Weinstein foi o primeiro homem famoso e poderoso a ser acusado de abuso sexual, a 5 de outubro de 2017, quando o “New York Times” publicou um artigo com pormenores de décadas de ações indecorosas do produtor contra diversas mulheres, entre elas as atrizes Rose McGowan e Ashley Judd. As acusações iam de massagens forçadas a exibicionismo, com promessas de “ajudar” a carreira das vítimas. Weinstein começou por negar, mas nos dias seguintes outras treze mulheres vieram a público com histórias mais escabrosas.
Um extenso artigo na revista “The New Yorker” tornou a situação insustentável para o produtor. A 11 de outubro foi afastado da sua empresa (que faliu pouco depois) e expulso da Academia Britânica de Cinema e Televisão (BAFTA) e da congénere americana (APAS), e a sua mulher, a designer Georgina Chapman, anunciou que o deixava. Tudo no mesmo dia.
Em termos profissionais, Harvey Weinstein morreu nesse outubro. Mas em termos legais só foi agora que se tornou oficial o seu desaparecimento do firmamento dos ricos e famosos.
Na sequência das denúncias, num fenómeno conhecido como “efeito Weinstein”, dezenas de homens foram acusados de vários graus de assédio sexual. Primeiro no mundo do cinema, e imediatamente a seguir na televisão, nas empresas tecnológicas, nas universidades, no mundo científico e financeiro, e depois nos serviços, indústrias, comércio e em todas as atividades em que homens e mulheres estão em contacto. É difícil somar quantas figuras mais ou menos públicas foram acusadas.
A 15 de outubro de 2017 (ou seja, dez dias depois do artigo do “Times”) a actriz Alyssa Milano, uma das acusadoras, recuperou a ashtag #MeToo (criada em 2006 pela activista Tarana Burke) num tweet que até ao fim do dia teve 200 mil partilhas; no Facebook, #MeToo foi usada por quatro milhões e oitocentas mil pessoas em 12 milhões de publicações nas primeiras 24 horas.
Dos Estados Unidos, o #MeToo viajou a velocidade pandémica para todo o mundo, confirmando o que toda a gente sabia, mas ninguém queria saber: que há pessoas (homens, numa vastíssima maioria) que assediam e/ou abusam sexualmente de outras pessoas (mulheres, muitas e homens, menos), tirando partido de situações de superioridade em relação às vítimas.
A definição de assédio sexual não é tão abrangente como o entusiasmo do #MeToo levou a considerar. Na definição oficial em Portugal, semelhante, se não igual, ao resto do mundo civilizado, é um comportamento verbal ou físico "aquando do acesso ao emprego, ou no emprego, trabalho ou formação profissional, (...) com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.”
Portanto, e não é por de mais sublinhar, trata-se de situações em que o assediador usa uma superioridade sobre o assediado, seja factual –o assediado precisa dum favor, por exemplo – seja psicológico, segundo uma figura jurídica reconhecida legalmente, o “temor reverencial” que é exactamente isso: a pessoa sente-se intimidada pelo estatuto do “atacante”.
Esta pormenorização retira do quadro de assédio uma série de situações que no âmbito do movimento #MeToo, passaram a estar incluídas, ao ponto de os engraçados (e engraçadas) dizerem que já não se pode fazer a corte, conquistar ou “engatar” ninguém (escolha a linguagem que quiser...) sob o risco de se ir parar a tribunal. Esta posição foi defendida com seriedade na famosa “Carta das 100 mulheres francesas”, a qual afirmava, à partida, que “a violação é um crime. Mas o engate insistente ou desagradável não é um delito, nem a galantaria uma agressão machista”.
As diferenças culturais contam. Os europeus e as europeias têm, em regra, uma abordagem mais “suave” a estas situações de igual para igual; quando uma pessoa é importunada, afasta-se, ou riposta – e é menos provável que use a denúncia à polícia ou vá contar aos jornais.
