Foi novidade nos anos 90, tornou-se o modelo de negócio de milhares de novos empresários e é responsável, em Portugal, por 5,8% do PIB, segundo dados da Associação Portuguesa de Franchising. Não é apenas a percentagem de riqueza gerada que espanta, mas também o facto de, comparando com mercados maiores e/ou mais dinâmicos, como é o caso do Brasil, Estados Unidos ou mesmo Espanha, Portugal ter mais franquias por milhão de habitantes (50 marcas de franquia por milhão face a 27 no caso espanhol, por exemplo).
Em vésperas de realização da Expofranchise 2023, a 12 e 13 de maio, em Lisboa, Cristina Matos, diretora-geral da Associação Portuguesa de Franchising (APF), explica em entrevista ao SAPO24 que o peso do franchising na economia é influenciado por fatores como a dimensão do país, a legislação e até mesmo questões culturais. Fatores que, no caso português, não alteram o que os números mostram: num tecido empresarial atualmente mais conotado com startups, o franchising é o modelo de negócio adotado por muitas das pessoas que querem começar um novo negócio e mostra uma resiliência superior à média.
Os anos 90 foram a década de ouro do franchising, mas hoje vivemos a era das startups. O que mudou nestes 30 anos de história em Portugal?
Na realidade, o franchising entrou oficialmente em Portugal no final da década de 80. A Associação Portuguesa de Franchising (APF) foi criada em 1987, a primeira feira de franchising aconteceu no Fórum Picoas, em 1988, e a primeira diretora-geral da APF foi a Júlia Pinheiro. Isto foram os primórdios e na década de 90 foi a explosão. As pessoas deparam-se com um modelo de negócio que trazia confiança, credibilidade e que era sexy, porque trazia marcas que nunca antes tinham entrado no nosso mercado.
A McDonald’s, por exemplo, entra em Portugal em 1991 e foi, sem dúvida, uma das grandes referências do franchising, a primeira grande marca, que entra com a abertura do CascaiShopping. Isto apesar de a Coca-Cola já estar em Portugal e ser outro grande franchising. A Singer, das máquinas de costura, é dos primeiros modelos de franchising, logo seguida da Coca-Cola.
O que contribuiu para essa explosão na década de 90?
Foi a década em que surgiram os centros comerciais e era preciso encher esses espaços e para isso vão buscar-se muitas dessas marcas internacionais que entram no nosso mercado por via do franchising.
Depois, como tudo na vida, atingiu a maturidade, houve marcas que ficaram pelo caminho e marcas que ganharam uma projeção e uma dinâmica grandes e que se mantêm no mercado.
Em Portugal, quais são as grandes marcas embaixadoras do franchising?
Os censos são difíceis de se fazer em Portugal, porque não há legislação específica sobre franchising. As pessoas podem pensar que isso é preocupante, mas não é, porque usamos a legislação que existe para comércio e serviços e que está perfeitamente adaptada aquilo que é o modelo de negócio do franchising. Não precisamos de criar nenhuma legislação própria.
Portugal tem, em termos proporcionais, um peso muito maior do franchising do que outros países como Espanha, como o Brasil. Porquê?
No Brasil, o franchising tem uma expressão muito maior do que tem em Portugal, mas falamos de São Paulo e do Rio de Janeiro e mais uma ou outra cidade na zona sul, porque o país é muito grande. Só a zona da grande São Paulo tem 20 milhões de habitantes, nós somos 10 milhões, em Portugal. O nosso país consegue ser coberto por uma rede de franquia com uma facilidade enorme, no Brasil não é assim. Há muitas marcas com quem falo, que gostariam de trazer o negócio para Portugal e dizem “estamos a anos-luz de conseguir cobrir o Brasil. Como é que vamos investir fora do Brasil se não conseguimos dar conta do nosso território?”.
Isso é parecido com os Estados Unidos porque o território é grande. E em Espanha?
