“Eu perdi o meu país, perdi os meus amigos”, conta Alex, bailarina e coreógrafa russa que vive em Portugal há um ano, ao SAPO24. Para ela, é como se o seu país tivesse sido feito refém. “Há um terrorista que veio, tomou o nosso país e nós não podemos fazer nada porque somos reféns. Porque se dizemos alguma coisa, morremos”.
Alex estava em Portugal quando a guerra começou. Estava a dar aulas de dança, e admite que foi muito difícil. “Cada vez que eu ia dar uma aula tinha de dizer que sou da Rússia. E tinha de dizer que lamentava.” A culpa que a acompanhou este ano é visível: “É difícil conhecer pessoas ucranianas atualmente, porque me sinto culpada”.
A coreógrafa russa admite que tem uma família muito diferente do normal, que é contra a guerra, e que nunca apoiou Putin. Quando as tensões se levantaram, e homens começaram a ser chamados para lutar, foi uma época muito difícil por ter família na Rússia, incluindo o pai e os primos. O objetivo de tirar o pai da Rússia não foi cumprido: “já tínhamos comprado bilhetes, e ele decidiu à última da hora não vir. É difícil, eu percebo. É difícil mudar de vida quando se tem 55 anos”.
Para Alex, a amizade e as parecenças culturais e até físicas, que uniam os dois povos, foram substituídas por amargura e rancor, que ela lamenta, mas compreende. “Eu tenho tantos amigos na Ucrânia. Quando isto aconteceu eu deixei de poder falar com eles. Todos os dias eu perguntava: 'como está a tua família? Como está tudo a correr?' Mas eu consigo sentir que a maioria está zangada, e eu percebo. E não posso fazer nada. Porque as famílias deles, no início da guerra, tiveram de dormir no metro durante 3 meses. Eu também estaria zangada, eu provavelmente não falaria com ninguém que fosse da Rússia”.
Para a Alex, é intolerável pensar no dinheiro que é ganho na guerra. Mas, pelo que vê no Instagram, é sinal de orgulho para muitos russos. Namoradas publicam posts a exibir presentes, flores, cabelo ou unhas pagos com o dinheiro dos homens que estão a lutar. “Eu fico a pensar: ele está lá a ganhar dinheiro por matar pessoas, e tu estás aqui orgulhosa”. E não consegue deixar de pensar como reagirão ucranianos aquelas publicações.
A culpa e o constrangimento acompanharam-na em vários momentos desde o começo da guerra. Lembra um evento de caridade, onde foi a convite de uma amiga ucraniana que acabou por não aparecer, e onde assistiu a uma hora de danças e músicas tradicionais do país invadido. Rodeada de ucranianos, admitiu que “só esperava que ninguém descobrisse” que era russa, embora isso fosse inevitável.
Mesmo em Portugal a vida de Alex é afectada pela guerra que critica de forma tão veemente. “Há um salão de unhas, as raparigas são da Ucrânia, mas já vivem cá há muito tempo, então quando falo com elas, são bastante compreensivas. Dizem que a culpa não é minha, que está tudo bem”, partilha a russa. “Mas há lá uma mulher que acabou de chegar, há uns meses, com a mãe e os filhos. E o pai, os irmãos e o marido tiveram de ficar lá porque não podiam deixar o país. E ela estava-me a fazer as unhas, e claro que falámos. Porque não se pode não falar durante uma hora, e … foi uma longa hora”, confessa Alex, admitindo que não conseguiu regressar depois do que ouviu: “a culpa é tua, tu não fizeste nada, nós fomos lutar, mas tu não foste. Quando nós não gostávamos do nosso governo, saímos à rua, mas vocês estão só calados, não querem saber”.
Alex conta ainda que tem amigos e membros da família com quem não pode falar. “O meu avô [paterno], por exemplo, está hipnotizado pela propaganda. E quando esta mobilização começou disse que se o meu pai fosse chamado para lutar e não fosse, iria pensar no filho como um traidor do país”, conta Alex com tristeza. Questiona a lógica do raciocínio em voz alta como se interpelasse o avô: “Então tu queres que o teu filho vá e morra, porque achas que seria traição ao país?”.
A família de Alex não é a única cuja guerra separou. Alla, ucraniana com 51 anos que está em Portugal há quase 22, falou ao SAPO24 da irmã e dos sobrinhos que estão na Ucrânia, mas também das primas que tem na Rússia, e com quem não fala desde o início da guerra, há um ano, por estas defenderem a intervenção e o regime de Putin. O contacto entre as familiares tornou-se insustentável.
