Já lá vão 788 anos. A 30 de maio de 1232, Santo António foi canonizado. Tinha passado menos de um ano depois da sua morte e Lisboa, onde o Santo já não estava desde a juventude, recebeu a boa notícia de forma inexplicável: segundo a tradição, os sinos de todas as igrejas da cidade tocaram espontaneamente e a alegria espalhou-se pela população, que saiu atónita para as ruas. Depois disso, a cidade das sete colinas não se esqueceu mais deste homem e não é exagero dizer que, hoje, é o Santo português mais venerado no mundo.
Mas recuemos no tempo e contemos a história desde o início.
Tudo começa em Lisboa. Foi numa casa no bairro da Sé que o menino que viria a ser Santo veio ao mundo. Fala-se no ano de 1145, embora alguns apontem como data de nascimento 1190 ou 1191. De uma forma ou outra, Lisboa não era cristã há muitos anos, pelo que a sua história "deve ser vista nesse ambiente de expulsão dos muçulmanos e, ao mesmo tempo, de emergência de uma nova nação".
Foi-lhe dado o nome de Fernando Martins de Bulhões. É filho da fidalga D. Teresa Tavera, descendente de Fruela, rei das Astúrias, e de Martinho ou Martins de Bulhões. Sobre o pai, há dúvidas quanto ao apelido e diz-se que poderia ser descendente de cavaleiros celtas. Há, porém, certezas de que não nasceram também eles em Lisboa: D. Teresa nasceu em Castelo de Paiva e o marido numa terra próxima.
Pedro Teotónio Pereira, coordenador do Museu de Lisboa — Santo António, explica ao SAPO24 o que se sabe sobre a vida do Santo na cidade.
"Santo António nasceu aqui, na cidade de Lisboa, e aqui viveu 20 anos da sua vida. Depois, foi viver para Coimbra por dez anos e foi lá que se tornou franciscano, no Convento de Santa Cruz. De seguida, partiu para Marrocos e mais tarde foi para Itália. Os últimos anos de vida são passados em Itália e no sul de França, a evangelizar. Mas metade da vida dele é passada aqui, em Lisboa. e a cidade nunca esqueceu que foi nela que o Santo nasceu e que fez toda a sua formação intelectual", começa por explicar.
Afinal, Fernando Martins de Bulhões frequentou a escola da Sé e, até aos 15 anos, viveu com os pais e com a irmã, Maria, na mesma zona onde nasceu. Aos 20 anos professou nos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, no Mosteiro de São Vicente de Fora, e foi ali que prosseguiu os seus estudos teológicos. O gosto pelos livros estava tomado, Coimbra serviu depois para aprofundar as leituras na melhor biblioteca monacal do país, dando-lhe as ferramentas necessárias para se tornar um pregador de excelência — e, mais tarde, proclamado Doutor da Igreja, em 1946, mediante a bula Exulta, Lusitania felix, de Pio XII. É o único português entre esses grandes nomes.
Sendo do mundo, Santo António é de Lisboa, cidade onde a devoção perdura até aos dias de hoje e de onde é padroeiro principal, a par com São Vicente, padroeiro da Diocese. Por lá, continuam as marcas da sua passagem, preservadas desde o início.
"Houve uma devoção muito grande que ficou desde sempre. A casa de Santo António, onde ele nasceu, passou para propriedade municipal no século XIII e a Câmara foi instalada no local. Portanto, durante 400 anos, o Senado era na casa de Santo António. Depois, a Câmara transformou a casa em capela e, mais tarde, em igreja. A igreja caiu com o terramoto de 1755 e a população envolveu-se em donativos para a reconstruir novamente, como a vemos hoje", conta Pedro Teotónio Pereira.
"Diz a tradição que as crianças da cidade também se quiseram associar de alguma forma à reconstrução e começaram a montar pequenos tronos à porta de casa, para pedir um tostãozinho para o Santo António. Foi uma tradição que ficou até aos nossos dias, vem daí a ideia dos tronos que se erguem na altura das festas", diz.
Mas existem mais locais que não podem deixar de ser referidos. "Apesar de Santo António ter nascido há mais de 800 anos, ainda vemos alguns sinais relacionados com a sua presença. Um dos principais é na Sé de Lisboa: a pia batismal que está na Sé foi aquela onde foi batizado, com o nome de Fernando de Bulhões. Também na Sé, há uma cruz na torre de acesso ao tesouro, que dizem que foi feita por Santo António quando era criança. Foi um milagre, um dos primeiros de que há registo. Ele era menino do coro e foi atormentado pelo demónio. Então, para afastar o diabo, fez uma cruz na parede e a cruz ainda hoje se vê, como marca da presença de Santo António", explica.