Espanha tem muita zona de interior. Por exemplo temos a Kiabi, uma marca que está agora a entrar em Portugal via franchising. Não têm interesse em estar em aldeias ou em vilas, precisam de grandes centros comerciais. São concorrentes diretos da Primark, por isso precisam de grandes lojas, são lojas-âncora dos centros comerciais e isso faz com que não tenham interesse em entrar em sítios onde não haja densidade populacional.
A Regus é também um bom exemplo no setor do coworking. Precisam de ter dimensão, não lhes interessa ter uma sala com 100m2 perdida no meio de um sítio qualquer. Onde está o grande foco deles? Nas periferias, cidades de média dimensão e grandes centros urbanos.
Por isso, em Portugal, acabamos por facilmente cobrir o país, quando pensamos em Braga, Porto, Aveiro, Leiria, Coimbra, Lisboa e Algarve.
O franchising representa, segundo os números da associação, 5,8% do PIB, que é um valor muito significativo. Basta pensarmos que o turismo, que é um grande motor da economia, vale 12%. Falamos de quase metade ...
E vamos estar mais próximos desses 12% mais rapidamente do que se imagina, dentro de poucos meses.
Em termos globais, qual o país que tem o franchising com mais peso, em volume de negócios, no PIB do país e porquê?
África do Sul. Primeiro, por ser um país de língua inglesa que vai buscar muito da cultura norte-americana. O franchising não nasceu nos Estados Unidos, mas o franchising de marca nasceu nos Estados Unidos e foi com a Singer. Estava-se no início da Primeira Grande Guerra e as senhoras tinham a sua máquina de costura e criavam o seu próprio negócio, dentro da sua casa, costurando para fora. A Coca-Cola surge pouco depois, entregava o xarope, dizia como se fazia, e cada país criava a sua própria fábrica que pagava à Coca-Cola um fee do resultado do negócio.
O Brasil é um laboratório de franchising
Os Estados Unidos continuam a ser o principal produtor de marcas de franchising?
Os Estados Unidos continuam a ser o grande embaixador do franchising. Mas no Brasil, mais de 90% do mercado são marcas próprias. São um laboratório de franchising. Depois há um outro mercado muito importante que é a Coreia do Sul, que é um gigante de produção de marcas. É um país mais pequeno, em dimensão geográfica, mas é o país que, provavelmente, tem mais modelos de negócio de franchising a nascer.
Há alguma marca que nós, portugueses, reconheçamos da Coreia do Sul, que esteja cá?
Não. Entrou agora, há pouco tempo, pela primeira vez, uma marca que é de Taiwan, a Gong Cha, há cerca de três meses com uma loja no Chiado. Fazem muito a sua expansão dentro do mercado asiático, têm tanto território para crescer… e a China!
Há pouco tempo, estive com a presidente do conselho da Associação Brasileira de Franchising e ela dizia-me que há uma marca de franchising na China que tem 82 mil unidades. É uma dinâmica sem paralelo.
Como é que os dois anos de pandemia afetaram o setor?
Passados três, quatro meses de entrarmos na pandemia, resolvi fazer um inquérito para perceber como as coisas estavam. A certa altura recebo um telefonema de um associado a dizer que não conseguia preencher o inquérito, “Pergunta quanto é que decresci e eu aumentei. Não tem isso previsto. Só há duas opções: ou se estabilizei e mantive ou se diminui, falta a pergunta para quem aumentou”. Então mudei o questionário, coloquei a questão sobre quem aumentou e reenviei.
Quem é que aumentou? Aumentaram os supermercados, naturalmente. Passámos a comer em casa, a comprar os nossos alimentos, deixámos de ir aos restaurantes.
Temos supermercados em franchising?
Temos muitos: My Auchan, Meu Super, Spar, Mini Preço, temos muitos franchisings. As grandes redes de supermercados, neste momento, são quase todos franchising. As pessoas não têm essa noção. A Sonae está completamente imbuída de franchising, Grupo Auchan também, a Fnac entrou no franchising há cerca de quatro ou cinco anos. Há muito mais do que aquilo que as pessoas podem imaginar.
