Cristã evangélica, Carla Oliveira agradece todos os dias a Deus pela forma como a ajudou, e ajuda diariamente, a superar-se. E trabalha para que mais pessoas como ela, em particular as mulheres, acreditem que podem fazer o mesmo. Quem quiser vê-la em ação só precisa de acompanhar os Jogos Paralímpicos que se iniciam no próximo dia 28 de agosto (ela entra em prova a 29), em Paris. Em entrevista ao 7MARGENS (pareceiro do SAPO24) diretamente a partir do Estádio do Dragão, no Porto, entre os muitos treinos e trabalho fala do desporto adaptado e partilha o seu exemplo é também a sua missão.
“Gratidão” tem sido uma palavra-chave na sua vida… E costuma dizer que não se trata de um estado de espírito. Do que se trata, então?
O que quero dizer com isso é que não é por acordar e ver que não está a chover (e eu gosto imenso de sol!) que me sinto grata. Sinto-me grata por aquilo que tenho, independentemente das condições em que me encontro e daquilo que me rodeia. A gratidão é um modo de vida, mais do que um sentimento. Dou graças a Deus por tudo, em todas as situações, em todo o tempo. Porque, mesmo aquilo que nós passamos que não é tão bom, não sabemos como seria se fosse de outra forma. E por vezes coisas que não imaginamos que possam ter um papel na nossa vida acabam por tornar-se algo muito bom para nós. É nessa perspetiva que tenho a gratidão como lema de vida. Temos de nos deixar surpreender pelo que a vida nos dá. E o boccia mostrou-me isso!
E ainda antes do boccia, a doença também mostrou isso?
Não mostrou logo no início. Quando fui diagnosticada, aos dez anos, não tinha consciência nenhuma do que era a doença. Até porque nessa altura eu ainda conseguia fazer tudo de forma autónoma: corria, saltava, andava de bicicleta… Acho que terá sido um choque muito grande para os meus pais, que perceberam logo o que estava para vir. Mas no meu caso, só mais tarde, aos 12 anos, quando comecei a perceber que já não conseguia fazer essas coisas, é que surgiu a revolta, a negação. Os médicos diziam que eu tinha de ir para a cadeira de rodas e eu não aceitava, achava que nunca ia chegar a esse ponto, e via a cadeira como algo mau. Portanto, quando tive verdadeira consciência do que a doença significava, passei por uma fase de luto… E houve todo um processo até chegar à gratidão.
Como é que se chega à gratidão quando se perde tanto?
É curioso, porque às vezes as pessoas dizem: “Se ao menos não tivesses chegado a saber como era andar e correr, talvez fosse mais fácil…”. E eu não penso nada assim! Ainda bem que pude fazer essas coisas… Eu adorava andar de bicicleta! Valeu a pena pelo tempo que consegui fazê-lo. Foi ótimo saber o que era caminhar e correr, isso ajudou-me não só a dar valor a essas coisas que entretanto perdi, mas também a dar mais valor às outras que ainda consigo fazer. Por exemplo, sinto-me muito grata por estar aqui a responder a esta entrevista, por poder expressar-me verbalmente, de forma fluente!
Nessa altura, o desporto ainda estava longe de ser uma ajuda…
No início, o desporto não foi uma ajuda, antes pelo contrário. As aulas de educação física eram um suplício. Os professores punham-me no banco a olhar para os meus colegas, não havia o mínimo esforço para me enquadrar. Se calhar, nessa altura também não tinham as ferramentas para me enquadrar. Nunca sugeriram que jogássemos boccia, por exemplo. Todos os anos repetiam as mesmas modalidades sem nenhum tipo de adaptação, e eu sentia que aquilo não era justo. Aquela era a aula que toda a gente mais gostava e eu detestava, porque era a aula onde me sentia mais diferente…
O que contribuía para que se sentir “normal”?