Indiretamente, também a Igreja de São João da Praça, em Alfama, está relacionada com o Santo, "marcando outro milagre em Lisboa", conta o coordenador do museu. Reza a história que o pai de Santo António foi injustamente condenado à forca. Por milagre, o homem que tinha sido morto voltou a viver para jurar a inocência do condenado. Por isso, Martinho ou Martins de Bulhões terá mandado construir a igreja para "assinalar a graça que lhe tinha sido concedida".
Por fim, a cidade guarda ainda outra memória, revela Pedro Teotónio Pereira. "Há também a capela no Vale de Santo António, que dizem que foi o último lugar em que esteve antes de sair de Portugal, há 800 anos. Depois de Coimbra, ainda passou aqui por Lisboa e depois embarcou para Marrocos. No último sítio onde ele descansou há agora uma capelinha de Santo António do Vale, perto de Santa Apolónia".
Recorde no mapa abaixo os passos de Santo António na cidade de Lisboa. Deslize com o dedo para a esquerda para avançar na história.
De Portugal para o mundo
Apesar de tudo o que Lisboa pode registar sobre a sua vida, a história de Santo António começa verdadeiramente quando, estando já em Coimbra, fica a saber o que aconteceu em Marrocos.
Há 800 anos, em janeiro de 1220, foram degolados em Marrocos, pelos muçulmanos, cinco franciscanos, num martírio que corre o mundo cristão. A partir deste episódio são vários os que querem partir para ajudar à "conversão dos infiéis". Santa Clara de Assis, com idade aproximada à de Santo António, mostra essa vontade, mas São Francisco de Assis, o seu orientador espiritual, não permite que tal aconteça.
Para Santo António, tudo muda quando, em meados do mesmo ano, chegam ao Convento de Santa Cruz de Coimbra as relíquias dos mártires de Marrocos. Ao ver com os seus olhos o sucedido, decide partir para Marrocos, sentindo-se chamado a agir. Porém, nem tudo como corre esperado: António adoece gravemente e não pode continuar a sua missão, embarcando de regresso a Lisboa.
Mas nem isso correu como seria suposto. O barco em que seguia foi apanhado numa tempestade e o itinerário foi alterado sem que pudesse ter mão nisso. O mar levou-o à Sicília, em Itália, num período conturbado: viviam-se grandes conflitos armados entre o Papa Gregório IX — que virá a canonizar Santo António — e o rei da Sicília, Frederico II. Estávamos no inverno de 1220.
Com o passar dos anos em Itália, Santo António começou a ser notado. Primeiro era somente o frade estrangeiro, de ar modesto. Mas depressa começou a ser seguido e muitos eram aqueles que paravam para o escutar, assim que percebidos os seus dotes para a oratória e o profundo conhecimento teológico. E cruza-se com Francisco de Assis, que sugere que António seja mestre de Teologia em Bolonha, Montpelier e Toulouse.
Após a morte de Francisco começa a desenhar-se também a última fase da vida de Santo António. O Santo que não deixa de ser de Lisboa vai para Pádua, onde faz sermões dominicais acessíveis ao povo, aos mais e aos menos devotos. As igrejas enchiam de tal forma que os sermões passaram a ser feitos na rua, nos adros, para que mais gente se pudesse juntar. E daí começa a falar em espaços mais abertos, dizendo-se mesmo que chegou a ser escutado por "mais de 30 mil pessoas". Com a popularidade vem também a fama de fazer milagres e é preciso que os rapazes de Pádua o protejam das multidões, que tentam até cortar-lhe pedaços do hábito como relíquia.
Mas Santo António não fica por ali. Assistindo à canonização de São Francisco em 1228, deslocou-se depois a Ferrara, Bolonha e Florença, onde continuou a pregar. Em 1229 passou por Vareza, Bréscia, Milão, Verona e Mântua. A pregação fazia já parte da sua vida — mas uma pregação maioritariamente oral, não havendo quase registos escritos dos sermões de Santo António (apenas existem dois documentos conhecidos).
É durante as pregações que começa a surgir a sua fama de santidade. Ao SAPO24, Fr. Jorge Marques, reitor da Igreja de Santo António, em Lisboa, conta alguns dos episódios atribuídos ao Santo.
"Os milagres vão surgindo dessa admiração do povo por Santo António. Há o milagre da pregação aos peixes, um dos mais conhecidos. Em certa cidade [em Rimini], Santo António foi pregar a palavra de Deus e os habitantes não o quiseram ouvir, foram embora. Então, Santo António lembrou-se de ir para a beira do mar e começou a pregar para os peixes. Conta a tradição que eram milhares de peixes, que puseram a cabeça fora de água para ouvir o sermão de Santo António", diz, referindo o episódio posteriormente popularizado pelo Pe. António Vieira, num sermão a 13 de junho de 1654, no Brasil.
