Espanha não era Lopetegui e não é Hierro. Poderá vir a ser, mas não é e hoje não foi. Aliás, dificilmente o será neste Campeonato do Mundo. Na Rússia a Roja será a mesma que foi em 2008, 2010 e 2012, nas datas em que, respetivamente se sagrou campeã da Europa, campeã do Mundo e campeã da Europa novamente. Será o tiki taka, o futebol que sobrevive do FC Barcelona de Pep Guardiola e que teve o seu expoente máximo com a conquista do triplete pelos catalães.
É aquele futebol de passe, de calma e beleza no momento de deixar o avançado diante da baliza. De superar a vontade de lá chegar depressa e tentar chegar lá bem. E estes que alinharam esta sexta-feira no Fisht Stadium sabem-no melhor do que ninguém; muitos deles, juntos, venceram dois Campeonatos da Europa e um Campeonato do Mundo. Têm a experiência e o saber. A saída de Lopetegui foi um golpe de balneário a que jogadores que atuam nas melhores equipas do mundo estão habituados.
Os rumores acerca de uma crise na seleção de Espanha foram claramente exagerados. Aqueles que esperavam uma Espanha atordoada ou desmotivada pela polémica saída de Lopetegui a três dias da estreia no Campeonato do Mundo tiveram o seu momento de glória em que puderam levantar o dedo e dizer que tinham razão quando aos quatro minutos o árbitro apontou para a marca de grande penalidade depois de Nacho ter rasteirado Cristiano Ronaldo dentro da área. Chamado a marcar, o capitão da seleção portuguesa não falhou e houve quem dissesse que os espanhóis não estavam com a cabeça no jogo.
Parecia, mas estavam.
Era uma questão de tempo até se recomporem, até limparem o pó dos ombros e de se fazerem ao jogo. Portugal tinha esse período para se aprumar. E fê-lo, bem ao estilo que nos habituou no Campeonato da Europa em França, a jogar à defesa e lançar a bola para o ataque. Antes à procura de Nani e Ronaldo, agora à procura de Gonçalo Guedes e, claro, Ronaldo, sempre.
Cada vez que a bola assentava no pé do capitão português o estádio explodia. Não era preciso uma grande finta, bastava um simples toque para a bancada onde estavam a maioria dos adeptos portugueses explodir sob a forma de cânticos “Portugal, Portugal”, "Somos campeões, somos campeões”.
Espanha só faria o seu primeiro remate no jogo aos 9 minutos. Quando Diego Costa recebe a bola na área, entre José Fonte e Cédric, falha o domínio de bola e esta sobra para David Silva que em boa posição atira por cima da baliza de Rui Patrício.
Ainda com a Roja atordoada, aos 16 minutos de jogo, Ronaldo solta Gonçalo Guedes na frente, mas o antigo extremo do Benfica perde no duelo com Sergio Ramos. Cinco minutos depois, num contra-ataque rápido, Bruno Fernandes leva a bola para frente, entrega-a a CR7 e o processo repete-se: a bola fica para Guedes que na cara do golo, agora sem nenhum defesa para contornar, hesita e deixa que a defensiva espanhola corte a bola.
Espanha estava só a recompor-se. Saiu do armário de fato vestido, mas de mangas arregaçadas e aos 23 minutos Diego Costa fez o golo depois de ter conseguido, perante José Fonte e Cédric, insistir e abrir um espaço até à baliza. Encontrou-o no canto inferior esquerdo de Rui Patrício e fez o golo.
A primeira parte chegava ao fim e o jogo invertia-se de feitios. Espanha era claramente superior perante uma seleção portuguesa incapaz de criar situações de perigo depois da oportunidade perdida de Gonçalo Guedes. Nuestros hermanos só podiam levantar o queixo em direção ao céu pela má relação de Isco com a barra (25) e culpar-se a si próprios pelo desperdício de Iniesta (34).
