advogado dele, mas entendi que não podia. Ele era um proprietário com centenas de hectares em Cascais, a tratar de um assunto com a câmara, cujo presidente acabado de eleger era agora PSD. A quantidade de equívocos que aquilo poderia gerar. Não estou a dizer que sou melhor do que os outros, não sou santo, mas há critérios, valores. Com a corrupção é a mesma coisa, mas há muita gente atirada para as ruas da amargura por ser sério e ter um pecadilho e muitas vezes são os malandros que fazem isso para desviar as atenções. As pessoas, o país é como é, não é perfeito, mas pensa que só em Portugal é que há disto?

Acontece que nos outros países é mais fácil julgar, condenar ou absolver, terminar processos. Voltamos à questão inicial: porquê?

Só pode ser por incompetência. Ou então os putativos criminosos em Portugal são muito mais sofisticados do que noutros países da Europa. Penso que é incompetência, trabalho mal feito. No caso Sócrates há um facto que é objectivo: foi-lhe emprestado dinheiro por uma pessoa que não é pai, mãe, filho ou mulher. Qualquer pessoa dirá: há aqui um problema fiscal. E isso já podia ter sido resolvido.

Só que...

Só que é preciso o tal megaprocesso, que muitas vezes dá em nada. Li no jornal que os investigadores do famoso caso Fizz vieram dizer que foram à internet, googlaram o nome Manuel Vicente e o nome de uma empresa e, como havia ligações... Ora, se isto é assim, é de uma total incompetência. A ser assim, não é preciso ser um grande advogado (mas ajuda) para destruir esta acusação. No caso Sócrates, o procurador ia falar com o advogado e dizia: é muito simples, eu posso não acusá-lo disto, daquilo e daqueloutro e ele é condenado por um crime de fraude fiscal; tem de pagar xis e apanha três anos de prisão. Nos Estado Unidos, onde os advogados são 100 vezes melhores do que os portugueses, fazem-se acordos. Em Portugal não se podem fazer acordos, é ilegal. Não estou a falar da delação premiada, estou a falar de denunciar a pena, em vez de estar a gastar dez milhões, vinte milhões numa investigação com a de Sócrates. Porque isso resolve um conjunto de problemas. Hoje uma parte muito grande do país aceita que Sócrates é culpado, outra, que julgo menor, acredita que não. Mas ele ser condenado ou absolvido daqui a cinco anos não vai mudar nada e as pessoas já ficaram com as suas opiniões, boas ou más. Nenhuma das finalidades do sistema criminal serve. O que o tribunal decide não é a verdade, é a verdade do processo.

Há pouco disse que se arrependeu quase imediatamente de ter aceitado o convite de Marcelo Rebelo de Sousa. Porquê?

Não foi logo... Por três razões. A primeira foi esta: um líder acabado de eleger não podia fazer um discurso tão estrutural e polémico sem pelo menos perguntar a opinião, porque um líder decide, mas consulta. A minha vontade foi ir-me embora nesse mesmo dia. Depois houve outra situação bastante mais desagradável: o Marcelo decidiu constituir um governo sombra. Até fazia sentido, mas nós, os membros da comissão política, soubemos pelo jornal quem eram os membros do governo sombra. Tive de fazer uma cara simpática para lhe dizer "não voltas a fazer uma destas, escolhes quem tu quiseres, mas eu não sou um borra-botas", não no sentido de não ser como os outros, mas talvez eles fossem menos vocais do que eu. Terceira coisa, talvez a gota de água, foi na altura da discussão da despenalização do aborto. Marcelo convidou-me, apesar de eu ter dito que era favorável à despenalização do aborto quando o PSD era esmagadoramente contra a despenalização. Quando foi a campanha, ele disse uma coisa que achei genial – porque acho o Marcelo um homem genial: o PSD não tem posição, vamos fazer campanha, não vai haver propaganda, e nos tempos de antena dizemos a todos os militantes que quiserem para falar. Como a esmagadora maioria era favorável, ia falar a defender a manutenção do regime legal.

E o que aconteceu?