Mas existem mais histórias, associadas a símbolos que ainda hoje existem, como é o caso do pão de Santo António, ainda distribuído na igreja em Lisboa. "Há um milagre do pão. Lá ao convento onde estava Santo António, vinham os pobre pedir alimento e Santo António foi dando o pão, dando o pão... e deu o pão todo que havia. Quando o frade que era o responsável pelo almoço dos outros frades foi à despensa ficou em pânico, porque não havia pão para os frades. Foi a correr, aflito, a Santo António. 'António, António, António! Não há pão, não há pão, não há pão!'. E então Santo António, com a sua calma, disse 'Ó meu irmão, volta lá à despensa, volta a ver melhor. Volta lá à despensa'. Quando o irmão chegou à despensa, os cestos estavam cheios de pão", recorda o reitor.
Contudo, feitos alguns milagres, as pregações de António por várias cidades sofreram uma reviravolta. Em 1231, o Papa Gregório IX pede que Frei António regresse a Pádua e ele assim faz. A Quaresma do ano seguinte ainda fica marcada pelos seus sermões, mas a vida do Santo está prestes a acabar.
Com a saúde já abalada, António retira-se para o castelo de Camposampiero, próximo de Pádua, onde escreve e revê os seus sermões, dedicando horas à meditação espiritual. Um dia sente-se mal à mesa, tendo pedido a um dos irmãos que o levasse para Pádua o mais rápido possível. O caminho revelou-se conturbado, pelo que teve de parar no Mosteiros das irmãs clarissas de Arcella. Aí, Frei António ainda teve tempo de se confessar e de receber os últimos sacramentos.
António morre a 13 de junho de 1231, dizendo como últimas palavras "Vejo o meu Senhor". E o Papa não precisou de esperar muito até o elevar às honras dos altares. Menos de um ano após ter morrido, Santo António foi canonizado, a 30 de maio de 1232, de forma a mostrar toda a relevância que tinha na época. Gregório IX chamou-lhe "Arca do Testamento", pelo seu ofício de pregador e pelo seu vasto conhecimento das Escrituras.
Fr. Jorge Marques explica o que levou a toda esta rapidez no processo. "A palavra canonização é a proclamação de alguém como santo. Normalmente o processo de canonização demora algum tempo, atualmente pode demorar alguns anos. E, por isso, a canonização de Santo António foi a mais rápida de toda a história da Igreja. Ele morreu a 13 de junho de 1231 e menos de um ano depois é proclamado santo pelo Papa Gregório IX", começa por dizer.
"O próprio Papa gostava muito dele, eram amigos. Santo António era conselheiro do Papa, havia um grande conhecimento, uma grande proximidade e amizade também. E, por outro lado, acontece uma coisa curiosa. Quando Santo António morreu, o povo de Pádua proclamou-o como Santo, de imediato. Através da expressão Sanctus Subito, que quer dizer 'Santo imediatamente'. É um grito, digamos assim, é a voz do povo de Pádua. Este grito, esta expressão do povo, foi utilizada mais recentemente [em 2005] pelo povo em Roma, na morte do Papa João Paulo II. Mas a expressão original aconteceu com a morte de Santo António", aponta.
Por isso, o Papa não teve como ficar parado. Nem São Francisco de Assis foi canonizado tão pouco tempo depois da sua morte e também era um nome de relevo na época. "O povo de Pádua e dos arredores aclamou António como Santo e o Papa Gregório IX confirmou esta expressão popular. É esta fé, este acontecimento, que exprime toda a admiração que o povo tinha por Santo António já à data da sua morte. A fama das suas palavras, da sua pregação, da sua ajuda aos mais desfavorecidos, aos mais pobres. Daí o pão de Santo António, que a todos ajudava, a todos acudia nas suas aflições. Foi alguém sempre muito próximo da vida das pessoas", explica o reitor.
Na bula da canonização está patente esta confirmação: "Se permitíssemos privar da devoção humana por mais tempo aquele que foi glorificado pelo Senhor, pareceria que de algum modo lhe tirávamos a honra e a glória que lhe eram devidas".
Em Lisboa, a data da canonização costuma ser comemorada com um concerto na Igreja de Santo António, organizado em colaboração com o Museu de Lisboa — Santo António, mas este ano foi cancelado devido à pandemia.
Por outro lado, a data coincide com a reabertura das celebrações aos fiéis — e a Igreja de Santo António está de portas abertas, com missa às 11h e às 17h, seguindo todas as normas recomendadas. Mas com uma particularidade, conta o Fr. Jorge Marques. "A imagem de Santo António vai estar à entrada da igreja, a dar as boas-vindas aos fiéis, aos peregrinos, depois destes meses de pandemia. Vai dar as boas-vindas a este regresso".
Mesmo sem grandes eventos que assinalem as datas importantes, Lisboa continua a respirar a vida do seu Santo padroeiro. Este ano sem as habituais festas, é certo, mas as memórias e as tradições perduram mesmo assim. Afinal, por muito que os santos sejam do sítio onde morrem, não se pode tirar a Lisboa quem ali nasceu. A Pádua o que é de Pádua, mas a Lisboa também o que é de Lisboa.
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