As exportações dos chamados frutos pequenos de baga têm vindo a bater recordes nos últimos anos. Em 2010, Portugal exportou 2,6 mil toneladas, num valor de 18,8 milhões de euros. Quase dez anos mais tarde, em 2019, vendeu lá para fora mais de 32 mil toneladas, arrecadando 219 milhões de euros. O consumo interno tem tido a mesma tendência de crescimento — quase 700 toneladas consumidas em 2010, para 13,8 mil em 2018.
O crescimento do negócio foi acompanhado do crescimento da área cultivada e, claro, da mão de obra. Olhemos primeiro à área: são 6,1 mil hectares em 2019 (eram 219, em 2009), 49% nas regiões do Alentejo e de Entre Douro e Minho. Ainda assim, um valor absoluto muito pouco expressivo quando comparado, por exemplo, com os 377 mil hectares ocupados pelo olival (dados do Recenseamento Agrícola de 2019 do INE, publicado em 2021).
Para as campanhas agrícolas, o país passou a precisar de mão de obra adicional, muita dela estrangeira. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) atesta isso mesmo e explica que o fenómeno do tráfico de seres humanos tem sido particularmente visível na procura de trabalhadores para estas culturas.
Como acontece isso numa cadeia de produção extensa, que envolve produtores agrícolas, marcas de distribuição — onde a maior parte de nós, consumidores, exerce o seu poder de escolha — e autoridades?
Os vários elos desta cadeia criaram medidas para garantir o respeito pelos direitos humanos ao longo de toda a cadeia de produção. Mesmo assim, pelo caminho, centenas de trabalhadores continuam a escapar ao filtro. Vivem em situações desumanas, muitas vezes vítimas de exploração laboral.
Como consumidores, que podemos fazer para exigir que as pessoas sejam tratadas com humanidade?
O eu-cidadão não faria o que o eu-consumidor faz
Quando vamos ao supermercado, muitas vezes tomamos decisões que nos são convenientes enquanto consumidores. Habitualmente, o coração do consumidor está do lado da carteira ou da facilidade em encontrar um determinado produto.
"É perfeitamente possível combater em preço os produtos não sustentáveis. Desde que o consumidor os prefira."
“É horrível que haja um gap entre os valores do cidadão e as obrigações, as necessidades, as contingências do consumidor”, afirma Mário Parra da Silva, presidente da direção da Associação Portuguesa de Ética Empresarial. “Este gap entre a cidadania e o consumidor é algo que tem de ser fechado”, defende.
Isso faz-se, segundo Mário Parra da Silva, “acima de tudo, por pressão junto das empresas”. “Há cadeias [de distribuição] que vendem produtos bons certificados. Mas, se os põem mais caros que os outros, as pessoas vão comprar os mais baratos”, adverte.
Há casos em que as empresas escolhem pôr à disposição dos clientes só os produtos que garantem determinadas normas, explicou o especialista em estratégia comercial e desenvolvimento sustentável. Estas empresas, muitas vezes, assumem a diferença do custo, “jogando na quantidade”. “Não ganham tanto em cada unidade por quilo, mas ganham na quantidade que vendem”, esclarece.
“É perfeitamente possível combater em preço os produtos não sustentáveis. Desde que o consumidor os prefira. Porque isso permitirá baixar o custo. É uma pescadinha de rabo na boca…”, descreve Mário Parra da Silva.
Mas, para isso, o consumidor tem de saber quais os produtos que passam por cadeias de produção responsáveis.
Como fazer a distinção? O que dizem as marcas
No caso dos produtos que vêm de fora de Portugal, podemos olhar para símbolos como o da Rainforest Alliance (um pequeno sapo), o do Fairtrade ou da UTZ (que hoje em dia está unida à Rainforest Alliance). São exemplos de certificações internacionalmente reconhecidas de práticas sustentáveis e socialmente responsáveis para o cacau, o café, o chá, a banana. Embora conferidas por empresas privadas, estas certificações têm um elevado nível de escrutínio pelo prestígio que atingiram e pela quantidade de pessoas que as vigiam à escala mundial.