Também Alex perdeu laços com pessoas que lhe eram próximas, uma grande amiga antes da guerra, com a qual agora já não consegue falar. Alex conta a história da separação com a amiga pausadamente, como que se o afastamento voltasse a doer apenas por contar. “Cada conversa acaba em como tudo está mal, como os pais dela estão a sofrer e como o meu país é o país que lhes está a fazer isto. Desde que eu estou aqui, e eu estou aqui há um ano, e que esta guerra está a acontecer, ela nunca me perguntou uma única vez como é que eu estou. Como está a minha vida, o que está a acontecer na minha vida. Porque ela tem passado por tanto”.
“Eu não suporto a guerra. Mas as pessoas não sabem isso, apenas assumem que somos [os russos] a favor, porque a maioria das pessoas é”, acrescenta. “Quando se fala com algumas pessoas elas dizem: sim, nós fizemos a coisa errada, mas temos de apoiar porque é o nosso país." Alex recusa esta ideia, "mas este não é o meu país. É o meu presidente”, explica Alex. “Eu não sou contra o meu país, mas sou contra isto”.
“Eu não suporto a guerra. Mas as pessoas não sabem isso, apenas assumem que somos [os russos] a favor, porque a maioria das pessoas é. Quando se fala com algumas pessoas elas dizem: sim, nós fizemos a coisa errada, mas temos de apoiar porque é o nosso país. Mas este não é o meu país. É o meu presidente”, explica Alex. “Eu não sou contra o meu país, mas sou contra isto”. Alex, russa a viver em Portugal há um ano
As pessoas têm medo de perder o pouco que têm, adiantou ainda. Quando fala com os pais, ou envia mensagens por WhatsApp, e falam sobre política, pedem-lhe que não fale, "não sabemos quem está a ouvir”. Mas para Alex, “já lá vai o tempo para estar calada”. “Eu quero que as pessoas percebam que, sim, há tanta gente que apoia o governo, mas também há pessoas como eu que não. Nós só não podemos fazer nada”.
Talvez este silêncio a que a família da Alex está vetada seja o motivo pelo qual todos os russos contactados pelo SAPO24 tivessem decidido não falar.
Diana nasceu em Portugal, tem 17 anos e desses apenas três foram vividos na Ucrânia, também sente o silêncio como mais uma grilheta desta guerra. A família ucraniana vive em Portugal há 20 anos. “Voltámos para a Ucrânia e esperámos ficar lá, mas com a situação da Crimeia decidimos voltar. A minha mãe tinha um mau pressentimento”, contou ao SAPO24.
As diferenças de idade e de nacionalidade não a separam assim tanto de Alex, a vivência da adolescente e da jovem adulta cruzam-se ao longo das histórias que uma e outra contam. Também Diana tem relações do outro lado da fronteira que se culpabilizam pelo que aconteceu. “Eu tenho dois amigos russos com quem me dou muito bem até hoje. Lembro-me que no dia 24 de fevereiro [de 2022] me mandaram uma mensagem a pedir desculpa pelo que estava a acontecer. Falam sobre o tema, não escondem, e isso ajuda imenso porque dá apoio”.
Para a menina de 17 anos o pior é o silêncio, e o melhor a transparência. Refere um amigo cujo pai é russo e a mãe ucraniana, e a importância do diálogo entre a família, de perceber o que se está a sentir. E enfatiza a importância de não se ser ignorante sobre o tópico, de não se esconder do que está a acontecer. “Muitas pessoas que imigraram da Rússia com quem me encontrei, tinham um ego muito grande: é a minha nação, e eu não quero falar mal, não quero falar sobre o tema. Eu acho que é ignorância, porque se está a acontecer, está a acontecer”.
Diana tem amigos e família na Ucrânia. Admite que foi difícil, principalmente durante as crises de eletricidade, em que não os conseguiam contactar. “Eu escrevo todos os dias para perguntar como estão, o que está a acontecer. Eu vejo as notícias todos os dias, mas também lhes pergunto sempre”.
“Às vezes falo com crianças ucranianas: a maturidade emocional é de loucos”, explica. “Parece que não tiveram infância nenhuma. Bombas, mortes, esfaqueamentos, violações… aos seis anos já têm tanto conhecimento sobre tanta violência”.
