O presidente do Tribunal da Relação do Porto lamenta o quadro de desembargadores "claramente deficitário" daquele tribunal.
“Há um rácio da casa dos 10/12 processos por mês e por desembargador, o que é bastante. Normal seriam oito processos por mês, dois por semana, para se fazer sempre um trabalho de grande qualidade”, afirma o presidente do Tribunal da Relação do Porto.
Com tal cenário, este “tribunal de Relação acaba por ser o que tem maior capitação processual por desembargador, mais até do que Lisboa”, segundo Ataíde das Neves.
“Não quer dizer que o trabalho não seja feito, porque há uma imensa dedicação e um claro saber técnico e humano por parte dos senhores juízes, mas há um sobre-esforço que é extremamente desgastante e preocupante num tribunal onde muitos desembargadores têm 60 ou mais anos de idade”, nota o responsável.
Nuno Ataíde das Neves destaca ainda a sua vontade de criar uma estrutura profissional autónoma, “até sob o ponto de vista administrativo e financeiro”, para o museu do tribunal.
“Trabalhamos no sentido de maximizar o potencial deste nosso pequeno museu, que é o museu judiciário de maior relevância em Portugal, e suponho que deveria até ser o único, para juntarmos num espaço muito especial e muito específico todo o acervo”, diz.
Nesse acervo incluem-se “verdadeiras relíquias” como as sentenças sobre os amores proibidos de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido ou os assaltos de Zé do Telhada, uma espécie de Robin dos Bosques português.
Noutro plano, o tribunal está a desenvolver o ciclo “A Relação com a Cidade”, com conferências, exposições e outras iniciativas culturais.
Nesse âmbito integrou-se a celebração do centenário do pintor Júlio Resende, com a exposição da sua obra, e anuncia-se para breve uma exposição com quadros selecionados pelo Instituto Politécnico do Porto, numa homenagem ao poeta Eugénio de Andrade.
O entrevistado assinala ainda que os próprios desembargados e seus familiares foram desafiados a realizar o Caminho português de Santiago, fazendo-o, como refere, “em prestações suaves”, de dois em dois meses, em fins de semana, tendo percorrido já 130 quilómetros.
Revela ainda que o tribunal se abalançou numa parceria com algumas universidades para desenvolver vários cursos de pós-graduação.
“Foi uma iniciativa muito bem acolhida, designadamente pelo diretor do Centro de Estudos Judiciários, que não interpretou isso como qualquer gesto concorrencial”, conta o presidente da Relação do Porto.
“Somo um Tribunal de grande prestígio, um prestígio reconhecido por todos, quer os advogados, quer as universidades. De outro modo não quereriam protocolar connosco as pós-graduações (nas várias áreas do direito, também na área dos direitos humanos) que vão ter um cunho muito articulado com a jurisprudência, com a vertente do direito aplicado”, acrescenta.
“ADN do Tribunal da Relação do Porto é a defesa dos direitos humanos”
O presidente do Tribunal da Relação do Porto assegura que a defesa dos direitos humanos “é o ADN” daquele tribunal e relativiza alguns acórdãos ali proferidos sobre crimes contra mulheres, que suscitaram protestos públicos.
“Não é um caso que faz o sistema, não é uma andorinha que faz a primavera”, declara Ataíde das Neves, em entrevista concedida à agência Lusa.
Ao contrário, afirma, “em grande parte dos acórdãos, os desembargadores proclamam, defendem e têm uma noção perfeita de que o elo mais fraco tem de ser protegido. E o grosso das decisões vai nesse sentido, da proteção da mulher, dos menores, dos mais desfavorecidos”.
E acrescenta: “No fundo, o nosso ADN é exatamente a proclamação, a manifestação e a defesa dos próprios direitos humanos”.
Em 2011, o Tribunal da Relação do Porto absolveu um psiquiatra num caso de violação de uma paciente grávida de 34 semanas e, em 2017, um desembargador daquele tribunal citou, num acórdão sobre a agressão a uma mulher, uma passagem bíblica segundo a qual uma adúltera “deve ser punida com a morte".
Já este ano, aquele tribunal validou a suspensão de pena aplicada em primeira instância a dois funcionários de uma discoteca que abusaram sexualmente de uma cliente, argumentando que a culpa dos arguidos se situou “na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica” e um “ambiente de sedução mútua”.
“Obviamente que me incomoda perceber que se fala da Relação por razões menos boas”, mas “não vejo aqui um problema do tribunal”, comenta Nuno Ataíde das Neves, numa alusão a um suposto padrão de atuação desse tipo naquela instância judicial.
"Com isto não estou a fazer apontamento nenhum aos acórdãos, mas pode haver um ou outro que sai um bocadinho da linha com que as decisões em princípio se pautam. Mas não é por via da exceção que se cria a regra. Não se pode confundir a árvore com a floresta”, reitera.
Ainda assim, o homem que assumiu em outubro do ano passado a liderança do tribunal de recurso do Porto defende cuidados acrescidos do julgador quando se pronuncia sobre direitos humanos.
“Quanto mais dedicados, mais importantes e mais essenciais são os direitos em causa, maior cuidado devemos ter ao escrevermos ou falarmos sobre eles. Quando se fala em direitos humanos é preciso escrever com pinças, com delicadeza, com sensibilidade porque nós giramos à volta desses valores. Esses valores são a nossa razão de ser como magistrados”, observa.
“Não estou a dizer que no caso se verificou isso. Estou a dizer que deve ser essa a postura do julgador”, frisa.
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves foi eleito presidente da Relação do Porto em setembro de 2017 e assumiu funções no mês seguinte. O Tribunal da Relação que dirige é um dos dois do Distrito Judicial do Porto, a par do de Guimarães.
A área de atuação da Relação do Porto abrange as comarcas do Porto (10 municípios), Porto-Este (oito) e Aveiro (19).
(Notícia atualizada às 12:19)
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