Desde que Weinstein foi exposto, vários casos igualmente mediáticos vieram ao de cima, alguns muito claros, como o do comediante Bill Cosby, acusado por muitas mulheres de violação ao longo de anos – desde 1965. Cosby era uma figura muito querida, tinha uma imagem de “velhinho ternurento” e começou, como de costume, por negar, alegando terem sido casos consensuais. Afinal o seu “modus operandi” era convidar a menina para uma conversa em sua casa, para ver possibilidades de trabalho, e depois drogá-la com um pastilha conhecida nos Estados Unidos como "Boa Noite, Cinderela". Foi considerado culpado por pelo menos três casos e, atualmente, cumpre uma pena de até 10 anos em uma prisão estadual.
Mas nem todas as acusações são iguais. O senador Al Franken, ex-actor cómico, foi filmado a fazer uma brincadeira parva com uma assistente (fez o gesto de lhe agarrar os seios, mas sem lhe tocar) e, no seguimento dum processo rápido no Senado, perdeu o lugar. Posteriormente alguns senadores consideraram que a expulsão foi um exagero.
Também há o caso do comediante Aziz Ansari, que aqui relatámos, em que a acusadora transformou um encontro que correu mal – ela queria, mas depois já não queria e ele respeitou a sua indecisão – numa acusação de tentativa de violação.
As acusações aos famosos, que actualmente se contam às centenas, senão milhares, provocam por vezes reações de incredulidade e de pena em relação a não poder continuar a apreciar o artista. Ouvem-se muito frases como “então não vou ver mais nenhum filme dele?”, ou “e agora ninguém vai assistir aos espectáculos dela?” – a entoação depende de da opinião quanto ao valor do visado.
E começou-se a fazer o historial da História: grandes pintores, bailarinos, atores, cantores, que tiveram gloriosas carreiras, citados nos compêndios das especialidades, mas que se sabe que, no que toca a comportamentos privados, foram entre o mau e o execrável. Machistas, abusadores, até pedófilos. E, de novo, as perguntas. Vamos rasgar-lhes os quadros? Vamos queimar os filmes, apagar as gravações?
Esta questão é um terreno minado; diga-se o que se disser, é francamente difícil, se não impossível, uma discussão sem que os ânimos se exaltem.
Mas deixemos a História em paz; o que fazer com os vivos? Uma grande parte dos acusados de assédio, se não a maioria, não foram julgados, nem sequer indiciados; há acusações e, à luz do que se entende como Estado de Direito, terão de ser provadas; até lá os visados são inocentes até prova em contrário.
Esta é a consequência perversa do #MeToo: sem formalização da acusação, não há desfecho, o que é mau para ambos os lados, dependendo do que realmente tenha acontecido. Uma acusação que se tornou pública, mas não seguiu para tribunal, basta para que a carreira do suspeito possa ficar imediata e irrevogavelmente condicionada, senão terminada. Se o suspeito for inocente, é péssimo. Se for culpado, é, provavelmente, pouco.
A maioria dos denunciadores está com certeza a falar verdade; e haverá muito mais pessoas que poderiam denunciar. Contudo, uma acusação não chega, e mesmo muitas acusações à mesma pessoa, se levantam suspeitas legítimas, não fazem prova. É preciso que os visados sejam julgados e condenados. Mas a justiça, mesmo onde é rápida, não é tão rápida como a condenação pública e a destruição da carreira.
Cada caso é um caso, evidentemente. Mas algum do cepticismo em relação a como o #MeToo ganhou terreno pelo facto das denúncias formais às autoridades serem muito menos que os relatos aos tablóides, além, claro, de muitos dos acusados, sendo particularmente populares, gozarem de um certo benefício da dúvida ou, mais estranho ainda, duma grande vontade do público de não os perder. Ao ponto de muitos se sentirem à vontade para voltar a aparecer.
De maneiras diferentes. Louis C.K. é um humorista famoso por ser ordinário e de mau gosto, mas com muita piada. Tem uma legião de fãs, entre eles certamente pessoas nem ordinárias nem de mau gosto, mas que riem nervosamente com as ousadias – esse é um mecanismo conhecido do humor. Em novembro de 2017 o “New York Times” relatou as acusações de cinco candidatas a humoristas: prometendo-lhes uma oportunidade, o que ele gostava de fazer era despir-se e masturbar-se à frente delas. Não lhes tocava, mas, está bem de ver, deixava-as enojadas. C.K., que tinha ganho um Emmy e enchido o estádio Madison Square Garden de Nova Iorque (40 mil lugares) oito noites seguidas, foi eliminado liminarmente de todas as aparições públicas, grandes e pequenas. Um filme em que participava e que estava para sair, nem chegou a ser exibido.
