Edições mais simples de Os Cinco, músicas com menos palavras ou aulas universitárias com menos leituras recomendadas para não sobrecarregar os alunos. Em “Ponham-nos a ler – A leitura como antídoto para os cretinos digitais”, o neurocientista Michel Desmurget apresenta dados que ilustam a forma como a leitura tem perdido espaço em prol dos ecrãs e explica porque razão é preciso regressar aos livros.
1. Quanto mais ecrãs aos 2 anos, menos leitura aos 3
“Está hoje claramente demonstrado que quanto mais os membros do agregado familiar (crianças e/ou pais) estiverem expostos a ecrãs recreativos, menos tempo há para as trocas intrafamiliares, incluindo a aleitura partilhada. Para o grupo etário dos 0-5 anos, por exemplo, um estudo concluiu que cada hora de televisão por dia (de longe, o principal nessa idade) retirava quarenta a conquenta minutos de interação humana. [...] Foram apresentadas duas conclusões. Em primeiro lugar, quanto mais ecrãs as crianças consumissem aos 24 meses, menor era a sua exposição à leitura partilhada aos 36 meses. Em segundo lugar, quanto menos as crianças estivessem expostas à leitura partilhada aos 36 meses, mais ecrãs consumiam aos 60 meses”.
2. Diariamente, seis em cada dez adolescentes não leem quase nada
“Além da percentagem de leitores que leem “todos os dias ou quase todos os dias”, vários inquéritos em França e nos Estados Unidos analisaram o tempo de leitura diário. [...] Algumas pessoas pensarão, sem dúvida, que trinta minutos de leitura por dia não é assim tão mau. Infelizmente essa ideia é enganadora, como demonstram os dados pormenorizados do estudo americano Common Sense. Se retirarmos da equação a minoria dos leitores (28%), o investimento médio diário desce para menos de dez minutos. Não se trata de um valor inesperado. Reflete simplesmente a pequena percentagem de pessoas que leem todos os dias: 44% dos 8 aos 12 anos e 30% dos 13 aos 17 anos, Ou seja, diariamente, seis em cada dez adolescentes não leem quase nada!”
3. O adolescente que uma vez por ano consulta um guia de culinária no seu tablet para saber quanto tempo demora um ovo a cozer alcança o estatuto de “leitor que leu pelo menos um livro nos últimos doze meses”
“É interessante voltar ao conteúdo real do estudo-fonte realizado em 2018 pela Ipsos para o Centre National du Livre. [...] As conclusões do relatório são incontestáveis: “86% de leitores”, ou seja, praticamente toda a população, exceto os iletrados ou os que têm grandes dificuldades de leitura. Por outra palavras, qualquer jovem que não seja iletrado (ou quase) é um leitor. [...] Nesta fase, é evidente que algo não está bem. E esse algo é a definição do que (ou não é) um leitor. Para o cidadão comum, trata-se de alguém que lê assiduamente livros clássicos. Todavia, para os especialistas em sondagens, é alguém que lê algo, com qualquer frequência, em qualquer suporte. [...] Neste contexto, o adolescente que uma vez por ano consulta um dicionário no seu smartphone, para procurar uma palavra desconhecida ou um guia de culinária no seu tablet para saber quanto tempo demora um ovo a cozer, alcança miraculosamente o estatuto de “leitor que leu pelo menos um livro nos últimos doze meses”
4. 49% dos alunos do ensino secundário da OCDE afirmaram que só liam “se fossem obrigados”
“Entre os 15 e os 28 anos, 84% das pessoas nascidas entre 1945 e 1954 liam pelo menos um livro por ano. Este valor desceu para apenas 58% entre os chamadas millennials (nascidos entre 1995 e 2004). [...] A tudo isto juntam-se os últimos dados, absolutamente aterradores, do programa PISA. Em 2018, 49% dos alunos do ensino secundário da OCDE afirmaram que só liam “se fossem obrigados”, mais 8% que em 2009”
5. Reduzir a complexidade porque "os alunos não compreendiam o que liam"
“Naturalmente, o sistema académico teve de se adaptar a estas quedas. Nos Estados Unidos, numa universidade privada de elite, nos últimos cinco a dez anos, 49% dos professores reduziram o volume de leituras obrigatórias; 20% reduziram a sua complexidade, porque “os alunos não compreendiam o que liam”, 32% disponibilizaram mais vídeos para compensar estas mudanças”
6. “A taxa de idiotas que se formam continua a aumentar”
“Como explica François Dubet, sociólogo e especialista em questões de educação, é preciso ter cuidado para não confundir “o nível dos diplomas com a sua utilidade”. Por outras palavras, o facto de a população ter cada vez mais qualificações, não significa que os jovens sejam cada vez mais competentes, sobretudo no que diz respeito às línguas. Emmanuel Todd resumiu bem a situação numa entrevista recente. Para este antropólogo, “assistimos atualmente a uma verdadeira dissociação entre os diplomas e as competências intelectuais”. Desde logo, o aumento constante de número de diplomas concedidos pelos estabelecimentos de ensiono superior não indica, de forma alguma, que os nossos filhos estejam a ficar mais bem formados; mostra apenas que “a taxa de idiotas que se formam continua a aumentar”.