As pessoas que tive ao meu lado, em particular a minha mãe, que foi a mais importante durante todo o processo. Houve uma altura, quando entrei na adolescência, em que ainda caminhava, mas já com muita dificuldade, e comecei a deixar de querer sair de casa. Mas a minha mãe nunca me permitiu ficar [todo o tempo] em casa. Nessa fase, ela quase que me obrigava a sair… Obrigava-me a ir aos jantares de turma, por exemplo. E eu depois acabava por gostar, até porque estávamos todos sentados à mesa e não havia porque sentir-me diferente. E depois também foi muito importante o meu grupo de amigas. Aonde quer que elas fossem faziam questão de me levar e de me ajudar em tudo. Elas diziam que ou íamos todas ou não ia nenhuma. Por isso, não tinha hipótese… E a verdade é que, felizmente, sempre fui muito sociável e acabava por ser a alma da festa! [Risos]
Eram amigas da escola?
Não. Curiosamente, eram amigas da igreja! Íamos todas ao culto e depois, quando acabava, quase sempre fazíamos alguma coisa juntas: comer fora, ver um filme… Éramos como uma irmandade!
Cresceu numa família evangélica?
Mais ou menos! Quando nasci, a minha mãe era agnóstica e o meu pai era o chamado “católico não praticante”. Fui batizada na Igreja Católica ainda em bebé e, quando tinha três anos, a minha mãe conheceu a Igreja Evangélica e converteu-se a Jesus Cristo. A partir daí, passou a ir todos os domingos ao culto e levava-me com ela. Eu adorava ir, porque enquanto ela ficava no culto eu ia para a sala das crianças, onde nos liam histórias da Bíblia e nos ensinavam coisas sobre Jesus. Lembro-me de que chamava à igreja a “casinha de Jesus”. Entretanto, quando fui para a escola primária, o meu pai achou que era importante ir também para a catequese e fazer a Primeira Comunhão pela Igreja Católica. A minha mãe não se opôs, só disse que ficava ele responsável por ir lá levar-me e buscar. E assim foi: até fazer a Primeira Comunhão, frequentei as duas igrejas, evangélica e católica!
E que diferenças encontravas entre as duas comunidades?
Em relação ao que ensinavam, era praticamente igual. Aliás, na catequese adoravam-me e consideravam-me muito inteligente, porque eu sabia muitas coisas da Bíblia. Lá está: aprendia num sítio, ia contar no outro, e era a mesma coisa! Mas apesar de gostar da catequese, achava que podia ser mais animada e interessante… mais adaptada a crianças. E a própria igreja era um sítio que me metia algum medo… Achava-a muito sombria, e era mesmo ao lado do cemitério… agora não tenho problema nenhum em entrar em igrejas católicas, mas lembro-me de que na altura aquilo me fazia um bocado de confusão. E era completamente diferente da igreja evangélica, que era uma sala luminosa, com uma série de instrumentos musicais, e onde as pessoas pareciam muito mais próximas. Quando ia à igreja católica, sentia que era tudo muito distante, muito frio! E no ano em que estava a preparar-me para fazer a Primeira Comunhão houve um episódio que me marcou muito. Já não sei se era Natal, mas fomos todos à igreja e a catequista disse que tínhamos de ir beijar o menino Jesus. Eu achei que aquilo não fazia sentido… Fazia-me confusão ir dar um beijo numa estátua onde já tanta gente tinha dado… E disse à catequista que não queria ir. Mas ela obrigou-me, disse que toda a gente ia e que, se eu respeitava Jesus, também tinha de ir. Acho que nunca tinha contado isto a ninguém, mas foi algo que me marcou muito, por não terem respeitado a minha vontade e porque ao mesmo tempo estavam a incutir-me um sentimento de culpa…
Foi por isso que acabou por optar pela Igreja Evangélica?
Sim. Fiz a Primeira Comunhão, e lembro-me de que foi um momento feliz, foi bom ter ali toda a família reunida, mas foi quase uma despedida, porque eu não me identificava tanto com aquele ambiente e achei que não fazia sentido continuar nos dois lados. A minha mãe ainda me perguntou se eu queria continuar e fazer a comunhão solene [profissão de fé], mas eu disse que preferia sair, e assim foi.
A fé também foi uma ajuda importante quando souberam da doença?