Mas há jogadores que a qualquer momento podem mudar o jogo, esteja a sua equipa por cima ou não. Portugal neste Mundial tem criativos como não tinha em França — Bernardo Silva e Gelson Martins são os exemplos maiores —, mas não falo desses. Falo do melhor do mundo. Daquele que sozinho pode mudar a história. Porque quando se tem um jogador como Cristiano está-se sempre mais perto de fazer golo. E assim foi. Pepe passa longo para Guedes e este espera que Ronaldo, ao seu lado, se coloque em jogo; depois passa a bola ao capitão que remata com força para aquela que, previsivelmente, seria uma defesa fácil para De Gea, mas que o guarda-redes espanhol deixou fugir. Mais tarde, aos jornalistas, Hierro viria a dizer uma frase que espelha bem o momento e ambiente que se vive no balneário espanhol. "De Gea é um dos nossos. E nós não abandonamos a família". Errar, todos erram. Um dia mau, todos têm. E De Gea esta noite teve um momento infeliz. Tão somente.
O jogo foi de superação. Pedia-se que Portugal superasse Espanha pela primeira numa fase final de uma competição desde 2004, quando no ‘nosso’ Euro os comandados de Scolari derrotaram os espanhóis por 1-0, com um golo de Nuno Gomes. E ao lado, 45 milhões de pessoas pediam que Espanha mostrasse que não dependia de Lopetegui e que depois dos maus inícios nos Mundiais de 2010 e 2014 (na África do Sul perdeu 1-0 com a Suíça e no Brasil foi goleado 5-1 pela Holanda) e a ideologia superou o selecionador. A segunda parte recomeçou com uma Espanha forte que, de rajada, deu a volta ao marcador.
Aos 55 minutos, Diego Costa colocava a bola no fundo das redes depois de um livre estudado; David Silva cruza ao segundo poste à procura de Busquets que ganha de cabeça sobre Guedes e cruza para Costa que só teve de encostar — João Moutinho ainda tentou chegar para a dobra, mas sem sucesso. Depois, sem demoras, três minutos depois, Nacho apanhou uma bola perdida à entrada a da área e com um tiro atira a bola para o canto inferior esquerdo. Foi golo espanhol, mas diga-se que foi de belíssimo efeito. Estava feita a reviravolta.
Quando Portugal crescia — William tinha entrado revigorado, mais concentrado e mais rápido e Bruno Fernandes continuava hiperativo a aparecer em todo o lado — os golos de Espanha surgiam como um rude golpe.
Mas é então que o jogo acalma e mantém-se num registo em que a Espanha é superior, em que gere melhor a bola e é mais eficaz no passe mas, acima de tudo, consegue chegar à baliza de Rui Patrício. Portugal perdia-se. E o jogo perdeu-se nisto, no morno.
Aos 68 minutos, o jogo está de tal maneira adormecido que os adeptos esforçam-se não em apoiar as equipas, mas em tentar fazer uma onda completa. Conseguem-no à segunda tentativa. Tentam repetir mais uma vez, mas perde-se na ovação à saída de Iniesta para a entrada de Thiago Alcântara.
Espanha esteve sempre mais perto, mas Portugal superou. Superou a vontade e a experiência. Superou as expectativas dos milhares de espanhóis que nas imediações do estádio em Adler, onde decorreram os Jogos Olímpicos de Inverno há quatro anos, que antecipavam uma vitória tranquila de Espanha. O azar superou a ambição. Cristiano Ronaldo superou a Espanha.
Aos 87 minutos, Piqué faz uma falta onde não podia fazer. Logo ele, que não tem desculpas, pois conhece tão bem Cristiano Ronaldo — jogaram juntos no Manchester United e são adversários há largos anos na liga espanhola — e errou. A diferença é que Cristiano Ronaldo com um livre exímio, perfeito, colocou a bola ao canto superior direito e ‘meteu-a’ mesmo no canto superior — ali, onde na gíria se diz que dorme a coruja. De Gea viu o golo como pôde, em lugar privilegiado.
E Ronaldo superou os que lá fora se faziam reis, em número e prognósticos. Depois do apito final chamou Ricardo Quaresma: “Vamos! Foi bom, c******”. E abraçou o amigo de longa data com força.
Espanha já era de Ronaldo, mas o capitão acredita como ninguém que a Rússia também será dele. E provavelmente será.
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