Um dia, fim-de-semana, estava eu em casa calmamente a ler, com a televisão ligada, por rotina, e começa o tempo de antena. Vem o PSD e era mais antiaborto do que o CDS. Tentei falar com Marcelo, que não me atendeu o telefone por qualquer razão, e falo com o Joaquim Ferreira do Amaral, que era o coordenador da área: "Então foi decidida uma coisa e faz-se outra?" Só tenho três hipóteses: demito-me já, conto esta história, e é desagradável, ou invento uma desculpa. Quando aceitei ser da comissão política impus uma só condição: demitir-me às 19 horas e um minuto na noite das eleições, fosse qual fosse o resultado. Só ele é que sabia, ninguém mais tinha de saber, e vim-me embora. Depois o Marcelo telefonou-me à rasca, e talvez tenha falado verdade, vou aceitar o que disse pelo valor facial, a dizer que a culpa tinha sido do Ferreira do Amaral. Se foi, é grave, não podia ter feito aquilo sem autorização – e a convidar-me para ir falar à televisão. Mas eu não queira ir à televisão, queria que ele não tivesse dito uma coisa e feito outra. Desesperado, ainda andou à procura de quem, dentro do PSD, defendesse o aborto e no último tempo de antena lá foram, penso que o Rio, a Paula Teixeira da Cruz e mais alguém. Temos de ser coerentes com aquilo que defendemos.

[A eutanásia] É o exemplo acabado do que é a esquerda caviar. E de jotas intelectuais que estão muito longe da realidade

E sobre a eutanásia, qual a sua posição?

Pensei que era um disparate sem fim. É o exemplo acabado do que é a esquerda caviar. E de jotas intelectuais que estão muito longe da realidade e uma precipitação em ter causas fracturantes, com que o Partido Socialista anda a enganar uma parte da extrema esquerda. Isto é, em vez de resolver os problemas que eles querem, dá-lhes aquilo a que se chama boi para piranha - quando os bois atravessavam os rios no Brasil ia sempre um à frente e enquanto as piranhas comiam esse, passava a manada. Isto do PS é um boi para piranha, uma causa para entreter. Para a extrema esquerda é uma causa fracturante – não estou a falar do Partido Comunista, como é evidente. Foi um disparate sem mão.

E para a direita?

A direita, como o Partido Comunista, são coerentes na sua convicção. Um sócio meu que é da comissão de ética diz que nem esperaram pelo parecer que tinham pedido. Então não esperaram três ou quatro dias? O debate estava a ser muito vivo e intenso e útil e a comunicação social desempenhou um papel excelente. Nota-se que os jornalistas são favoráveis à eutanásia – o jornalismo português não consegue não mostrar opiniões – mas houve debates, confronto de pontos de vista, foi bom. Foi um erro colossal tratar assuntos civilizacionais agora, porque dá jeito que sejam tratados no final desta sessão legislativa e não na próxima, porque vai haver eleições. Ninguém quer guerra, têm medo de perder votos. E por causa disso faz-se esta trapalhada num momento absurdo. É daquelas leis feitas para falhar, para criar barulho. É brincar com coisas sérias.

António Costa deve preocupar-se apenas e sobretudo com o risco de não ter maioria absoluta

Com o que é que António Costa devia estar preocupado e com o que é os portugueses deviam preocupar-se?

No fundo, António Costa e nós somos Centeno [risos]. Depende do ponto de vista. Penso que António Costa se deve preocupar apenas e sobretudo com o risco de não ter maioria absoluta. Isso é com o que se deve preocupar pensando nele. Aquilo com o que o país se deve preocupar – vou espantá-la, mas vou dizer o que disse antes das últimas eleições – é que António Costa cometeu erros, mas é a melhor solução para o país nesta conjuntura e por isso era bom o Partido Socialista conseguir maioria absoltuta nas próximas eleições. Não é o que quer toda a gente; não quer uma ala cada vez mais forte do PS. Aparentemente, ninguém percebeu que o que fez Pedro Nuno Santos foi posicionar-se como oposição a António Costa, ao defender a geringonça. Como no PSD havia quem defendesse, como eu, de resto, a AD. Eu sempre disse que não gostaria que Cavaco tivesse maioria absoluta, porque achava que isso ia destruir a natureza profunda do PSD, como destruiu. E a última coisa que Pedro Nuno Santos quer é a maioria absoluta do PS. A direita também não quer que ele tenha maioria absoluta e o doutor Marcelo Rebelo de Sousa a última coisa que quer é que o PS tenha maioria absoluta. Eu diria que Marcelo quer ainda mais do que Pedro Nuno Santos que a  geringonça se mantenha, este é um objectivo estratégico do professor Marcelo Rebelo de Sousa. Como não quer uma maioria de direita e ainda menos que o PS faça coligação com o PSD, mas mais do que isso não quer uma maioria absoluta do PS. Se o PS tem maioria absoluta, o papel do presidente da República vai ser completa e totalmente branqueador e ele não gosta desse papel, gosta de ser um líder de influências, não gosta de estar calado, de não dizer nada.