No início, nem por isso. Pouco tempo antes, tínhamos sabido também da doença de outro familiar que acabou por falecer, e depois descobrimos que eu tinha esta doença e foi um choque muito grande, foi muito pesado, sobretudo para a minha mãe, que não compreendia porque é que aquilo nos estava a acontecer, a nós que éramos crentes, que íamos à igreja, que fazíamos a nossa parte… Era quase como se fosse um castigo. E eu depois também tive a minha fase de revolta, incluindo com Deus, em que lhe perguntava: “Porquê eu? Se isto só acontece a uma criança em 500 mil…” Como se aquilo pudesse acontecer a qualquer pessoa, menos a mim! Então acabámos por nos afastar da Igreja e de Deus, até aos meus 13 anos.
E o que é que vos fez regressar?
A vida é difícil com Deus, mas é muito mais difícil sem Ele. E acho que precisámos daquele tempo para nos adaptarmos e aceitarmos o que estava a acontecer. Depois, percebi que tinha dois caminhos: ou ficava no fundo do poço, a lamentar-me, revoltada e de mal com a vida pelo que estava a perder, ou reconhecia que ainda tinha muitas capacidades, agradecia por elas e aprendia a ser feliz assim. E foi nesse regresso à Igreja que Deus começou a trabalhar no meu coração a tal gratidão de que falávamos no início. Foi aí que percebi que, independentemente das coisas más que acontecem, a vida faz sentido. E na Bíblia podemos ler que Jesus disse: “No mundo tereis aflições” [João 16, 33]. Não disse: “Se no mundo tiveres aflições…”. E acrescentou: “Mas tende bom ânimo, porque eu venci o mundo.” E foi isto que eu percebi, que não estava sozinha nesta batalha, que nunca estamos sozinhos nas lutas da vida. E perceber que Ele está connosco em todas as situações, só por si, já é reconfortante. Depois, levei isso também para o desporto. É muito importante saber que Ele está comigo nas vitórias e nas derrotas também. Isso faz toda a diferença.
Mas o desporto só chegou muito mais tarde. E resistiu bastante a deixá-lo entrar na vida…
Exatamente! Eu nunca vi no desporto um meio para me salvar, nem para me ajudar em nada, talvez pela experiência tão negativa que tinha tido na escola com as aulas de Educação Física, e por nunca nenhum professor ou médico sequer ter sugerido que o desporto poderia ajudar à minha reabilitação ou integração. Experimentei o boccia pela primeira vez quando tinha 14 anos, a convite de um técnico do Futebol Clube do Porto, e não gostei. A competição era só a a partir dos 16 e eu achava que treinar, só por si, não tinha graça nenhuma. Além disso, tinha outros interesses: as minhas amigas, os estudos… Não quis ficar. Passado algum tempo, contactaram-me de novo para eu voltar a experimentar e eu disse que não, porque ia para a faculdade. Depois, quando tinha 20 anos, voltaram a insistir. E aí eu tinha terminado o curso, não estava ainda a trabalhar, e não tinha mais desculpas para dar! [Risos] Então lá fui, mas sem expetativas nenhumas, a achar que ia ser sol de pouca dura…
Mas ficou até hoje!
Pois! Porque comecei a competir e percebi que a competição mexia muito com a minha adrenalina e que ser colocada à prova era algo interessante, diferente daquilo a que estava habituada. Depois, em 2012, começo a ser convocada para os estágios da seleção, em 2014 tenho a minha prova internacional e começo a pensar: “Olha, se calhar até era giro ir aos Jogos Paralímpicos…”. Mas não era um sonho que eu tivesse, como muitos dos colegas que treinam comigo e dizem “Que sonho ir aos Jogos Paralímpicos!”. Só comecei a aperceber-me de que poderia ser bom à medida que as coisas iam acontecendo. E quando, em 2016, tenho a oportunidade de ir aos Jogos Paralímpicos do Rio – para preencher a cota feminina – é todo um novo mundo que se abre para mim… Foi uma experiência tão diferente, tão brutal, que eu disse: “Quero viver isto outra vez!”.
Porque é que foi uma experiência tão “brutal”? O que é que os Jogos Paralímpicos têm de tão especial?
