Em 2019, Michel Desmurget publicou um livro que chegou ás livrarias em Portugal com o título “A Fábrica dos Cretinos Digitais – Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos”. Na apresentação do livro, a editora, a Contraponto, usou um excerto de uma entrevista que o autor deu então à BBC em que afirmava que “os nativos digitais são os primeiros filhos a terem um QI inferior ao dos pais”. Ou seja, segundo Michel Desmurget, os jovens atuais não têm pela frente “apenas” um futuro económico menos risonho, serão também menos capazes intelectualmente. “Após milhares de anos de evolução, o ser humano está agora a regredir em termos cognitivos e de capacidades intelectuais — por culpa da exposição excessiva a ecrãs”, justificava então.
Michel Desmurget não é um curioso nestas matérias. Doutorado em Neurociências, é diretor de investigação do Instituto Nacional de Saúde e Investigação Médica, em França, autor de vários livros e, também, pai.
Cinco anos depois do lançamento de “A Fábrica dos Cretinos Digitais – Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos”, a situação que então descrevia em termos de dependência de ecrãs por parte de crianças e jovens, a situação piorou – ou pelo menos o tempo aumentou. E, vamos convir, já não eram valores baixos. Recordemos os dados de então: quase três horas para crianças com 2 anos, cerca de quatro horas e quarenta e cinco minutos, entre os 8 e os 12 anos e, em média, seis horas e quarenta e cinco minutos entre os 13 e os 18.
De volta à apresentação do livro e citando: “Em termos anuais, são cerca de mil horas para um aluno do 1.º ciclo do ensino básico (quase o mesmo número de horas de um ano escolar) e 1700 para um do 2.º ciclo. Já para um aluno do 3.º ciclo e do ensino secundário, falamos de 2400 horas anuais, o equivalente a um ano e meio de trabalho a tempo inteiro”.
“Pesquisei a literatura científica em todas as direções e não encontrei melhor antídoto para o embrutecimento dos espíritos do que a leitura”
“A Fábrica dos Cretinos Digitais – Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos” venceu o prémio para melhor ensaio em França e, depois de ter identificado o que apresenta como um problema, Michel Desmurget dedicou o seu tempo, nestes cinco anos, a estudar soluções. É dessa investigação que resulta o seu novo livro, que chegou a Portugal há cerca de um mês e que desvenda no título aquela que apresenta como a melhor resposta que pais, educadores, políticos podem dar à profusão de ecrãs que nos rodeiam: “Ponham-nos a ler – a leitura como antídoto para os cretinos digitais”.
“Pesquisei a literatura científica em todas as direções e não encontrei melhor antídoto para o embrutecimento dos espíritos do que a leitura”.
"Não está tudo bem"
Começámos a nossa conversa por uma, vamos chamar-lhe, curiosidade. A edição inglesa do livro de 2019 não usa a expressão que o autor escolheu, “a fábrica dos cretinos digitais”, optando pelo título “Screen Damage – The Dangers of Digital Media for Children” [O Impacto ou os Danos dos Ecrãs - Os Perigos dos Meios Digitais para as Crianças]. Pode ser um detalhe sem importância, mas sendo o inglês uma espécie de língua franca mundial e também a língua nativa das chamadas Big Tech que detém ou exploram a maior parte dos “ecrãs” que nos rodeiam, não deixa de ser curioso que tenha sido evitada uma expressão com muito maior impacto como “a fábrica dos cretinos digitais”.
Na entrevista ao SAPO24, Michel Desmurget conta que “o editor não gostou do título original, provavelmente era demasiado atrevido”, mesmo assumindo que o seu objetivo foi sempre dizer “atenção, há algo errado aqui”. Cordialmente acrescenta que poderão também ter interpretado o livro como sendo mais técnico, mais dirigido ao um público científico, e menos ao público em geral. “Para ser honesto, não sei”, comenta.
Não tenho problemas com ecrãs, mas sim com a maneira como os estamos a usar. Tenho problemas com pessoas que tentam fazer parecer que está tudo bem, que os ecrãs tornam as crianças mais inteligentes
Antes de publicar “A Fábrica dos Cretinos Digitais”, Desmurget tinha já escrito também sobre a televisão – melhor dizendo, a “lobotomia” da televisão. O que torna relevante perguntar se tem uma espécie de malapata com a tecnologia e, nomeadamente, a tecnologia de media do mundo atual que integra, quase sempre, ecrãs. “Não, não tenho problemas com ecrãs, mas sim com a maneira como os estamos a usar. Tenho problemas com pessoas que tentam fazer parecer que está tudo bem, que os ecrãs são uma coisa maravilhosa, que tornam as crianças mais inteligentes. E então tenho um problema com lobistas. Sou cientista e parte do meu trabalho é ver o que é publicado e percebi uma discrepância entre o que lemos nos jornais - "é ótimo, está tudo bem” – e o que sabemos pela análise dos dados”.