Que outros negócios cresceram na pandemia?
O segmento de apoio a idosos, a área da limpeza. E, claro, a área da restauração, aqueles que se conseguiram reinventar, com o takeaway e delivery.
Quem é que não resistiu? As unidades que eram muito fracas já antes da pandemia, já estavam debaixo de água a tentar sobreviver e a pandemia foi a machadada final.
Houve outras surpresas nessa etapa?
No ano passado, os Prémios Europeus de Franchising foram pela primeira vez atribuídos pela Federação Europeia e quem ganhou um dos prémios de resiliência foi uma marca de fitness portuguesa, a Fitness Factory. Já existia na pré-pandemia, desde 2016 ou 2017. Começou por não ser franchising, depois transformou-se nesse modelo e abriu até a primeira unidade na Índia, há umas semanas. Receberam o prémio porque souberam sobreviver, resistir e reinventar-se numa altura em que os ginásios estavam fechados.
Nesses dois anos, dois anos e meio, apareceram novas propostas?
Incrivelmente, apareceram. Uma delas acho particularmente interessante: um casal de brasileiros veio para Portugal, criou uma marca aqui, em Portugal, a marca é 100% portuguesa, e em plena pandemia abriram 16 unidades. É a Harab’s (espécie de mini pizza ou torta árabe). A primeira unidade que abriram foi no bairro de Benfica, em Lisboa. No meio dos prédios, as pessoas iam à janela, sentiam o cheirinho e ligavam a pedir. Num ápice, foi espantoso – ganharam o Prémio Inovação.
"Detesto quando me perguntam ' o que é que está a dar'?"
O perfil do empresário de franchising mudou?
Hoje em dia, o perfil do nosso franqueado é essencialmente um gestor ou com algumas capacidades de gestão, mas, acima de tudo, um líder. Essa é a principal capacidade que tem de ter, vai liderar uma equipa. Estes dois condimentos só funcionam se houver paixão, se não, o que é que faz uma pessoa saltar da cama, numa segunda-feira às sete da manhã para ir trabalhar?
Detesto quando me perguntam “estou à procura de uma marca – o que é que está a dar?”. Um empresário de franchising é exatamente o mesmo que tem mindset para uma empresa sem ser em franchising. Tem de ter paixão, muita resiliência, capacidade de liderança, saber dar o exemplo, saber liderar equipas. Tem de saber lidar com o público, com os clientes. Esse é o segredo. O que está a dar pode ser McDonald’s, mas se pessoa não tem capacidade financeira ou não gosta de hambúrgueres ou precisa de ter fins de semana para a família, tem de partir daí e ver qual o seu ideal de vida pessoal e profissional.
Eu não vou comprar um bolo, vou comprar um negócio e preciso de ter uma relação com as pessoas que me vão acompanhar
Agora olhando para a Expofranchise, o que vai ser apresentado?
Esta é a 29ª Expofranchise. A APF passou a ter a responsabilidade da organização, em 2019, veio a pandemia, estivemos dois anos sem a fazer, depois ainda fizemos uma edição online.
A feira física é uma grande diferença. Eu não vou comprar um bolo, vou comprar um negócio e preciso de ter uma relação com as pessoas que me vão acompanhar ao longo da minha vida profissional, enquanto for proprietária desse negócio. E essa confiança ganha-se presencialmente.
O que é que procura quem vai à feira?
Há o curioso, que vai para ver o que há, antigamente havia muitas pessoas que iam pelo brinde e hoje isso já não acontece, também procuramos que a publicidade seja mais direcionada. Queremos cada vez mais focar-nos no público que realmente tem interesse e que procura algo específico dentro da feira.
A feira é um palco para as marcas se mostrarem e encontrarem futuros empresários que querem criar a sua própria empresa. Também há marcas que estão à procura de empresários para poderem ser masters em Portugal.
No total, vão estar quantas marcas?
Temos perto de 50 marcas.
O que é que um potencial franchisado ou master franchise deve saber antes de optar por uma marca?