Tem muito a ver com questões culturais… Nós estamos em Portugal, um país pequeno, em que as pessoas me veem a andar na rua de cadeira de rodas e ficam com muitos pontos de interrogação na cabeça: “Porque é que ela está na cadeira? O que é que lhe terá acontecido?” E todas se acham no direito de perguntar o que é que aconteceu, algumas não falam comigo, mas falam com quem vai comigo, outras falam comigo, mas como se eu fosse uma criança, e se eu não respondo é porque estou a ser mal educada, não estou a saciar a curiosidade delas. Já aconteceu virem ter comigo para me darem uma moeda… Enfim. Mas depois, quando vamos aos Jogos Paralímpicos, o que encontramos é um conjunto de atletas, que por acaso têm deficiência. Mas ninguém está lá por causa da sua deficiência. Estão lá porque são os melhores do mundo na modalidade que praticam! E ninguém tem vergonha de estar numa condição física diferente, porque toda a gente está numa condição física diferente! Isso é o normal na Aldeia Olímpica durante aqueles dias… Até me lembro de brincar com a minha mãe – que me acompanhava para todo o lado porque eu preciso de ajuda para me levantar da cama, para me vestir, para comer… – e de lhe dizer: “É melhor começares a mancar, para te sentires mais normal!” [Risos]
E há muito mais notoriedade e reconhecimento do que em outras competições internacionais nas quais já tinha participado…
Sem dúvida. De repente, fui convidada para ir falar nas televisões, nos jornais… Fomos recebidos pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro…. Já não éramos pessoas com deficiência, já não éramos “simples” atletas, éramos atletas paralímpicos, como se tivéssemos subido de patamar! E ter uma bancada cheia de gente a apoiar, a gritar, a fazer a onda, enquanto nós competíamos… isso nem nos meus melhores sonhos tinha acontecido! É claro que depois passam os Jogos e voltamos ao mesmo, já ninguém se lembra de nós… Mas pronto, isso é geral, os atletas olímpicos também se queixam do mesmo. Temos dois problemas: um na aceitação e integração de pessoas com deficiência, e outro de falta de cultura desportiva. E participar nos Jogos Paralímpicos do Rio abriu-me os olhos para isso.
E fez querer repetir a experiência e ir a Tóquio… E agora a Paris!
Isso mesmo. Lembro-me de que, logo no primeiro estágio da seleção a seguir aos Jogos do Rio, fui dizer ao selecionador: “Olhe, eu fui ao Rio pela cota, mas quero ir a Tóquio por mérito e comprometo-me aqui que durante estes quatro anos vou dedicar-me a sério à modalidade, de uma forma como nunca fiz antes, para conseguir esse resultado.” Porque também só no Rio é que percebi o verdadeiro nível de exigência de ser um atleta de alto rendimento e o que teria de mudar para estar ao nível internacional…
O que é que foi necessário mudar na vida para poder continuar a ser uma atleta paralímpica?
Implicou sobretudo aumentar muito a carga de treinos… Eu treinava duas a três vezes por semana e passei a treinar todos os dias. E isso inclui um treino mais técnico, que é o que nós chamamos o treino de bolas, mas também treinos de preparação física para trabalhar a resistência e a força, análise de vídeos de jogos, e ainda o treino psicológico, que também é muito importante, porque nos ajuda a trabalhar alguns bloqueios mentais e a encontrar estratégias para conseguir lidar com a pressão do jogo. Porque o boccia é extremamente psicológico, e há situações em que aciona o gatilho do medo, ou da incerteza. No meu caso, eu tendia a ser muito negativa: se falhava uma bola, achava logo que ia falhar novamente a seguir. Ou se falhava o primeiro parcial (de quatro), achava logo que ia perder o jogo. E com o treino psicológico aprendemos a mudar um bocadinho o discurso interno: sei que em vez de pensar “que chatice, perdi esta bola”, tenho de pensar “vamos lá, ainda tenho outra bola”. Para mim, iniciar este treino foi muito importante, porque era muito dura comigo própria na forma como avaliava as situações, trazia muito peso para mim em relação às coisas que não conseguia fazer tão bem. A psicóloga dizia muitas vezes que eu tinha de ser mais gentil comigo própria.
E a fé aí não ajuda também?