Isto foi em novembro de 2017; em novembro de 2018, um amigo de Louis C.K. que é dono de uma casa de “stand-up comedy” em Nova Iorque, o “Comedy Cellar”, deixou-o apresentar-se. Casa cheia, todas as noites. Tanto sucesso que C.K. começou uma digressão pelo país. No ano passado, esteve em Portugal. E como é que abriu várias atuações? “É verdade, gosto de me masturbar, e não gosto de estar sozinho.” As casas vêm abaixo com as gargalhadas. C.K. conseguiu transformar a sua ordinarice (para dizer o mínimo) numa piada de sucesso.
Ao lado de Louis C.K., Kevin Spacey é um senhor. E muito mais conhecido, no mundo inteiro. Nascido na Grã-Bretanha, onde fez o circuito teatral, há anos que protagoniza filmes extraordinários. É um ator muito bom, com forte carisma pessoal, e as suas personagens têm normalmente uma malícia deliciosa. A série “House of Cards”, o seu último trabalho em televisão, em que fez de Presidente Frank Underwood, teve cinco temporadas com recordes de audiência. A sexta estava prevista para 2018. Mas a 29 de outubro de 2017, o ator de boa reputação Anthony Rapp declarou que Spacey o atacara quando ele tinha 14 anos, em 1986. Spacey disse que não se lembrava duma coisa que teria acontecido há 31 anos, mas que se acontecera lamentava muito e pedia desculpa. Depois de Rapp, mais de 30 jovens vieram a público acusá-lo. Já em 2019 Spacey começou a ser julgado por um desses casos em Nantucket – uma ilha muito popular entre a comunidade gay – e acabou absolvido.
Mas, ainda em outubro de 2017, quando só se conhecia a acusação de Rapp, a série “House of Cards” foi cancelada (voltaria depois, sem ele) e Spacey foi substituído num filme que estava para sair. Todos os seus filmes deixaram de ser exibidos. Um dos atores mais famosos (e melhores) do planeta desapareceu de circulação. (Convém lembrar que a homossexualidade não é delito na maioria dos países ocidentais, inclusive nos Estados Unidos; o crime nestes casos é pedofilia, que é crime em toda a parte.)
A pedofilia marca o delinquente para a vida; mas parece que a qualidade do trabalho de Spacey o coloca à margem dessa bitola, uma vez que milhões de espectadores sentem a sua falta. Ciente dessa simpatia, Spacey, na véspera do Natal de 2018 colocou no Youtube um vídeo ao mesmo tempo estranho, enganador e descarado. Encarnando a personagem Frank Underwood, a certa altura diz: “Let me be frank... you want me back!”
No horizonte mais próximo, dificilmente Spacey voltará a ser aceite pelos estúdios, mesmo que não seja condenado em nenhum dos processos – o de Nantucket era apenas o primeiro.
Em 2019, a atribuição de cinco prémios a Roman Polanski no Festival de Veneza causou uma grande polémica. Polanski foi acusado de violação de uma menor em 1977 e condenado; fugiu para a Europa e até hoje não pode voltar a entrar nos Estados Unidos. No entanto tem feito filmes extraordinários, como o provam os galardões de Veneza. Deve-se proibir os seus filmes? Algumas actrizes presentes no festival defenderam-no, outras consideraram a reabilitação de Polanski inaceitável.
Talvez por ser o primeiro a ser denunciado, Harvey Weinstein tornou-se um caso simbólico – daí que esta condenação tenha tido uma repercussão mundial muito superior à de Bill Cosby, por exemplo.
Agora, a pergunta de um milhão (de anos de prisão) é: o assédio sexual vai acabar? E, nos casos em que a acusação é provada, há caminho de volta dos acusados para os braços do grande público? Pior, nos casos que nem chegam a tribunal, é mais justo assumir inocência ou culpar sem prova mesmo que arruinando uma carreira?
O #MeToo mudou o assédio sexual - certamente para melhor em vários casos, dificilmente poderia resolver um padrão de comportamentos que tem tanto de ancestral como de ambíguo.
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