Porque é que uma maioria do PS de António Costa é boa para o país?

Em primeiro lugar porque não acredito que haja qualquer hipótese de o PSD e o CDS terem maioria absoluta e se a tiverem não acredito que haja qualquer possibilidade de fazerem as reformas de que o país precisa e que estão adiadas. Segundo: acho péssimo, já há 40 anos, um governo de bloco central. Sempre fui contra e continuo a ser. Terceiro: o PS vai ter de fazer reformas e é inevitável que daqui até 2023 o ciclo económico mude. Até pode mudar já para o ano. E vai ver-se tudo aquilo em que as reformas que não foram feitas são devastadoras. Não acredito que António Costa tenha força política para numa coligação com a geringonça fazer o que tiver de ser feito se a inflação vier para o 5%, 6% ou 7%, se o preço do barril de petróleo vier para os 100 dólares, se houver uma crise em que as exportações caiam brutalmente, se o défice público voltar agravar-se e for preciso voltar a tomar um conjunto de medidas que agora se evitaram porque houve sorte. Eu queria, sinceramente queria, que o mais hábil político da sua geração, o melhor político que temos em Portugal, que é António Costa, um homem que está perfeitamente consciente dos problemas do seu país, procurasse uma visão de esquerda, que penso que é melhor do que uma visão de direita, para enfrentar esses problemas. Ainda assim contunuarei a "dar na cabeça" de António Costa sempre que achar que o devo fazer. Um governo minoritário do PSD com o CDS não teria a mais pequena hispótese de fazer o que quer que fosse, todas a austeridade que o Costa conseguiu fazer, nem um décimo teria feito. Costa fez uma austeridade envolta em mel.

A propósito de mel, faz parte de um movimento recém constituído, o MEL – Manifesto Europa e Liberdade. Do que se trata exactamente?

É um movimento de pessoas que não querem pertencer a partidos políticos e eu sou muito periférico nesse movimento. Fui convidado por amigos que querem desenvolver o debate político, sobretudo sobre a Europa e a liberdade, dois valores para mim verdadeiramente importanttes. Ao contrário do que toda a gente pensa, a liberdade e a democracia são órfãos, porque a liberdade em excesso mata a democracia e a democracia em excesso mata a liberdade. Foi assim desde sempre. E actualmente estou muito preocupado com o facto de a democracia poder matar a liberdade, como já aconteceu na Europa várias vezes. Com os movimentos populistas, a demagogia e a falta de capacidade dos movimentos políticos de enfrentarem a populaça e de fazerem aquilo que é preciso fazer mesmo que a opinião pública não queira. A coragem que têm para votar a eutanásia sem referendo, não têm para fazer política, a que interessa aos portugueses todos os dias. Onde está a coragem política para fazer as reformas políticas, económicas, sociais, para um conjunto de coisas que, não tenho dúvidas, nos vão cair em cima. O movimento tem gente estimável e está ligado ao jornal Dia 15, que sai agora aos dias 15 de cada mês. Há pessoas relacionadas. É um think Tank com o objectivo de fazer intervenção cívica, social, política e económica. Eu, modestamente, estou disponível para colaborar. Nunca quis fazer política, mas nunca me quis demitir do dever de cidadão.

Nota de redação: Notícia atualizada às 09h40 de dia 13 de junho para corrigir na resposta abaixo transcrita o nome de Rogério Alves pelo de Marinho e Pinto. Aos leitores e aos visados, as nossas desculpas.

"O problema é fazê-lo de uma forma que, a prazo, é prejudicial aos seus próprios interesses. Dou-lhe um exemplo: a certa altura o bastonário que me sucedeu [Marinho e Pinto] veio defender que era ilegal os escritórios de advogados terem uma tabela com os preços praticados ou os critérios utilizados. "