Sim, sim. Porque percebi que existe um propósito maior no facto de eu estar no desporto. Há um versículo [bíblico] que uso muito na minha vida enquanto atleta, que diz: “Não te mandei eu? Esforça-te, e tem bom ânimo; não temas, nem te espantes; porque o Senhor teu Deus é contigo, por onde quer que andares” [Josué 1, 9]. E é esse versículo que tento levar na minha mente para todas as competições. Sei que Ele me enviou – e realmente eu viajo o mundo todo por causa do boccia – e que há duas coisas que dependem de mim: esforçar-me diariamente e dar o meu melhor, e também ter bom ânimo, o que muitas vezes não acontecia quando perdia…
Agora sei que quando perco nem sempre perco porque falhei, mas sim porque o outro atleta teve melhores condições, mais capacidades ou fez um jogo melhor. E mesmo quando perco porque devia ter feito alguma coisa diferente em termos técnicos ou estratégicos, encaro isso de forma positiva, porque também sei que os maiores crescimentos que tive enquanto atleta foram com as minhas falhas. Claro que é desolador chegar a uma prova para a qual trabalhámos tanto e não conseguir fazer o que é preciso para ganhar. Mas cada falha também nos dá a indicação de qual o caminho a seguir, o que é que temos de trabalhar. E aconteça o que acontecer continua a haver sempre razões para ter ânimo, porque Deus está comigo. Só tenho de me focar em fazer o meu melhor. E independentemente do resultado Ele continua comigo.
Esta fé é algo que exterioriza quando está numa competição como os Jogos Paralímpicos?
Sim, porque sou a pessoa Carla, com determinadas características e com a minha fé. E também sou a atleta Carla e as duas coisas não se dissociam. Por exemplo, costumo rezar sempre antes das refeições. E não vou deixar de o fazer quando vou às competições. Se vou almoçar com outros atletas, agradeço na mesma por aquela refeição antes de começar a comer. Às vezes, ficam a olhar para mim, surpreendidos. Outras vezes descobrimos que a fé é algo que temos em comum. Mas não é um tema de que se fale muito entre os atletas.
A verdade é que assistimos a muitas manifestações de fé da parte de atletas durante estes Jogos Olímpicos. Arrisco-me a dizer que isso aconteceu mais do que era habitual…
Penso que isso aconteceu também por causa da suposta sátira à Última Ceia na cerimónia de abertura… Acho que alguns atletas sentiram que a sua fé estava a ser ridicularizada – eu própria achei que aquilo transpôs alguns limites – e tiveram necessidade de se afirmar enquanto cristãos e no fundo defender essa fé. Espero que a cerimónia de abertura dos Jogos Paralímpicos seja bem diferente e que transmita aqueles que devem ser os verdadeiros valores de uma iniciativa como esta.
Mas também há muitos casos em que não são bem manifestações de fé e sim superstições. Há muita superstição no desporto. Há atletas que se benzem três vezes e depois têm de entrar com o pé direito. Ou que rezam porque acham que da vez anterior em que rezaram isso lhes deu sorte.
Se eu manifesto a minha fé, e faço-o, é porque essa é a minha maneira de estar na vida, incluindo no desporto. Ou seja, se eu costumo dar graças, se eu costumo ler a Bíblia no meu dia-a-dia, não vou deixar de o fazer por estar numa competição. Mas também não vou fazê-lo com o objetivo de conseguir uma medalha. Não ponho a minha fé em coisas materiais, nem em atos, ponho-a num estilo de vida, que é diferente. A minha fé repercute-se nas diferentes dimensões da minha vida.
E tem uma vida bem preenchida! Porque além de ser atleta de alto rendimento, também existe um trabalho a tempo inteiro e é mãe da Gabriela…
Sim, e estou imensamente grata por isso também. Nunca sonhei ir aos Jogos Paralímpicos, mas sonhei muito ser mãe. Eu era aquela típica menina que andava sempre com o Nenuco atrás, como se fosse meu filho, e por causa da doença achei que se calhar esse sonho nunca iria concretizar-se. Felizmente, engravidei e tive uma gravidez santa, sem um único enjoo! E hoje sei que fui feita para ser mãe. Costumo dizer que a Gabi foi a minha maior bênção e será sempre a minha maior medalha. Cheguei a pensar que teria de deixar o desporto por causa da maternidade e foi um grande desafio para mim voltar a competir depois de ela nascer, mas temos conseguido fazer toda a gestão necessária e está a ser incrível! A Gabi é uma bebé supertranquila, dorme bem, come bem, portanto facilita muito a minha vida enquanto atleta e eu não podia estar mais grata.