O mesmo não acontece na produção de frutas e legumes nacionais, setor em que, por ora, não há selos específicos para certificar a responsabilidade social. O que não significa que cada marca de distribuição, per se, não adote processos que permitam exercer controlo sobre as práticas de produção. É o que nos dizem a Auchan, o Lidl e a Jerónimo Martins, garantindo que “todos os artigos disponíveis nas lojas” cumprem os critérios definidos para as práticas sustentáveis.
Se é verdade que cada um destes grupos empresariais diz fiscalizar os procedimentos dos fornecedores ao longo de toda a cadeia, também o é que os níveis de controlo variam de empresa para empresa.
O Lidl, por exemplo, exige que todos os “fornecedores nacionais de frutas e legumes” tenham as certificações GlobalG.A.P. e GRASP (ou similar). Estas são certificações atribuídas por entidades privadas externas e servem para salvaguardar “questões de segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”, bem como “analisar aspetos básicos sociais”, explicou ao SAPO24 fonte deste grupo alemão, que tem mais de 260 lojas em Portugal.
Já a francesa Auchan tem uma certificação internacional em direitos humanos e questões sociais, a SA8000 (criada pela, também privada, Social Accountability International), que prevê que todos os elementos da cadeia de produção cumprem os princípios acordados na legislação nacional, bem como nas organizações internacionais, tais como a Organização Internacional do Trabalho e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, esclareceu a empresa, que está há mais de 50 anos em Portugal.
No caso da Jerónimo Martins, a maior retalhista portuguesa, dona do Pingo Doce e do Recheio, é exigido aos parceiros de negócio que adiram ao código de conduta do grupo, assumindo, assim, o compromisso de “defesa intransigente dos Direitos Humanos”, bem como “o respeito pela lei, a ausência de coação física e/ou moral sobre o trabalhador, o cumprimento rigoroso das condições contratuais quanto a salário, protecção social e horários de trabalho, e o exercício da actividade em condições de segurança, higiene e saúde”.
A Sonae, segunda maior retalhista portuguesa e responsável pelo Continente, Modelo, MeuSuper, mostrou disponibilidade para receber as perguntas, mas acabou por não enviar as respostas com os esclarecimentos.
“Não podemos afixar um papel a dizer que fulano de tal é responsável”, mas podemos certificar que existe um esforço
Lidl, Auchan e Jerónimo Martins garantem também que são feitas regularmente auditorias aos parceiros e fornecedores, seja por iniciativa da própria empresa, seja por exigência das entidades certificadoras. As auditorias incluem verificação de documentos formais, e também, por vezes, entrevistas aos trabalhadores e visitas ao terreno (marcadas ou de surpresa).
“O que se pode certificar é que existe um sistema para a gestão das atividades de responsabilidade social. Se depois isso produz responsabilidade social já não é possível garantir”
Mário Parra da Silva considera importante lembrar que “ninguém pode certificar a responsabilidade”. “Não podemos afixar um papel a dizer que fulano de tal é responsável. O máximo que se pode dizer é que uma empresa tem comportamentos responsáveis e um conjunto de valores que permitem prever que continuará a comportar-se de forma responsável no futuro. O que se pode certificar é que existe um sistema para a gestão das atividades de responsabilidade social. Se depois isso produz responsabilidade social já não é possível garantir”, assinala o consultor.
Para reforçar estes mecanismos, “hoje há uma coisa chamada compliance em todas as organizações”, explica Mário Parra da Silva, referindo-se aos departamentos que se dedicam a garantir que os procedimentos da empresa estão em conformidade (compliance, em inglês) com os padrões definidos.
O Lidl e a Auchan admitem já ter rejeitado ou cessado contratos com fornecedores por não cumprirem as condições exigidas. As duas empresas têm ainda plataformas de denúncia que podem ser usadas pelos elementos diretamente envolvidos na cadeia ou por pessoas externas.
"O facto de serem feitas inspeções aleatórias regulares é uma forma bastante eficaz de, pelo menos, diminuir a exploração de pessoas. Mesmo que possa não resolver inteiramente o problema”
Mário Parra da Silva lamenta que haja consumidores que “têm uma olímpica indiferença por isto tudo. [Consideram] pura e simplesmente que são só jogadas de marketing. Dizem: ‘Isto não é garantia plena’. Pois não”, admite. “É uma indicação. Mas é uma indicação que, quanto mais for levada em conta, mais séria será”, afirma, seguro.