E o que está a acontecer com a informação que hoje temos sobre o impacto do tempo passado frente aos ecrãs no desenvolvimento de crianças e jovens é, na sua opinião, equivalente ao que aconteceu com o tabaco e com as alterações climáticas. "Tivemos mais de 30 anos de diferença entre o que a ciência sabia dos dados e o impacto nos media”, afirma. Recorda a propósito o livro publicado em 2010 por dois historiadores de ciência, “Merchants of Doubt - How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming”, que mostra como durante anos alguns cientistas ajudaram a criar dúvidas para que evidências que a investigação científica demonstrava fossem colocadas em causa, sendo disso exemplo os estudos sobre as consequências do tabaco ou o avanço das alterações climáticas.
Dos zero aos 18 anos, quando somamos o tempo passado em televisão, videojogos e redes sociais, percebemos que é o equivalente a 27 anos escolares
Na primeira parte do livro “Ponhan-nos a ler”, Desmurget usa precisamente este paralelo: o que diz a literatura científica e o que é dito no espaço público sobre o impacto dos media digitais em crianças e jovens.
“Dos zero aos 18 anos, quando somamos o tempo passado em televisão, videojogos e redes sociais – que corresponde a 80 ou 90% de todo o tempo de ecrãs – percebemos que é o equivalente a 27 anos escolares. É sério e finalmente está a ser olhado como tal. Em França, já temos uma comissão a alertar para os perigos dos ecrãs para crianças com menos de 6 anos e a primeira vez que levantei o tema achavam só que estava a exagerar”, relata.
E, mais uma vez, volta às discrepâncias. “Víamos artigos nos media a dizer que os videojogos, por exemplo, eram bons para a concentração e melhoravam os resultados escolares e os pais e professores não viam nada disso a acontecer.” Mas, a consciencialização do impacto do digital na educação e na formação das crianças e jovens não se traduz, sublinha, numa guerra aos ecrãs. “Eu uso ecrãs . O que precisamos é ensinar como usá-los”.
Uma catástrofe para a educação e para a saúde
Ensinar a usar ecrãs não é muito diferente de outras regras que ensinamos às crianças. Como na alimentação, exemplifica. “Muitas crianças e jovens gostam de fast food, mas como pais sabemos que não se podem alimentar disso apenas e que precisam ter refeições equilibradas. É a mesma coisa”.
“Se a milha filha quiser comer chocolate o dia todo, é o meu papel dizer que não. O mesmo aplica-se a ver Netflix o dia todo ou ao TikTok. Como pai, sei que não é bom, logo é o meu papel de educar em nome da sua capacidade de se tornar uma cidadã, de ser livre, de ser capaz de pensar e de ter linguagem”.
Esta é uma decisão que deve começar em casa, segundo Michel Desmurget, mas que não se deve limitar às famílias. “É hora de soar um alarme, nomeadamente para as políticas públicas. Em França, pela primeira vez um Ministro da Educação disse que os ecrãs são uma catástrofe para a saúde e educação. E isso pode ser visto nos resultados do programa PISA”.
Uma criança com 13 anos hoje tem o mesmo nível de leitura que tinha uma criança de 12 anos há quatro anos. Até onde vamos escavar?
Os resultados do programa PISA são uma das fontes de dados apresentada no mais recente livro do autor. Nomeadamente os que respeitam à leitura e à linguagem. “São mais baixos em todas as avaliações. É verdade em França e é também verdade em Portugal, como na Alemanha ou na Inglaterra. Entre aproximadamente 2018 e agora, as crianças perderam o equivalente, nestas capacidades, a um ano de escola. Uma criança com 13 anos hoje tem o mesmo nível de leitura que tinha uma criança de 12 anos há quatro anos. Até onde vamos escavar?”.
Passemos então ao antídoto: ler
É um lugar comum que ler faz bem. Ou como Desmurget relembra, logo nas primeiras páginas de “Ponham-nos a ler”, “existe todo um conjunto de testemunhos de autores, jornalistas, filósofos que afirmam que ler os ‘salvou’, ‘fortaleceu’, ‘libertou’, que os protegeu ‘do desespero, da estupidez, da cobardia, do tédio’”.