Há duas coisas que precisa de saber. Primeiro, o que não gosta de fazer, ter isso absolutamente assente na sua cabeça. Não vale a pena, só porque ouviu dizer que é um bom negócio, ir lá bater à porta. Se não gosta, não se meta, porque vai ser um problema, para ele e para a marca, para todos.
Depois é saber aquilo que gosta, o quanto está disponível para dar, sacrificar, disponibilizar-se. É algo que quer fazer 24 horas por dia? Deitar-se tarde e, se calhar, às 3 da manhã ter de saltar da cama porque aconteceu um problema e a loja tem de estar aberta ao público, como por exemplo algumas unidades na área de fast food?
Depois é necessário saber se tem potencial financeiro, se na zona onde quer abrir há disponibilidade.
Há várias variáveis que têm de ser tidas em conta, mas as principais são as de bom senso.
Qual a relação que vai ter com as pessoas que são representantes da marca?
Depende. Muitas pessoas têm medo de marcas jovens que estão a arrancar porque acham, ou têm medo, que não tenham um mercado suficiente ou grande experiência. Mas depende, pode ser uma ótima oportunidade, ver a criança a crescer, ser muito mais interventivo e a sua maior preocupação é ter uma boa química com o dono da marca, que é quem, na realidade, o vai acompanhar.
Em grandes redes já, provavelmente, não se chega ao dono da empresa. Estou a falar de redes com 300, 400 ou até 600 unidades. Já não se lida só com uma pessoa, há um grupo de pessoas.
Costumo dizer que, quando estiverem a comprar um modelo de negócio, avaliem em toda a linha. Por exemplo, estão em comunicação com uma marca, enviam um email para a empresa, passou uma semana, não respondeu, vocês reforçam o email e não respondeu, então comece a repensar. Ou tem falta de pessoal ou não está bem organizada, alguma coisa não está a correr bem. Criámos agora uma formação que dura cerca de um mês que se chama “Jornada de Franchising” e destina-se a franqueados e franqueadores, quer queiram transformar o negócio num franchising ou que queira ser um franqueado. E uma das noções é essa – avaliar. Não sou eu só que vou ser avaliado pela marca, também estou a avaliar a marca. Conheçam a estrutura, falem com outros franqueados, vejam se realmente se entendem com a equipa que vai trabalhar convosco. Tudo isso é importante, porque não são contratos de seis meses, são contratos de anos.
O grande desafio é reconhecer o franchising como um modelo de negócio inquestionável para as pessoas que querem empreender, que não têm essa experiência e que têm receio de empreender sozinhas
Qual é o grande desafio que o setor enfrenta, neste momento, em Portugal?
O grande desafio é reconhecer o franchising como um modelo de negócio inquestionável para as pessoas que querem empreender, que não têm essa experiência e que têm receio de empreender sozinhas. É essa notoriedade que ficou adormecida no pós-crise.
Há até uma coisa muito importante: no final de um ciclo de cinco anos da vida de uma empresa, 80% das empresas que estão sozinhas, morreram. No franchising só morreram 12%. É uma diferença brutal – o acompanhamento, não só do franqueador, mas também da rede. O sucesso da marca é o sucesso de todos.
Há sempre uma frase nas palestras sobre não haver um lugar mais sozinho do que o do dono de uma empresa. Tem de tomar decisões sozinho que para o bem e para o mal vão afetar a sua vida profissional, a vida da sua família, a vida dos seus colaboradores. E, mesmo que ouça várias pessoas à volta, a decisão final é sempre dele. No franchising não é assim; partilho um projeto com mais 50 associados, ou 150 ou 500. E em algum momento alguém vai dizer-me “Não faças isso. Eu já fiz e não correu bem”, o que não ia acontecer com o empresário do lado de quem sou concorrente.
Pode haver generosidade, mas é menos provável.
É que o sucesso do meu vizinho é bom para mim e eu quero que lhe corra bem e ele quer que me corra bem, porque isso é bom para a marca e para ambos. É essa a diferença do franchising.
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