“Não se pode garantir. Mas pode-se ter a presunção de que alguém está a fazer um esforço para o bem. E é isso que as certificações garantem”, remata.
Como se escapa ao filtro das certificações e das autoridades?
Cláudia Pedra, formada em Relações Internacionais e em Estratégia e a trabalhar há mais de 25 anos em direitos humanos, tem-se dedicado ao estudo das redes de tráfico de seres humanos. E a sua experiência fá-la valorizar as certificações: “São processos muito importantes. O facto de serem feitas inspeções aleatórias regulares é uma forma bastante eficaz de, pelo menos, diminuir a exploração de pessoas. Mesmo que possa não resolver inteiramente o problema”.
Desde 2018, no Alentejo, foram sinalizadas 134 vítimas de tráfico de pessoas para exploração laboral, detidos 11 suspeitos e constituídos arguidos 37 pessoas e 14 empresas, segundo dados do SEF. O número de casos que não chegam às autoridades é bem mais elevado — "a grande maioria dos casos identificados pelas organizações não-governamentais não é reportado nem incluído nos dados oficiais", revela um relatório sobre o tráfico de seres humanos nos diferentes setores de atividade em Portugal, do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI), coordenado por Cláudia Pedra.
“Grande parte destas vítimas de tráfico entra de forma legal e está cá regularmente. Têm visto de trabalho e estão com um contrato. Para todos os efeitos, o Estado português considera que é um trabalhador que está integrado. Era preciso depois verificar as condições em que a pessoa está a trabalhar e se está ou não a ser controlada nos seus movimentos”. Nesse sentido, “é extremamente difícil” detetar estes casos, “porque não é dado um alerta”, diz-nos Cláudia Pedra, referindo que há também redes que trazem as vítimas de forma ilegal.
Contudo, lembra: “Claro que, ao longo destes anos, muitas pessoas [a própria Cláudia incluída] indicaram que havia situações muito críticas, de exploração laboral, de tráfico nestes locais. Nesse sentido, podia ter sido feito um seguimento muito mais próximo”. Ainda assim, Cláudia Pedra reconhece que “o número de inspetores [da Autoridade para as Condições de Trabalho — ACT] é bastante reduzido para fazer muitos controlos em muitos pontos do país”.
O SAPO24 dirigiu perguntas à ACT para esclarecer dúvidas acerca da atuação deste serviço e do seu papel no que diz respeito às certificações da produção de frutas e legumes nacionais, no entanto a entidade fiscalizadora não respondeu às nossas questões no sentido de esclarecer publicamente como decorrem estes processos.
Os casos não são exclusividade do concelho de Odemira. “Há suspeitas de que milhares de imigrantes que apanham amêijoa na margem sul do Tejo”, no Samouco (concelho de Alcochete), também vivam sem condições sanitárias, expõe uma reportagem do Público de dia 10 de maio. Na região do Oeste, o cenário volta a repetir-se, em Torres Vedras e em Santarém, por exemplo.
Nas redes de tráfico de seres humanos, a existência de intermediários que fazem a ponte entre as empresas agrícolas e os trabalhadores pode levar a que as empresas não se apercebam ou se demitam de cuidar das condições a que os trabalhadores são sujeitos pelos intermediários. (Sobre a lei de responsabilização da cadeia de contratação, ver caixa ao lado)
“As empresas não podem ser judicialmente responsabilizadas" pelas condições de vida extra-laborais dos trabalhadores que empregam. Este é o entendimento de Nuno Correia Lopes, advogado especialista em direito laboral. Mesmo quando os empregadores subscrevem códigos de conduta e princípios de responsabilidade social. Podem, isso sim, ser punidas "institucionalmente” pelo incumprimento de códigos a que aderiram.
Ainda assim, o crime de tráfico de seres humanos é público, pelo que existe um dever, “no mínimo moral”, por parte das empresas de denunciar estas situações, acrescenta o advogado, na conversa com o SAPO24. (Aliás, qualquer um de nós o pode fazer. Este documento da Comissão para a Cidadania e Igualdade deixa algumas indicações práticas sobre como podemos identificar e denunciar estes casos.)
