“Quem paga um café a este miúdo?” — o miúdo é António Rolo Duarte, candidato a um doutoramento na universidade britânica de Cambridge. No início desta semana, António lançou uma campanha na internet, pedindo ajuda para pagar as propinas, cujo prazo termina no final de agosto.
Com um site e um vídeo, o jovem pede ajuda para reunir 25 mil euros, suficientes para lhe pagar o ano em Inglaterra. Até às 00h40 desta quinta-feira, 242 pessoas já tinham contribuído com 4860 euros. Segundo António, a culpa é da entidade portuguesa que financia a investigação científica que acusa de lhe ter pregado "uma partida", ao "adiar indefinidamente" a atribuição da bolsa que lhe sustentaria os estudos no Reino Unido.
Campanhas de “crowdfunding” são comuns para os mais diversos motivos. Passam por pedir pequenas quantias de dinheiro a uma grande quantidade de pessoas. E é isso que António faz: pede “uma bica”, que avalia em 1 euro, a 25 mil pessoas (no site, existem diversas categorias de financiamento, cada uma com “regalias”, que vão desde um postal a uma ida a um baile em Cambridge na companhia dele).
Mas a justificação que António dá para precisar do dinheiro envolve uma instituição portuguesa: a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), responsável pela atribuição de financiamento à investigação científica em Portugal, sob tutela do ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. E quer a FCT, quer a ministério, olham para a situação como algo caricato.
Contactada pelo SAPO24, a FCT confirma que António Rolo Duarte apresentou uma candidatura ao Concurso para Atribuição de Bolsas de Investigação para Doutoramento de 2020. A candidatura do jovem junta-se a outras 3.797, num concurso que prevê a atribuição de apenas 1.350 bolsas. "Os candidatos são avaliados e selecionados por um processo de avaliação que está a decorrer, cujas regras também são conhecidas pelos candidatos e estão disponíveis publicamente", explica a entidade.
"Ele é um candidato em 3.797 candidatos"
Assim, não tendo os resultados ainda sido divulgados, é impossível saber nesta fase se António terá direito à bolsa que diz estar atrasada. O jovem, que desde o secundário faz a vida académica no estrangeiro, nunca teve sequer outra bolsa da FCT no passado. "Estamos a trabalhar numa situação de probabilidade: ele é um candidato em 3.797 candidatos. Ele, simplesmente, está a partir do pressuposto de que vai ter uma bolsa", afirma fonte da FCT.
Para ser financiado, o projeto de António Rolo Duarte terá de preencher os requisitos do painel de investigadores, convidado pela FCT para o avaliar. A candidatura será avaliada por um dos 28 grupos temáticos, em comparação com todas as outras candidaturas daquela área.
Na versão que António Rolo conta no site da campanha, diz que estava a contar com uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia para financiar o doutoramento no Reino Unido. Segundo explicou na segunda-feira, 3 de agosto, ao SAPO24, “a atribuição das bolsas tinha de ter acontecido até julho, mas por causa da covid-19, o ministério adiou indefinidamente" a divulgação dos resultados. Ao estudante, a FCT terá mesmo dito que pode ter de esperar até novembro para ter uma resposta.
Segundo as normas da FCT, isto, porém, não é completamente verdade. A FCT tem 90 dias úteis, depois do encerramento do portal para as candidaturas, para divulgar os resultados provisórios. Feitas as contas, com a prorrogação de um mês, a pedido dos candidatos a bolseiros, na entrega dos documentos, a instituição tem até ao dia 3 de setembro para revelar a quem entrega as bolsas disponíveis.
Mesmo assim, a FCT diz que é possível que que algum funcionário tenha dito que os resultados do concurso saem só em novembro, porque de facto esse é o prazo legal final para que os números definitivos sejam divulgados. Os provisórios, a partir dos quais já é possível iniciar a contratualização, saem normalmente em agosto. Este ano, dada a prorrogação do prazo de candidatura de março para abril devido à pandemia, podem sair até ao princípio de setembro, mas a fundação garante estar a trabalhar para saírem mais cedo do que isso.
Os resultados definitivos têm já em conta as reclamações e audiências prévias. E esse processo, durante o qual os candidatos podem contestar a seriação, pode, este ano, estender-se até novembro (10 dias úteis para reclamar + 60 dias úteis para a FCT se pronunciar).
