Eram 10 horas e 3 minutos quando se iniciou a reunião plenária no passado dia de 20 de Maio na Assembleia da República. A ordem de trabalhos para essa manhã incluía uma recomendação do PSD ao Governo para a adopção de medidas para promover "a dinamização e o crescimento do sector do turismo em Portugal", defendida pelo deputado social-democrata Paulo Neves.
No âmbito dos pedidos de esclarecimentos sobre a iniciativa parlamentar, Carlos Pereira, vice-presidente do grupo parlamentar do PS e presidente do PS-Madeira, foi o primeiro a tomar a palavra para dar "uma resposta natural, quanto mais não seja para os seus ex-colegas de Governo", focando-se não no turismo, mas nos "progressos notáveis na reposição dos equilíbrios macroeconómicos".
Os vários protestos do PSD levaram o deputado do PS a notar o "burburinho insuportável na bancada do PSD" acrescentando que era "impossível continuar a falar". O presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, pediu então "aos Srs. Deputados da bancada do PSD para interpelarem o orador de forma mais suave, para que ele possa continuar a falar".
Perante a situação, e "para salvaguarda da saúde dos Srs. Deputados do PSD, vou mudar de tema", declarou Carlos Pereira. "Não falo mais daquilo que é o delírio da vossa exposição de motivos", optando por passar ao turismo, o tal tema inscrito na agenda para esse dia.
É então que o deputado socialista comete um lapso linguístico. Diz ele, segundo o Diário da Assembleia da República (DAR), que o "o turismo tem um impacto significativo no desenvolvimento das regiões e os senhores desinvestiram significativamente nessa matéria e acabaram por ter uma ausência total de mecanismos de apoio às empresas de turismo, na sua maior parte microempresas, que, hoje, têm problemas significativos no que é a sua solvabilidade".
Na realidade, como foi revelado pelo jornal Público e pode ser comprovado em vídeo, o que ele diz é "o turismo tem um impacto significativo no desenvolvimento das regiões e os senhores desinvestiram significativamente nessa merda, nessa matéria", como emendou rapidamente. Para quem espera encontrar no DAR a transcrição fiel dos debates parlamentares, verá que no desse dia não vai encontrar o termo "merda" - apesar de o mesmo já constar dos dicionários.
Quando a linguagem não era politicamente correcta
Uma pesquisa sobre a mesma palavra nos debates parlamentares em democracia devolve vários resultados, pelo que a palavra foi usada sem ser censurada no DAR. Até há cerca de 30 anos. O último registo ocorre a 7 de Janeiro de 1983, quando o deputado do PSD Lemos Damião diz ser "pena que o Sr. Deputado Mário Tomé, em vez de se chamar Tomé, não tenha outro nome. Se se chamasse Lacerda, eu, que não tenho jeito, certamente teria facilidade em lhe fazer uns versos..." O então deputado da UDP, Mário Tomé, responde: "Se é para o mandar à merda, eu mando-o!".
Em 18 de Fevereiro de 1982, Francisco Sousa Tavares (deputado do PSD) insurgiu-se com o PCP, usando "do direito de defesa, uma vez que fui atacado pessoalmente, aliás como é costume", e salientava que os comunistas usavam "permanentemente uma linguagem de ofensa e de ataque pessoal inadmissível nesta Câmara". E prosseguia: "é muito mais ofensivo as expressões que usam e as indirectas do que mandar à merda uma pessoa. Isso não ofende ninguém, pois é uma expressão à antiga portuguesa de uma pessoa que está aborrecida".
No seguimento desta disputa, António Lopes Cardoso, líder da União da Esquerda para a Democracia Socialista (UEDS), questionou a mesa da AR sobre os "critérios", que deviam ser "objectivos da opinião pública. É o peso, pejorativo ou não, que em termos de opinião pública tem a linguagem usada que devem ser os critérios da Mesa e não a interpretação de que cada um se socorre, ou seja, se badameco é mais ou menos insultuoso do que anticomunista primário ou se mandar à merda é mais ou menos insultuoso do que dizer 'vá àquela parte'". Em resumo, não sabendo desses critérios de liderança parlamentar, "cada um de nós usará os seus critérios, e não sei onde é que chegaríamos", defendeu Lopes Cardoso.
A disputa verbal entre Sousa Tavares e o PCP não era nova. Antes, a 6 de Janeiro desse mesmo ano de 1982, o então deputado comunista Jerónimo de Sousa atirava ao deputado do PSD que "a sua voz grossa não me impressiona e, para o acalmar, devo dizer-lhe que sou capaz de falar mais grosso do que o senhor". Após os aplausos da bancada do PCP, Sousa Tavares responde: "Idiota!"
Após explicar o seu passado fabril e parlamentar, o actual secretário-geral do PCP mandou então calar o deputado do PSD, por "mandar 'bocas'" e "ofender esta Assembleia", ao que Sousa Tavares respondeu: "Olhe, vá à merda! Idiota! Mandrião! Vá trabalhar, que foi aquilo que nunca fez na vida! Calaceiro!". Sousa Tavares aparenta liderar o uso da palavra merda na Assembleia da República, qualquer que fosse a situação parlamentar. A 18 de Janeiro de 1980, na discussão final do Programa do Governo, questionava como "cada português trabalhador pagava 30 000$ para a 'merda' - desculpem-me a expressão - dos seguros sociais que nós temos".
Mas o primeiro, em democracia, a usá-la deve ter sido Américo Duarte, da UDP. Em Novembro de 1975, ficou registado no então Diário da Assembleia Constituinte que, "se há alguma coisa de inovador, é vermos um primeiro ministro mandar à merda dezenas e dezenas de milhares de trabalhadores". Referia-se a Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro do VI governo provisório (e último), que tomara posse em Setembro desse ano.
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