Quanto ao trabalho, estou neste momento a faltar para dar esta entrevista! [Risos] Mas está tudo bem, porque trabalho no Futebol Clube do Porto e existe uma dinâmica em que o clube percebe perfeitamente quais são as exigências de ser atleta de alto rendimento, e sabe que por vezes tenho de fazer horários diferentes, mas o trabalho não fica pendente… se é preciso compensar, compenso. E se preciso que me dispensem para as competições, também o fazem, sem me obrigarem a usar os meus dias de férias.
E o trabalho que desenvoleu é também mais do que um trabalho, é quase uma missão de vida…
Sim, sem dúvida. Trabalho na secção de desporto adaptado e estou mais responsável pela área social. Uma das minhas funções é dar apoio aos atletas em matérias que nada têm a ver com o desporto, e outra é organizar atividades como demonstrações de modalidades nas escolas, palestras em diferentes contextos, sempre no sentido da formação e divulgação, porque a verdade é que ainda há um caminho longo a percorrer em Portugal em relação ao desporto adaptado. Continua a haver muito desconhecimento… É muito comum ouvirmos crianças – e adultos também – dizerem que não sabem o que é o boccia.
Acredito muito na importância deste trabalho de formar e sensibilizar aqueles que serão os futuros profissionais para esta matéria, não só do desporto adaptado, mas também da própria deficiência, porque muitas vezes o trato da pessoa é colocado em causa por desconhecimento e ignorância daquilo que é diferente. E noto que já evoluímos um bocadinho… Já temos tido atletas a chegar com pedidos de médicos para integrarem a equipa, portanto já começa a haver essa sensibilidade para a importância do desporto adaptado, não só do ponto de vista físico, mas também do ponto de vista social. Temos agora uma equipa de formação no boccia, composta por miúdos pequenos, e quando se juntam para treinar de repente percebem que não são os únicos, veem que os colegas são iguais a eles e sentem uma normalidade que não conseguiam sentir até aqui. A tal normalidade que eu só senti muito mais tarde…
É mais difícil sentir essa normalidade quando se é mulher? Continuam a ser muito mais os homens a praticar boccia do que mulheres…
A primeira vez que se dividiu o boccia por género foi em 2021. E estes Jogos vão ser os primeiros em que vai haver essa divisão. Ou seja, na modalidade de pares, as equipas têm de ser mistas (compostas por um homem e uma mulher), e na modalidade individual já só vou jogar contra mulheres. Considero que isso é uma conquista e uma questão de justiça também. Mas há menos mulheres a praticar, sim, e acho que isso também é uma questão cultural, particularmente em Portugal.
Não existe cultura desportiva no nosso país, e isso sente-se ainda mais em relação às mulheres. Falo do desporto em geral, não apenas do desporto adaptado. A mulher não tem um papel no desporto. Mas quando falamos do desporto adaptado, isto sente-se ainda mais. Por um lado porque existe uma superproteção da parte das famílias, que muitas vezes acham que o desporto é agressivo, implica exposição do corpo e a menina tem de ser protegida, e por outro lado porque se acha, em geral, que o lugar da mulher não é no desporto. O que significa que a mulher com deficiência é, muitas vezes, duplamente discriminada: discriminada por ter deficiência e discriminada por ser mulher.
E também tem um papel importante na luta contra essa discriminação…
Tenho tentado fazê-lo. Neste momento, somos três mulheres a nível nacional na minha classe, mas durante anos fui eu a única… e não é porque não existam mulheres que possam integrar esta modalidade, é porque as pessoas acham, e as próprias mulheres são levadas a achar, que este não é o lugar para elas. Ainda tem de se desconstruir muito nesse aspeto… E acho que é aí que Deus me envia também. Envia-me a descontruir a mente das pessoas em relação àquilo que é possível nós fazermos. E Ele continua a ensinar-me isso a mim própria todos os dias. Deus mostra-me que aquilo que eu acho que não é para mim, ou que não é suposto eu fazer, se calhar é mesmo aquilo que devo fazer, até para me superar a mim própria e às minhas limitações.
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