"Isto é todos os anos assim", afirma fonte da FCT, que descreveu o processo. "No ano passado o resultado [definitivo] foi apresentado a 29 de outubro."
O SAPO24 sabe por várias fontes que ainda não há este ano qualquer atraso no processo de atribuição das bolsas — e que António está, como centenas de outros candidatos, à espera da divulgação dos resultados do concurso. Ou seja, neste momento, não é sequer certo que a FCT lhe vá atribuir bolsa, nem qual o valor do eventual financiamento contratualizado.
Logo na segunda-feira, quando o jovem começou a divulgar a campanha, o SAPO24 confirmou junto de fonte ligada a uma federação académica em Portugal que não tinham sido reportados quaisquer atrasos. Um dirigente estudantil explicou que desde o início da pandemia a fundação garantiu que haveria um adiamento dos prazos para a entrega de documentação, "para que ninguém saísse prejudicado".
A mesma fonte explicou ainda que continuaram a ser atribuídas bolsas, algumas mesmo no âmbito da covid-19, não tendo conhecimento de que houvesse um adiamento generalizado.
Esta quarta-feira, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia confirmou oficialmente que não há atrasos. Ao SAPO24, a entidade explica que "não existe nenhum adiamento para a atribuição das bolsas de doutoramento FCT do concurso de 2020. O único adiamento que ocorreu, e para benefício dos candidatos, foi a prorrogação do período de candidaturas em um mês, que terminou em 28 de abril de 2020, devido às dificuldades causadas pela pandemia SARS-CoV-2/COVID-19".
"Na altura a FCT recebeu muitas solicitações dos candidatos para esta prorrogação, manifestando constrangimentos para a concretização dos processos, nomeadamente a nível de tempo e acesso à documentação necessária para as candidaturas. Todo o processo está a decorrer dentro da normalidade, e de modo similar ao que se passa todos os anos. Apesar da prorrogação de um mês de candidaturas, a FCT apresentará os resultados aos candidatos dentro dos prazos que têm pautado este concurso nos anos anteriores", garante fonte oficial da instituição.
"Há alguns mal-entendidos a circular”
O SAPO24 falou com António Rolo Duarte na segunda-feira, 3 de agosto, mas após a tentativa de uma nova entrevista, já depois dos esclarecimentos da FCT, esta quarta-feira, António Rolo Duarte mostrou-se indisponível e remeteu para um novo texto que escreveu hoje sobre o caso, não respondendo às questões agora colocadas, nomeadamente para explicar se sabia que a bolsa só podia ter início após 1 de setembro.
No email, António diz que “há alguns mal-entendidos a circular”, afirmando estar a ser “acusado de criar uma campanha com base numa mentira”.
“Obviamente, não é o caso. Era preciso eu ser um bocado tonto ou ter o meu sentido moral completamente invertido para o fazer”, defende. “Tudo o que eu tenho dito na minha campanha é verdade”, diz. E aponta para a “inveja ou maldade”, bem como a má informação como justificações para as críticas à iniciativa.
“A mim, um membro do público preocupado com o seu futuro, a FCT disse uma coisa. Aos jornais, após a minha campanha ganhar uma dimensão nacional, a FCT disse outra coisa diferente. Em que é que ficamos? Deixo o processo de tentar perceber o que se passa aqui para os jornalistas”.
“Tenho todo o respeito pelo trabalho e pelos funcionários da FCT. Mas é preciso mais coerência. Caso contrário, há o risco de um jovem, trabalhador e motivado como eu, acabar por levar com as culpas — quando a sua intenção é apenas a de usar as suas capacidades para um projecto que o apaixona e que contribui para o seu país”, diz.
Caso a candidatura de António Rolo Duarte seja aprovada, o valor é contabilizado a partir do "dia um do mês que o candidato escolhe e que faz parte do contrato de bolsa que assina com a FCT. O início da bolsa não pode ocorrer antes de 1 de setembro 2020 nem após 1 de agosto 2021. Estas são regras que constam do aviso de abertura do concurso e que são iguais às de anos anteriores. Portanto, após a assinatura do contrato, serão sempre pagos os retroativos devidos. Estas regras são válidas para todas as bolsas, seja o plano de estudos realizado em Portugal ou no estrangeiro", explica a FCT.
