Em entrevista à Lusa, Gowan, um especialista no sistema das Nações Unidas, Conselho de Segurança e em operações de manutenção da paz, observou que apesar da reputação de ser um secretário-geral extremamente cauteloso, Guterres tem sido “muito ousado” nas suas declarações sobre esta guerra.
“Guterres tem sido invulgarmente franco nas suas críticas às ações israelitas e apelos a um cessar-fogo. (…) Isto não só prejudicou as suas relações com Israel, mas também irritou a administração de Joe Biden”, advogou Gowan.
De acordo com o analista, as autoridades norte-americanas estão “muito frustradas” com as declarações públicas do ex-primeiro-ministro português sobre a guerra, que, por sua vez, “sente que tem a obrigação moral de adotar uma posição forte em questões humanitárias”.
Mas, apesar da frustração norte-americana, Gowan acredita que Guterres conquistou o respeito de muitos outros membros da ONU pela sua posição.
O ataque sem precedentes do Hamas a Israel em 07 de outubro, assim como a implacável resposta das forças israelitas na Faixa de Gaza, voltaram a colocar os olhares internacionais não só na ONU, como também no seu secretário-geral, António Guterres, que transmitiu inúmeros apelos a um cessar-fogo urgente e imediato, mas também alertas de catástrofe humanitária.
Contudo, esses apelos não só foram amplamente ignorados pelas partes em conflito, como valeram duras críticas a Guterres e à própria ONU por parte de Israel, que acusa o ex-primeiro-ministro português e a organização multilateral de “parcialidade”.
A já tensa relação entre Israel e a ONU atingiu um novo patamar quando Guterres, na abertura de uma reunião do Conselho de Segurança, em 24 de outubro passado, admitiu que os ataques do Hamas “não aconteceram do nada”, frisando que o povo palestiniano “foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante”.
Essas declarações levaram Israel a pedir a demissão “imediata” de Guterres da liderança da ONU.
Apesar de avaliar que Guterres se manteve moralmente forte durante este meio ano de conflito, Richard Gowan frisou que o secretário-geral não foi capaz de desempenhar um papel político significativo na guerra.
“Israel não confia em Guterres e os EUA não querem que a ONU complique os seus próprios esforços diplomáticos. Guterres nem sequer visitou Israel durante a guerra, nem falou por telefone com Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro israelita]”, recordou.
“Isto é frustrante para Guterres, embora eu não tenha a certeza de que algum secretário-geral teria tido mais acesso aos israelitas. Netanyahu desconfia fundamentalmente da ONU como um todo”, declarou Gowan, que é diretor do departamento da ONU no ICG, organização não-governamental voltada para a resolução e prevenção de conflitos armados internacionais.
O analista advogou que, após os ataques de 07 de outubro, Israel tomou claramente a decisão de “ignorar toda e qualquer crítica da ONU”, mesmo sabendo que iria enfrentar resoluções negativas no Conselho de Segurança e na Assembleia-Geral.
“Eles simplesmente rejeitam todas as críticas sob o argumento de parcialidade da ONU. Em última análise, enquanto Israel tiver a proteção dos EUA no Conselho de Segurança, não se importará realmente”, defendeu.
O especialista também notou que, embora muitos países tenham condenado Israel nos fóruns da ONU, muito poucos tomaram medidas reais para penalizar os israelitas, como o corte de relações diplomáticas bilaterais.
“Isto faz com que os seus posicionamentos na ONU pareçam menos significativos – ou talvez estejam a usar as suas declarações na ONU como um álibi para evitar qualquer ação real”, argumentou Gowan, em declarações à Lusa.
Conselho de Segurança da ONU "perdeu ainda mais credibilidade"
Richard Gowan considera que o Conselho de Segurança da ONU estava já “em má forma” antes dos ataques de 07 de outubro perpetrados pelo Hamas contra Israel, mas a situação agravou-se, tendo “perdido ainda mais credibilidade desde então”.
Ao longo do meio ano que já dura este conflito, o Conselho de Segurança teve sérias dificuldades em reunir consenso para aprovar resoluções sobre a guerra, e enfrenta ainda mais desafios na implementação das mesmas.