Quanto à exploração laboral, essa não deixa margem para dúvidas. Nos códigos do trabalho nacional e internacionais, estão previstas consequências, se formalmente confirmadas situações em que o trabalho está a ser prestado sem o consentimento livre do trabalhador e sob condições de fraude, coação ou ameaça, incluindo retenção de salários, confiscação de documentos e cobrança de taxas excessivas por alojamento ou outros serviços.
Por exemplo, Nuno Correia Lopes lembra que o Código do Trabalho português estabelece limites para a percentagem que um empregador pode considerar para pagamento do alojamento do trabalhador (12%).
A fim de evitar as situações de abuso e até de facilitar a deteção de casos suspeitos, Cláudia Pedra recorda que há uma série de boas práticas que podem e devem ser adotadas pelas entidades no terreno. Por exemplo, numa etapa decisiva que é a dos pagamentos. Quando os pagamentos são feitos a empresas intermediárias, os “traficantes controlam os salários e os trabalhadores”, entregando-lhes, por exemplo, apenas “50 euros de um ordenado de 800”. “Mesmo com contratação direta”, há casos em que “os traficantes se apresentam como sendo intermediários das transações de várias pessoas e sugerem à empresa que o pagamento de 10, 15, 20 pessoas seja feito a si, que depois fará a devida distribuição por todas as pessoas, e também o envio para o país de origem”.
Nesse sentido, é importante que o pagamento seja feito diretamente a cada trabalhador e através de transferência bancária.
Muitas empresas no terreno adotam esta e outras práticas para garantir que todos os trabalhadores, incluindo os imigrantes, são tratados com dignidade.
Tentámos falar com vários destes produtores, reconhecidos como bons exemplos pela comunidade e pelos trabalhadores. A resposta foi sempre negativa. Declaram que a exposição mediática das últimas semanas foi muito intensa e que preferem aguardar até que haja mudanças concretas motivadas pela denúncia dos maus exemplos que vieram a público. Ministério da Agricultura e associações de produtores assinaram em 11 de maio um Memorando de Entendimento que “possibilita a aceleração do processo de licenciamento de novas habitações em explorações agrícolas” e a disponibilização, por parte do Governo, de “um apoio para financiar estes investimentos em alojamentos”.
A Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA) emitiu, em 12 de maio, um comunicado onde afirmava que foram feitas “muitas generalizações que colocam sob suspeição as boas práticas laborais das empresas agrícolas da região de Odemira”. “Estas empresas regem-se pelas melhores práticas internacionais, sendo auditadas pelos clientes nacionais e do norte da Europa, muito sensíveis às condições de trabalho em vigor”, pode ler-se no comunicado.
O SAPO24 sabe que há explorações agrícolas no Alentejo que são visitadas pelas cadeias de distribuição britânicas — para onde são vendidos os frutos vermelhos produzidos nesta região portuguesa —, no sentido de escrutinar o cumprimento dos padrões técnicos e éticos definidos pelo mercado onde vendem os produtos. Nestas empresas, são também usadas práticas de pagamento direto aos trabalhadores e é prestado apoio quando um trabalhador imigrante precisa de esclarecimentos para se mover nos circuitos da comunidade onde vive — cuidados de saúde, etc.
Começámos este artigo a questionar-nos sobre como é possível que centenas de vidas escapem ao sem-fim de procedimentos que a sociedade criou para garantir a dignidade de cada pessoa numa cadeia de produção. Quisemos perceber que poder os consumidores, longe dos campos e das empresas, têm no ato de compra para dizer que preferem frutas e legumes produzidos com boas práticas.
Terminamos sem respostas fechadas, mas com a noção de que, com o contributo das empresas — através dos produtos que escolhem vender e dos preços que praticam — e dos consumidores — pelas escolhas que fazem e pela informação que procuram —, é possível ir fechando o gap entre aquilo em que eu-cidadão acredita e o que o eu-consumidor faz.
(Artigo atualizado às 14h21)
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