Para ter a bolsa disponível de certeza em agosto de 2020, um candidato a doutoramento podia concorrer ao concurso de 2019, contratualizando o início da bolsa apenas para 1 de agosto de 2020.
Ainda assim, nalgumas instituições portuguesas é possível protelar a data de pagamento das propinas iniciais — depositando depois a FCT o valor nas contas da própria universidade —, ou, caso a instituição exija mesmo o pagamento, a FCT paga posteriormente ao bolseiro os valores em falta.
As bolsas de Investigação para doutoramento atribuídas pela FCT têm o valor mensal de 1.064 euros para planos de estudo realizados em Portugal e de 1.865 euros para planos de estudo realizados fora de Portugal, como é este caso, com uma duração máxima de 48 meses. "A FCT também comparticipa as propinas pagas pelo aluno, que no caso de um plano de estudos no estrangeiro tem o teto máximo de 8.000€ por ano, até ao máximo de 4 anos", explica ainda a fundação.
Para além disso, há um subsídio único de deslocação, em que a FCT paga 1.300 euros aos alunos que escolham um país europeu que não Portugal para estudar.
"Está toda a gente na mesma situação: a aguardar os resultados"
Bárbara Carvalho, presidente da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), explica que, apesar de os processos de candidatura às bolsas para este ano terem decorrido com mais um mês do que o habitual, é esperado que o anúncio dos resultados saia na mesma agora, esclarecendo também as diferenças entre resultados provisórios e definitivos.
"Nos anos anteriores, os resultados [provisórios] saíram sempre por esta altura. No ano passado, se não estou em erro, foi no dia 1 agosto; nos anos anteriores também entre o final de julho e o início de agosto", conta. "Este ano, o que é desejável e aquilo que todos esperamos é que os resultados, apesar da prorrogação, possam sair com a maior brevidade possível, para que todos possam começar o ano letivo em condições, com remuneração".
A dirigente sublinha que "não houve qualquer tipo de concurso suspenso ou adiado por um largo período de tempo". "Está toda a gente na mesma situação: a aguardar os resultados".
Não há cafés grátis
Na versão que António Rolo Duarte apresenta no site da campanha, contava com uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia para financiar o doutoramento no Reino Unido. Segundo explicou, “a atribuição das bolsas tinha de ter acontecido até julho, mas por causa da covid-19, o ministério adiou indefinidamente" a divulgação dos resultados, disse também ao SAPO24, na segunda-feira.
Com o prazo para o pagamento das propinas na universidade britânica a chegar ao fim já neste mês, António decidiu agir, pedindo ajuda para recolher os 25 mil euros necessários para o próximo ano letivo.
"Um típico bairro lisboeta tem à volta de 25 mil pessoas, e eu pensei que se toda a malta do meu bairro me desse um euro, que é o preço de um café, tinha o problema resolvido hoje", explica ao SAPO24. O jovem filmou-se na varanda, em Lisboa, para "pedir à malta" uns cafés.
Mas António dizia saber que no bairro de Lisboa onde vive nem toda a gente terá esse dinheiro para lhe entregar um contributo. Assim, decidiu alargar o apelo e pedir ajuda a todos os portugueses: criou um site onde divulga esta história.
"Até porque este projeto é sobre a história de Portugal", defendia. "É um projeto português, sobre a nossa história, sobre as questões importantes para Portugal e para os portugueses", contava. "Ando à procura da essência da nação portuguesa". Tanto assim é que "na verdade, não há nada mais português do que ir beber uma bica ao café da esquina".
Em troca da "bica", oferecia, então o próprio "trabalho a investigar a história de Portugal". "Quero contar uma história que é a nossa e envolver os portugueses nesta aventura", explicava o candidato.
Sem bolsa da FCT e caso não consiga reunir os 25 mil euros de que precisa até ao final deste mês, António confessava, então, que teria de abandonar o curso.
Assim, mesmo que consiga os 25 mil euros agora, caso a FCT acabe por não lhe atribuir a bolsa, António tem um novo problema. No entanto, admitia que os 25 mil euros chegam para financiar totalmente o próximo ano letivo, dando-lhe tempo para encontrar uma fonte de rendimento (bolsas de outras instituições, por exemplo) para o resto da investigação.