A relevância da ONU voltou a ser questionada, especialmente depois de os Estados Unidos — um dos membros permanentes do Conselho de Segurança – terem considerado como “não vinculativa” a resolução aprovada no mês passado pelo Conselho e que exige um cessar-fogo imediato em Gaza durante o Ramadão.
A posição norte-americana, embora rejeitada por outras missões diplomáticas, gerou perplexidade e duras críticas, uma vez que, ao abrigo da Carta da ONU, os Estados-membros concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança.
De acordo com Gowan, a própria embaixadora norte-americana junto da ONU, Linda Thomas-Greenfield, está “obviamente preocupada” com os danos à reputação que os EUA estão a sofrer em Nova Iorque.
Contudo, para o analista, Washington não considera que o Conselho de Segurança ou a Assembleia-Geral da ONU desempenhem um papel útil nesta guerra.
“A Casa Branca tem sido muito cética quanto ao valor – mesmo das limitadas – resoluções da ONU sobre questões humanitárias”, considerou Gowan, que é diretor do departamento da ONU no ICG, organização não-governamental voltada para a resolução e prevenção de conflitos armados internacionais.
À medida que o Governo de Joe Biden se tornou mais frustrado com a duração e os custos humanos da guerra de Israel em Gaza, os Estados Unidos tornaram-se ligeiramente mais flexíveis no Conselho de Segurança, notou o especialista.
Contudo, “não é provável que os EUA permitam que o Conselho tome medidas que coloquem qualquer pressão real sobre Israel, tais como sanções ou a concessão à Palestina da adesão plena à ONU”, avaliou.
A Palestina retomou oficialmente esta semana o procedimento para se tornar um Estado-membro de pleno direito da ONU, tendo recebido o apoio de pelo menos 120 países, apesar da grande probabilidade de os Estados Unidos vetarem essa aspiração.
Gowan observou também que a Rússia tem estado bastante interessada em explorar na ONU a impopularidade dos EUA sobre Gaza, tendo conseguido, pela primeira vez desde o início da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, “desviar as atenções da ONU” do conflito em solo ucraniano.
O analista considera ainda “pouco provável” que a ONU ainda venha a desempenhar um papel significativo nesta guerra, mas, uma vez cessadas as hostilidades, acredita que a organização multilateral “terá quase certamente um papel central na restauração dos serviços e no início da reconstrução de Gaza”.
"A ONU é fraca, mas terá de limpar a confusão que a guerra deixa para trás”
“Embora Israel esteja a apelar ao desmantelamento da Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina (UNRWA), até os responsáveis israelitas reconhecem que a ONU terá, de alguma forma, um papel no ‘dia seguinte’ à guerra em Gaza”, disse.
“Como tantas vezes acontece na história do conflito israelo-palestiniano, a ONU é fraca, mas terá de limpar a confusão que a guerra deixa para trás”, sublinhou Gowan.
Prestes a completar seis meses, a guerra na Faixa de Gaza foi iniciada com um ataque sem precedentes do Hamas contra Israel em 07 de outubro, onde fez 1.163 mortos, na maioria civis, e 250 reféns, cerca de 130 dos quais permanecem em cativeiro e 34 terão entretanto morrido, segundo o mais recente balanço das autoridades israelitas.
Em retaliação, Israel declarou uma guerra para “erradicar” o Hamas, que começou por cortes ao abastecimento de comida, água, eletricidade e combustível na Faixa de Gaza e bombardeamentos diários, seguidos de uma ofensiva terrestre ao norte do território, que depois se estendeu ao sul, estando agora iminente uma ofensiva à cidade meridional de Rafah, onde se concentram mais de um milhão de deslocados.
A guerra entre Israel e o Hamas provocou até agora na Faixa de Gaza mais de 33 mil mortos e quase dois milhões de deslocados, mergulhando o enclave palestiniano sobrepovoado e pobre numa grave crise humanitária, com mais de 1,1 milhões de pessoas numa “situação de fome catastrófica” que já está a fazer vítimas – “o número mais elevado alguma vez registado” pela ONU em estudos sobre segurança alimentar no mundo.
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