Mas, aquilo que defende, vai além do que sempre se soube e traz a leitura para um espaço que é também de saúde e de cidadania. “Desde o aparecimento da linguagem, a humanidade não inventou nada melhor do que a leitura para estruturar o pensamento, organizar o desenvolvimento do cérebro e civilizar a nossa relação com o mundo”, sublinha no livro.
Só que criar hábitos – e prazer – na leitura é hoje uma tarefa mais difícil. Precisamente pela disputa de uma atenção mais fácil e com uma recompensa mais imediata que chega dos vários ecrãs. Se os adultos, nomeadamente pais e professores, também estão colados a ecrãs, como é que se reduz o tempo no digital e aumenta na leitura?
Quando mostramos aos pais que a leitura tem efeitos do desenvolvimento da linguagem, da inteligência, que realmente muda a trajetória das crianças, a probabilidade de mudarem o comportamento é maior
“Se os pais lêem ou não é menos importante do que lerem com os filhos”, começa por responder.
“Se explicarmos aos pais, não importa qual a classe social a que pertencem, que ler é muito importante para as crianças em termos de desenvolvimento da linguagem e de resultados escolares, que é importante reduzir o tempo de ecrã e fazer leitura em família, isto tem impacto positivo no comportamento”.
Acrescenta um exemplo: “aos 6 ou 7 anos, a capacidade de leitura é um dos principais preditores de desenvolvimento escolar e capacidade intelectual futura”. Porquê? “Porque a leitura está no centro da aprendizagem. Há a expressão ‘aprender a aprender’, que na maior parte do tempo é treta, mas na leitura tem significado”.
O neurocientista defende que é preciso explicar a importância para o desenvolvimento da criança, exatamente como se explica a alimentação ou o ensino. Com uma nota especialmente relevante: isto começa com a própria família a guardar tempo, desde o início da infância, para ler em conjunto, para fazer da leitura uma atividade partilhada. “Quando mostramos aos pais que a leitura tem efeitos do desenvolvimento da linguagem, da inteligência, que realmente muda a trajetória das crianças, a probabilidade de mudarem o comportamento é maior”.
Que não haja ilusões. “Ler é muito mais do que abrir um livro. Pensemos no ténis, não é porque tenho uma raquete que sou um tenista, muito menos o Nadal”.
“Ler é compreender. Precisamos entender que ler é muito mais complicado do que pensamos. Por exemplo, você é portuguesa, fala português. Mas o português falado e escrito não é a mesma e os pais têm de ensinar esta língua porque é a única forma de ser capaz de ler. É preciso começar cedo e acabar tarde”.
Se uma a criança tiver que escolher entre uma série ou um jogo e um livro, vai sempre escolher Netflix e videojogos. E, se não o fizer, está algo errado com o seu cérebro. Mas aí entra o papel dos pais e dos professores
Como podem os livros competir com ecrãs?
Mas regressemos à pergunta, como fazer da leitura um hábito na era dos ecrãs digitais? “Com prazer. Se não houver prazer não há leitura, é tão simples como isso”.
Insistimos. Mas como disputar a atenção para um livro face à 'tentação' de uma série ou um videojogo? Como podem os pais concorrer com os ecrãs? “Não podem. Se uma a criança tiver que escolher entre uma série ou um jogo e um livro, vai sempre escolher Netflix e videojogos. E, se não o fizer, está algo errado com o seu cérebro. Mas aí entra o papel dos pais e dos professores. Se a minha filha decidir experimentar cocaína porque acha divertido, é o meu papel dizer nem pensar, é a minha responsabilidade educacional”.
“Não estou a comparar cocaína com erãs, mas se a minha filha quiser comer chocolate o dia todo, digo o mesmo. Se quiser passar o tempo todo a ver séries ou no TikTok, é igual”.
A atuação face aos ecrãs remete para um plano mais alargado de reflexão sobre o papel da educação e dos pais enquanto educadores.
“Estamos aqui apenas para fazer o que torna os nossos filhos imediatamente felizes? Para lher dar o que lhes desperta a dopamina? Então vamos deixá-los comer McDonald’s sempre que queiram e ver Netflix e videojogos o dia todo. A questão é qual é o nosso papel enquanto pais e, na minha opinião, é criar uma criança – adoro esta expressão, criar. E por isso é nossa responsabilidade que o cérebro se desenvolva de forma adequada, que tenha plasticidade, que tenha o melhor desenvolvimento das suas capacidades”.