7. A China continua a voar alto na classificação do PISA, enquanto a França e os Estados Unidos definham
“Em 2009, vários países asiáticos aderiram ao progtama PISA. [...] É preciso dizer que, na altura, a comparação não favorecia o Tio Sam. Em termos de leitura, por exemplo, a taxa de alunos fracos era de 17% na China, contra 42% nos Estados Unidos. [...] Desde 2009, nada mudou, de facto. A China continua a voar alto na classificação do PISA, enquanto a França e os Estados Unidos definham no pântano, não muito longe da média da OCDE”.
8. Numa nova edição de "Os Cinco na Ilha do Tesouro" as frases foram encurtadas 15% e a riqueza lexical em 40%
“Um lento processo de declínio da linguagem foi também registado em livros não escolares para crianças. [...]Não podemos deixar de fazer a ligação com a recente reescrita, em França, de certos livros emblemáticos, incluindo a famosa coleção Os Cinco. Como mostrei num livro anterior, o mínimo que se pode dizer é que o editor fez tudo o que estava ao seu alcance para não sobrecarregar o leitor. Num capítulo retirado ao acaso de Os Cinco na Ilha do Tesouro, o tempo verbal do pretérito simples simplesmente desapareceu em favor do presente, enquanto as frases foram encurtadas 15% e a riqueza lexical em 40%. Apenas um exemplo. Uma das primeiras páginas da versão original francesa dizia: ‘Não desesperem de antemão. Encontraremos outro sítio para vos enviar, onde se divertirão tanto quanto nós’. A versão de 2006 afirmava de forma simplória:’Não façam essa cara’. A parte mais curiosa da história é que, como explica, Donald Hayes, professor de Sociologia na Universidade de Cornell, os romances da escritora Enyd Blyton eram ‘fortemente rejeitados’ pelos professores da década de 60 devido à sua linguagem pobre”
9. ‘Valjean rouba um pão para a sua irmã esfomeada, é preso, foge, enriquece, emenda-se, salva uma menina, cria-a, ama-a, ela casa, e ele morre’
“Isto é ainda mais verdade se acrescentarmos a este quadro a proliferação de livros mais curtos do que a sua versão original. O livro de bolso juvenil, por exemplo, entrou neste nicho em 2012. Esta escolha ‘responde diretamente a um pedido dos professores, de acordo com as instruções oficiais do Ministério da Educação francês, que se esforçam por motivar os seus alunos. Entre outrs coisas, evitar intimidar os alunos que leem menos com volumes demasiado grandes. Felizmente, os nossos pobres viciados em leitura são menos sensíveis quando se trata de lidar com a inesgotável enxurrada de séries da Netflix, de vídeos do TikTok, reality shows e jogos online multijogador. Mais um esforço e todas as grandes obras, como O Conde de Monte Cristo, Orgulho e Preconceito e Os Miseráveis estarão em breve disponíveis no formato original do Twitter: 140 carateres. Para a imensa obra-prima de Victor Hugo, poderia ser mais ou menos assim: ‘Valjean rouba um pão para a sua irmã esfomeada, é preso, foge, enriquece, emenda-se, salva uma menina, cria-a, ama-a, ela casa, e ele morre’”.
10. Por favor, use mais palavras’
“Entre 1958 e 2016, as canções mais bem classificadas nas tabelas americanas sofreram uma grande simplificação. Algumas canções alcançaram agora um nível lexical tão famélico que um jornalista da revista Time decidiu escrever uma carta aberta a Rihanna com o título ‘Por favor, use mais palavras’. [...] Dito isto, como vários estudos recentes demonstram, a Time teria feito bem em enviar o mesmo tipo de pedido aos nossos líderes. Nos últimos sessenta anos, nos Estados Unidos, os discursos políticos, nomeadamente os presidenciais, foram-se tornando cada vez menos complexos e mais caricaturais, culminando no trágico Donald Trump cuja linguagem é acessível a partir do 4º ou 5º anos do ensino básico”.
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