Também a guerra lhe roubou um pouco da adolescência, mesmo que não o sinta assim. Interpreta antes que a guerra influenciou muito as suas prioridades. “Abriu-me os olhos para o que é importante. Antes o meu maior problema era um rapaz. Agora nem ligo a pequenas situações. Às vezes vejo conflitos do nada e fico: para quê? Há tantos problemas no mundo, porquê que criam coisas tão grandes de algo tão pequenino? Acho que mudou muito a minha visão”.
Se lhe perguntarem qual é o seu maior desejo, Diana responde que é sem dúvida a paz mundial. Além disso, sente que nunca foi tão unida à sua família, e tão dedicada a trabalhos de voluntariado. Trabalhar com pessoas refugiadas da Síria, do Afeganistão, pensar nas crianças que no futuro terão traumas emocionais, deu-lhe uma ideia mais alargada, e uma ideia do que quer fazer: ajudá-las.
“Tenho lá [na Ucrânia] amigos da minha idade. Tenho uma amiga que veio para cá nos primeiros meses. É a minha melhor amiga de lá, e ficou cá com a minha família. Mas depois voltou, porque era emocionalmente difícil. Ela não queria voltar, mas emocionalmente não conseguia ficar cá”, conta, mostrando admiração pelas crianças que apesar das circunstâncias continuam a ter esperança, e partilhando um vídeo que uma amiga lhe enviou de adolescentes na Ucrânia. “Eles estavam numa cave, com sirenes, e estavam com luzinhas, a cantar músicas ucranianas. Eu vi aquilo e estava a chorar baba e ranho. Estão todos unidos porque sabem que é seguir em frente”.
“As crianças têm todas personalidades fortes. Mesmo aquelas que chegaram agora, são crianças muito fortes”, explica Tatyana, ucraniana de 59 anos que já está em Portugal há 22 anos, ao SAPO24. “Algumas já perderam o pai, o pai já morreu. E elas só dizem assim: o meu pai é herói. Ele morreu na guerra. O meu pai é herói. Eu nem sei o que responder. Pois, é herói, é mesmo, tens de o celebrar como herói. Esta é a realidade que estamos a passar aqui”.
“As crianças têm todas personalidades fortes. Mesmo aquelas que chegaram agora, são crianças muito fortes. Algumas já perderam o pai, o pai já morreu. E elas só dizem assim: o meu pai é herói. Ele morreu na guerra. O meu pai é herói. Eu nem sei o que responder. Pois, é herói, é mesmo, tens de o celebrar como herói. Esta é a realidade que estamos a passar aqui”. Tatyana, ucraniana em Portugal
A Tatyana trabalha num centro educativo de ucranianos, onde ensinam crianças dos 5 aos 14 anos. Uma das crianças é Alice, de “quase 8 anos”, segundo se apresentou. Chegou em março a Portugal, gosta de dançar e de desenhar, e não gosta de matemática. A Alice e os colegas estudam cultura ucraniana, línguas, literatura e matemática, e têm desenho aos sábados. Tatyana confessa que sente muito a comunidade, o apoio uns dos outros.
"Eu não sabia que nos podíamos juntar tanto", partilhou Alla, que nunca mais se esquece de como no primeiro dia da guerra, há exatamente um ano, uma série de clientes e vizinhos passaram e perguntaram no que podiam ajudar, por saberem que a equipa do salão de beleza onde trabalha é toda ucraniana. "Tenho muito orgulho no meu povo", acrescenta a ucraniana de 51 anos, confessando que desde o início da guerra tem sentido que as pessoas tratam o seu povo com muita compaixão.
Diana, a adolescente de 17 anos partilhou o mesmo, "quando vejo um ucraniano, sinto uma energia, não sei bem explicar".
“Em 2014, começaram tudo de novo porque os russos tiraram-lhes o negócio”, conta Tatyana, referindo-se a um casal de Donetsk. “Eles fugiram com as três meninas. E quando começou aquela tensão nas fronteiras, eles disseram: vamos sair daqui. Vieram cá em outubro de 2021”. A ideia era ficarem por cá, “longe da guerra, e a pouco e pouco trazerem os bens”. “Mas não conseguiram trazer os bens”, conta Tatyana. “Estão a começar outra vez do zero”.
Um ano depois do início da guerra, e a viverem num local seguro, a saúde mental das pessoas que vivem, direta ou indiretamente, a guerra, é uma preocupação para todos. Quer o digam directamente ou isso apenas seja possível de entender nas histórias que foram partilhando com o SAPO24.
*Pesquisa e texto pela jornalista estagiária Raquel Almeida. Edição pela jornalista Ana Maria Pimentel.
Comentários