“O que é que eu quero como pai? Quero que a minha filha seja livre, capaz de pensar e tenha todas as ferramentas para isso. Quando tiver 18 anos, pode decidir que o seu propósito na vida é ver série no Netflix, mas tem o cérebro capaz para tudo o resto”
O autor que é também neurocientista entra em cena para acrescentar um dado que não é um pormenor e que passa pela forma como o sistema neuronal funciona e a necessidade que tem de ser treinado. “Olhemos para a rede de linguagem no cérebro. Quando um bebé nasce já tem esta rede e quando falamos com ele, a estrutura de resposta está lá como num adulto, mas não está formada. É como se tivéssemos uma estrada rural e quiséssemos fazer uma autoestrada. E o que os estudos nos mostram é que a forma ótima como este sistema se vai desenvolver é inversamente proporcional ao tempo passado em frente a ecrãs”.
O sistema de recompensa é super-poderoso e os ecrãs digitais têm a capacidade de o hiperativar. Não quero que a minha filha seja uma espécie de rato
“Vejamos o que se passa com um rato. Se colocarmos um leitor no seu sistema de recompensa cerebral e lhe dermos um botão que ativa este sistema, ela vai fazê-lo – até ficar doido. Vai ativar e ativar e ativar esse botão de recompensa até ao ponto em que já nem sequer come e morre. O sistema de recompensa é super-poderoso e os ecrãs digitais têm a capacidade de o hiperativar. Não quero que a minha filha seja uma espécie de rato”.
O sistema de recompensas é poderoso e, se desregulado, é uma porta aberta a várias adições. “Quando damos um smartphone a uma criança ou a teenager, estamos a dar-lhe algo que o seu cérebro ainda não está apto a usar. Se pensarmos na região do cérebro que nos permite controlar o uso destes equipamentos, tomar decisões, usar inibição – é difícil até para adultos! – mas nas crianças simplesmente o cérebro não está preparado, a região do cérebro que lhes dará capacidade de se defenderem, não está pronta. Estamos a dar-lhes uma coisa de que não se podem defender".
Parece uma distopia, mas pode não ser. Num futuro, não muito longínquo, podemos ter uma sociedade replicada do “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, livro publicado em 1932 mas cuja ação se passa no ano 2540 em que há uma elite que entende e domina a linguagem e uma multidão de “gamas”, técnicos que apenas executam tarefas?
Quando damos um smartphone a uma criança ou a teenager, estamos a dar-lhe algo que o seu cérebro ainda não está apto a usar
“É um bom paralelo. E também mostra o impacto dos ecrãs, não sei como dizer isto de outra maneira, mas quanto mais tempo passamos à frente, mais burros ficamos, porque a linguagem diminui, a concentração diminui”.
Não entender o que se lê é um problema para todos, não apenas para a criança
Desmurget cita, a propósito, um estudo da Universidade de Stanford que avaliou a capacidade de crianças de 12 anos em entender o que leem na internet. “A conclusão foi que não entendem porque não têm os recursos necessários de linguagem. Não o conhecimento necessário para detetar o que é parvoíce ou falso. É uma ameaça para a própria criança e é uma ameaça à economia e à democracia”.
O mesmo tipo de conclusões, afirma, pode ser retirado dos resultados do programa PISA no que respeita às capacidades de leitura e de compreensão. “Uma das questões que se colocava aos alunos era sobre um parágrafo que começava por “há um problema” e a pergunta era sobre qual era o problema. O texto são quatro parágrafos, 50 palavras. A frase completa é “Há um problema. As árvores desapareceram. E 50% das crianças não conseguiram responderam à questão”.
O mesmo acontece com referências temporais, acrescenta. No segundo parágrafo do mesmo texto refere-se que “a professora foi-se embora, ela passou nove meses a estudar as árvores”. Há outras referências, como a de que o primeiro investigador chegou em 1990 e que ela manteve um blog durante um ano. Quando questionados sobre quanto tempo é que a professora passou na ilha a estudar as árvores, 75% das crianças não conseguiram responder.
A forma como estes resultados são avaliados não tem sido unânime e Michel Desmurget discorda de quem vê neles uma consequência do ambiente “stressante” da escola.