"Mesmo que a FCT não me atribua a bolsa, terei mais um ano inteiro para encontrar fontes alternativas de financiamento para o resto do curso — que existem, simplesmente não são viáveis com 25 dias até pagar as propinas", explicava, referindo-se ao tempo entre aquele que diz ser o prazo suposto da divulgação dos resultados do concurso e a data de pagamento das propinas em Inglaterra.
Atrasos são uma realidade
"Os resultados das audiências prévias dos concursos de estímulo ao emprego científico 2018 estão a sair agora — dois anos depois. Os contratos desse concurso foram assinados há pouco tempo", denuncia Bárbara Carvalho. O que é outra face do tema suscitado pela iniciativa de António Rolo Duarte - que sendo referente a uma bolsa de doutoramento não se enquadra nesta situação.
Nestes casos, dos concursos de estímulo ao emprego científico, os atrasos da FCT deixam investigadores sem saber do futuro. O caso não é novo. "Há sempre atrasos, tanto na publicação dos resultados como, depois, na efetiva contratação", denuncia Bárbara.
"Estas denúncias têm sido feitas nos últimos anos, mas aquilo que subjaz é uma defesa de condições de trabalho para que todos possam deixar de ser bolseiros — porque na verdade são trabalhadores."
"Deviam ser concursos, com contratos de trabalho associados, a tempo e horas e com todos os direitos garantidos", defende. "Porque aquilo que acontece não é só a questão dos atrasos da FCT — atrasos que são muitas vezes desesperantes —, mas sobretudo essa condição que não permite qualquer proteção".
"Todos os anos há atrasos na efetiva remuneração, quando as pessoas começam a ser remuneradas — sendo-o com retroativos".
Obrigados à exclusividade, os bolseiros têm de aguardar sem remuneração. Para além disso, não têm direito a subsídio de desemprego, proteção social. "Acho que esse é o grande problema e é um problema estrutural e é aí que nos temos de focar", diz a presidente da ABIC.
“As universidades portuguesas são uma anedota”
António Rolo Duarte nasceu em 1995 e é filho do jornalista Pedro Rolo Duarte. O jovem fez o secundário na Austrália, antes de rumar ao Reino Unido, onde agora quer regressar para o doutoramento em Cambridge.
Em abril do ano passado, António criticou as instituições de ensino superior portuguesas, descrevendo-as como “trágicas” e uma “anedota”, no programa da RTP “Prós e Contras”. Entrevistado em seguida pela MAGG, o jovem foi mais longe: "Regra geral, a qualidade de ensino é baixa. Passa pela cabeça de alguém ir aprender para a Universidade de Évora? Ou para a da Beira Interior? Ou para a do Algarve? Não brinquem comigo”, disse na altura.
“Em Inglaterra, pelo contrário, encontramos dezenas de universidades fabulosas pelo País inteiro. Eu estudo em Cambridge. Mas qualquer jovem que estude em Southampton, em Exeter, em Cardiff, em Aberdeen terá uma educação espetacular. O mesmo não se passa em Portugal”, concluía.
António chegou a ter um programa de comentário político na TVI24, a convite do anterior diretor de informação do canal de Queluz de Baixo, Sérgio Figueiredo. Na altura, dividia o programa com outro jovem filho de jornalistas: Sebastião Bugalho, antigo jornalista do i/Sol, que abandonou o jornalismo para se candidatar à Assembleia da República nas listas do CDS-PP, pelo qual não foi eleito.
Em setembro do ano passado, numa entrevista a Diana Duarte, na Rádio Observador, António Rolo Duarte anunciava que se preparava para um doutoramento em Oxford — a par de Cambridge, uma das mais prestigiadas universidades do Reino Unido.
Na rede social Twitter, Fátima Rolo Duarte, tia paterna do jovem, demarca-se de toda esta situação, acusando o sobrinho de mentir "nos propósitos que o levaram a um crowdfunding muitíssimo equívoco". "O que este rapaz faz tem um nome muito feio e nem a minha mãe, a minha filha e eu nos revemos nesta bizarra forma de vida", disse ainda, numa resposta a outro utilizador.
Já nesta quinta-feira, a campanha de crowdfunding esteve suspensa, segundo informação no site GoGetFunding onde se encontrava a decorrer, tendo sido reativada ainda durante o dia de hoje. O SAPO24 procurou falar com António Rolo Duarte para esclarecer a situação, mas até ao momento não obteve respostas.
Notícia atualizada às 14h08 com informação da reativação da campanha de crowdfunding.
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