Hoje, um pouco por todo o mundo, há uma comunidade alargada de pessoas que fala de oncologia pediátrica; dito de forma talvez mais crua, falam de cancro em crianças (bebés, até) e jovens. São 300.000 casos por ano nos cinco continentes, com uma taxa de sobrevivência que ronda os 80% nos países mais desenvolvidos, ou os 20% nos países menos desenvolvidos, o que não deixa de ser um cruel retrato do fosso que ainda existe entre uns e outros.
Reduzimos os valores da estatística mundial e fixamo-nos em Portugal: 400 casos por ano, talvez, com uma taxa de sobrevivência de 80%: significa isto que uma criança em cada cinco não se cura. Os números são claramente animadores, mas é preciso lembrar que dois terços dos que sobrevivem viverão com efeitos colaterais a longo prazo.
Não caberia nos limites deste artigo dizer o que se fez de bom nos últimos anos. Porém, e acima de tudo, não caberia nos limites deste artigo dizer o que falta fazer, ou o que se faz de forma deficiente: a falta de investigação em oncologia pediátrica ou a insuficiência dos ensaios clínicos, o que implica o não investimento em medicamentos para as crianças; a não existência de um Registo Oncológico Pediátrico que permita conhecer em detalhe a realidade portuguesa, compará-la com outras realidades e adoptar medidas públicas direccionadas; o seguro de vida para compra de habitação própria é proibitivo para um sobrevivente de cancro infantil, o que configura uma injustiça em cima de outra injustiça; a ausência de resposta cabal de consultas de acompanhamento a sobreviventes lança-os num deserto de incertezas inaceitável.
Podemos ainda falar na questão educativa, com a falta de condições nalgumas escolas. Por último, sem que de modo algum se esgote o que falta ainda fazer, temos de ir mais longe nos apoios sociais e laborais a famílias que se desestruturam por causa de um filho pequeno diagnosticado com cancro. Ou talvez possamos questionar-nos, numa abordagem cruel mas, infelizmente possível, se faz sentido os 5 dias de luto para quem perde um filho.
O sucesso da Acreditar é um percurso, não um destino. Não baixaremos os braços no nosso desejo de alterar práticas ou legislação existente, respondendo aos anseios de pais e sobreviventes que nem sempre entenderão as opções políticas do momento. Insistiremos – uma e outra vez – com os partidos, decisores ou outros influenciadores. O cancro infantil é a principal causa de morte nas crianças, depois dos acidentes, seja aqui ou no resto do mundo.
Telefonam-me um mês destes: uma amiga de uma amiga tem um filho em fase de diagnóstico no IPO de Lisboa. O miúdo – porque é um miúdo de 11 anos — tem uns pais angustiados e uma irmã mais pequena que se interroga, que sofre, que está baralhada. Telefonaram-me um dia destes: o miúdo foi internado no 7.º piso do IPO de Lisboa.
(O piso da pediatria é um local que conheço de outros tempos, percorrido por algumas pessoas que conheço desse tempo e de tempos mais actuais. É uma ilha de confiança, de competência, de saber e de dedicação num mar angústias).
A mãe, com quem falo largamente, sente-se um pouco perdida: o olhar de uma mãe sobre um filho que sofre é diferente (e realço o diferente, sem ser melhor nem pior) do que o olhar de um pediatra sobre uma criança doente, e essa diferença de olhares nem sempre é favorável aos pais. Falamos de alimentação, de queda de cabelo, da necessidade de reforçar os vínculos do casal, da importância de dar atenção à irmã ou de exteriorizar as angústias, para que não se tornem num buraco negro da alma.
Não conheço o miúdo nem os pais. Mas hoje, 15 de Fevereiro, Dia Internacional da Criança com Cancro, este miúdo é, para mim, uma espécie de lugar geométrico dos 400 novos casos por ano em Portugal e do tanto que ainda há por fazer, aqui ou no mundo inteiro (mundo onde a cada três minutos há uma criança que morre com cancro). Hoje, este miúdo faz-me lembrar a desestruturação das famílias nestas situações, o sofrimento dos pais e a certeza de que temos — associações, decisores políticos, gestores — muito caminho pela frente.
Sobre a Acreditar
A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional; social e jurídico. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias.
Com a experiência de quem passou pelo mesmo, enfrenta com profissionalismo os desafios que o cancro infantil impõe a toda a família.
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