“Há quem defenda que fora da escola estas crianças são capazes de fazer uma série de tarefas diárias e que conseguem passar do concreto para o abstrato. O que conseguem então fazer, segundo esse relatório, que é tão impressionante? Conseguem por a tocar a música que querem no MP3, conseguem comprar um bilhete de comboio na internet, conseguem fazer um plano para uma festa de anos garantindo que duas pessoas que não gostam uma da outra não estão ambas na mesma mesa e conseguem regular o ar condicionado. É o tipo de tarefas que conseguem fazer e há pessoas que ficam felizes porque isso fará andar a economia. São as típicas tarefas que os “gama” do Admirável Mundo Novo fazem, mas não as que os “alfa” fazem”.
Ler é melhor do que não ler, mas toda a leitura produz o mesmo efeito no desenvolvimento da linguagem e intelectual?
“As crianças vão ler se puderem escolher o que lêem – deixem-nas escolher os seus livros. É melhor que uma criança leia um livro que nos pareça simples demais ou menos interessante do que outros do que estar a assistir a um programa estúpido na televisão. Mas nem todos os livros são iguais”.
Toda a série Harry Potter representa um milhão de palavras. Se uma criança lê um milhão de palavras, aprende 1000 palavras
“Não imaginamos o quanto é difícil aprender a linguagem e como pode ser frustrante. Podemos achar que uma criança de 10 anos já está habilitada a ler sozinha e por vezes não está. Costumava dizer à minha filha quando era pequena para sublinhar tudo o que não entendesse num livro e, ainda há pouco tempo, quando foi para a universidade estávamos a arrumar livros e vi frases inteiras dessa altura sublinhadas”.
Por outro lado, importa não colocar ao mesmo nível – no que respeita ao desenvolvimento da linguagem – um livro de banda desenhada. Não significa que não deva integrar a “dieta”, mas o impacto, dependendo da idade, é diferente. “Toda a série Harry Potter representa um milhão de palavras. Se uma criança lê um milhão de palavras, aprende 1000 palavras. Para o conseguir com livros de banda desenhada, demorará muito mais a ficar exposta a tantas palavras, além de que a estrutura da frase numa tira de banda desenhada é forçosamente mais simples. Não significa que não são interessante, mas o impacto é diferente”.
O que Michel Desmurget não aceita, de todo, é o argumento de que “nunca se leu tanto como agora por causa da internet”. “Não é verdade, ler representa apenas 3% do tempo passado na internet. É marginal e passado com conteúdos que são muito pobres. Redes sociais, blogs, SMS, quanto mais tempo se passa a lê-los, menos a linguagem aumenta. Tem um impacto na linguagem, na leitura e nos resultados escolares”.
A dependência de ecrãs não é igual no mundo - e isso pode fazer (toda) a diferença
Falta falar de políticas públicas: como podem os governos intervir? Michel Desmurget começa por descascar a camada económica. “Se muitos políticos começam agora a reagir é porque existem estudos que mostram que a saúde económica do país também é impactada pela leitura. Havia essa fábula de que só seria preciso uma população muito pequena de pessoas inteligentes que seriam suficientes para conduzir a economia e o restoiam virar hambúrgueres. Já começaram a perceber que é uma coisa estúpida de se dizer. Para conseguir um Ronaldo, você precisa ter uma enorme quantidade de jogadores e é o mesmo para a inteligência. Há uma correlação entre o desenvolvimento económico de um país e literacia e a leitura é fundamental para a literacia”.
Quando olhamos para o quão mal nos saímos em comparação com, por exemplo, países do Sudeste Asiático, isso realmente se torna uma ameaça para a nossa economia. O milagre não é económico, é educacional
O que levanta outro ponto, na perspetiva de Michel Desmurget. A forma como as sociedades estão a lidar com o consumo de tempo em ecrãs não é igual em todo o mundo. O excesso de horas é um problema, afirma, sobretudo no mundo ocidental, porque noutros lugares, como o sudoeste asiático, a forma como usam os ecrãs e como olham para a leitura é diferente
“Quando olhamos para o quão mal nos saímos em comparação com, por exemplo, países do Sudeste Asiático, isso realmente se torna uma ameaça para a nossa economia. O milagre não é económico, é educacional.”
Em termos mais concretos, uma das medidas que começa a ser equacionada é a colocação de alertas sobre os riscos do tempo excessivo passado em redes sociais, ou a jogar, ou a ver séries. Essa será uma decisão dos países, mas, nas famílias e nas escolas, Michel Desmurget não tem dúvidas: “é livros ou nada”.
Comentários