Por um centímetro a bola está fora ou é assinalado fora de jogo. Por um segundo (centésimos) não cortamos a meta em primeiro lugar. Por uma grama podemos, ou não, entrar num barco e a seleção dos velejadores ser diferente do inicialmente pensado.
Porque o peso importa e há um limite religiosamente inultrapassável, no mais puro respeito desta linha traçada, nove velejadores portugueses, em representação de Portugal, cumpriram à risca um plano de emagrecimento em menos de 48 horas para entrarem hoje em ação na fase de grupos da SSL Gold Cup (Qualifying Series).
A Liga das Nações em vela, competição privada organizada pela Star Sailors League (SSL), a decorrer no Lago Neuchatel, em Grandson, quer coroar o país campeão mundial de monocascos de 47 pés (15 metros de comprimento), barco one design (SSL47) fornecido às equipas pela organização, isto é, um veleiro igual para todos sem upgrades diferenciadores de tecnologia.
As seleções nacionais são compostas por 11 elementos, todos eles numerados e identificados pelo nome e país - 32 delas cumprem a fase de grupos (qualificação) até dia 17, em águas suíças, apurando-se dois países em cada um dos cinco grupos. Outras 24 (Nova Zelândia, Austrália, Brasil, EUA, Suíça, França, Itália e Espanha, entre outras) já estão apuradas para as fases finais, a decorrer no Bahrein, entre outubro e novembro, um mês de eliminatórias e final propriamente dita, entre quatro países finalistas.
No caso de Portugal (grupo 4), o capitão, João Rodrigues, windsurfista com sete participações olímpicas, foi responsável pela seleção de quatro velejadores, mas não põe o pé no veleiro. O team manager, Afonso Domingos, com os pés bem dentro do barco, faz parte da tripulação de nove autorizada a subir a bordo para ocuparem os lugares à proa, a timoneiro, na vela grande e a trimmer.
Número par ou ímpar de velejadores para caber em 730 kg
De acordo com as regras da prova apresentada em 2018, comparável a um campeonato do mundo de futebol, podem entrar em competição o mínimo de oito e o máximo de nove velejadores. O número, par ou ímpar, 8 ou 9, tem de caber no limite autorizado de peso no barco: 730 kg. Nem mais uma grama conforme explicou um responsável da organização após questionado por Pedro Costa: “Se arredondássemos de 75,4 kg para 75 kg, por exemplo, fazer isto em nove velejadores alterava as regras do jogo - peso máximo - e os países aproveitavam”, sublinhou.
Por essa razão, os quilos a mais foi uma das preocupações, talvez a principal, da equipa Portugal (Team Portugal). Durante um par de dias o tema não saiu da boca e do pensamento de Afonso Domingos, experiente velejador, três participações olímpicas.
A inquietação quanto à frieza e crueldade da balança foi transversal aos demais tripulantes à medida que chegaram, a conta-gotas, a Grandson e ao Lago Neuchatel, campo de regatas de excelência da náutica helvética.
A inquietude, sempre controlada, arrastou-se até minutos antes da pesagem oficial (ontem, às 8h15, dia anterior ao início da competição), o momento de colocarem um pé, seguido do outro, na balança, sem direito a encolher o abdómen ou suster a respiração.
A folha de Excel e os números que não mentem
Para ali chegarem na “linha”, tudo ficou acertado numa reunião, na passada 3.ª feira, entre o team manager, Afonso Domingos, e a tripulação escolhida para subir a bordo (além da escolha de João Rodrigues, o ranking SSL fez o resto, ao selecionar os melhores por país em oito classes, olímpicas e não olímpicas, de acordo com a mesma hierarquia).
Como ponto de partida e plano de ataque socorreram-se de uma tática e de uma folha Excel. Nesta, Beatriz Domingos registava a evolução das pesagens e partilhava no grupo de WhatsApp. Mais uma vez, a crueldade dos números. Na 2.ª feira, no total da pesagem dos velejadores aparecia 741 kgs e 15 gramas. 11,75kg para lá do permitido. Ontem, os números não mentiam: 725 quilos e 93 gramas. Façam as contas. Menos 15,22 kg.
Nem 48 horas depois o milagre do corte das “gorduras” envergonha qualquer anúncio milagroso para 15 dias e põe de olho arregalado quem junta barriga e praia numa equação simples para o verão.
A título de exemplo, por estes dias o ponteiro tecnológico indicava 97 kg mal Afonso Domingos apontou os olhos ao painel. A título informativo, começa a competição com 95,5kg.
Cuecas, calções e licras. Boca fechada, sauna, ginásio e corrida
O emagrecimento parece mentira, mas é verdade a roçar o La Palice na vida de quem anda no mar e está habituado a queimar calorias antes das regatas.
Após a festa de apresentação das regatas, na 3.ª feira, no Castelo de Grandson, antiga fortaleza com vista para o Lago Neuchatel, os velejadores portugueses saíram de boca fechada (não tocaram nos acepipes) e ouvidos destapados para escutar o que Afonso Domingos lhes tinha para transmitir na “casa” de apoio à prova. Era altura para a estocada final.
Quase nenhum levou o garfo à boca à hora de jantar, exceção feita a uma ou outra salada. A escolha do kit de pesagem deu o mote para a conversa. “Uns calções para todos, este (mostrou), o menos pesado e a licra da Mafalda (Pires de Lima)”, a menos pesada, camisola e velejadora (passou de 59,7kg para 59,3kg), indicou o team manager.
“Os meus boxers XXL pesam 400 gramas”, sorriu Bernardo Plantier, um dos pesos pesados (passou de 103,35kg para 101,03kg). Ainda discutiu se levada “as cuecas à pesagem”.
Em tom sério, o antigo velejador olímpico (Sydney, Pequim e Londres) desenhou a tática. “Quem vem à sauna amanhã (ontem)?”, questionou. “Sem beber água, perco à vontade 1 kg”, informou Afonso Domingos. Perderia 1,5 kg. Foi acompanhado por Filipe Silva, o mais pesado, dos 112kg, viria a enxugar 1,75kg, Plantier, e o mais velho da tripulação, José Paulo Ramada, nascido em janeiro de 1963, que perdeu somente 500 gramas (76,5 kg ditou a balança).
Paulo Manso, madeirense agraciado com o número 7 nas costas, passou dos 85,5 para os 83,7 kg, Mariana Lobato, olímpica, perdeu quilo e meio situando os ponteiros nos 65,4 kg e Pires de Lima, 400 gramas perdidas (59,3kg), preferiram puxar pelo corpo no ginásio do hotel (remo, bicicleta e burpees), de onde saíram para as pesagens sem tomar pequeno-almoço.
Por fim, os tripulantes masculinos mais magros foram aqueles que mais contribuíram para a dieta conjunta, Pedro (71,25kg) e Diogo Costa (63kg), dupla olímpica em Tóquio, retiraram 5,45 kg do barco. Ambos perderam mais de 2 quilos cada devido à corrida feita enrolados em camadas de roupa.
Contas feitas, Portugal entre hoje, até dia 12, em ação na 4.º e penúltima ronda, ao lado de Turquia, República Checa e Bulgária. O “objetivo é estar no mundial”, rematou Afonso Domingos, pondo fim ao “drama” do peso antes do apuramento para este mundial de vela.
O jornalista viajou a Grandson a convite da SSL.
Comentários