Quando a Igreja parecia não poder piorar mais o seu discurso de descrença sobre o que aconteceu às vítimas, eis que volta a ultrapassar os limites do que é aceitável. Na sexta-feira, 3 março, D. José Ornelas fez uma conferência de imprensa, enquanto presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para anunciar as medidas da Igreja com base no relatório final da Comissão Independente. Não apresentou nenhuma medida satisfatória. Referiu umas quantas orientações vagas e abstratas, mas não apresentou propostas reais e concretas. Também não indicou objetivos claros e uma calendarização concreta para as ditas medidas. Em vez disso, vimos um discurso centrado na auto-preservação da Igreja, na desvalorização da Comissão Independente — reduzindo um ano de trabalho a uma mera lista de nomes — e, claro, um total desrespeito pelas vítimas.
As vítimas não são claramente a preocupação da Igreja, antes pelo contrário. No último ano, a Igreja usou e abusou novamente das vítimas, das suas histórias e dos seus testemunhos, para agora vir dizer que os testemunhos não têm valor. Mais do que nunca, é claro que a Igreja não tem — se é que alguma vez teve — intenção de reparação ou de a trazer às vítimas.
Postura de constante desvalorização das vítimas
Lembremos um pouco do percurso mais recente. Em 2019, o Papa Francisco ordenou a criação das comissões diocesanas através de um decreto papal que obrigava os sacerdotes e religiosos a denunciar casos e suspeitas de abuso sexual, e também a reportar os encobrimentos e a ocultação de casos. A reação de vários bispos — Porto, Lamego e Santarém, mais concretamente — foi de rejeição e desvalorização, afirmando que Portugal seria a exceção, uma vez que, por cá, não haveria tais crimes no contexto da Igreja. O sucesso foi residual, uma vez que, como era esperado, as vítimas não se sentiram seguras em falar com a própria instituição que historicamente sempre protegeu os abusadores.
Em janeiro de 2022 criou-se a Comissão Independente e o resultado foi dantesco. Mesmo com 512 testemunhos validados num total de 4815 casos de abuso sexual de menores, a Igreja continua a desvalorizar as vítimas que reuniram a coragem e a força para quebrar o silêncio. Dos quase cinco mil casos, 97% dos abusadores eram homens e 77% eram padres, dos quais 77% das vítimas nunca se tinham queixado à Igreja e apenas 4% tinham recorrido à justiça.
Este domingo, 5 de março, o cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, decidiu partilhar a sua posição, rejeitando a possibilidade de suspensão dos padres que abusaram de crianças. Face a isto, temos de questionar se Manuel Clemente e outros bispos têm capacidade para reconhecer a dor e o sofrimento que estas vítimas sofreram nas mãos dos padres que abusaram sexualmente delas. Estarão os representantes da Igreja no limite da sua compreensão sobre estas matérias ou estarão em falência moral?
Manuel Clemente referiu ainda que a «suspensão é uma pena muito grave». Enquanto profissional que presta apoio a homens e rapazes vítimas de violência sexual, discordo totalmente desta afirmação. Grave é o abuso sexual de crianças, uma violação dos direitos humanos. Igualmente grave é o impacto que este tipo de trauma gera na vida das vítimas e a forma como afeta o desenvolvimento das crianças. Grave é a contínua proteção dos abusadores em detrimento da proteção das vítimas. Será que estes representantes não conseguem sentir e demonstrar empatia pelo sofrimento causado pelos abusos sexuais e pelos anos que estas crianças sofreram em silêncio? Será impossível reconhecerem que foi a própria Igreja, através da Comissão Independente, que veio pedir incessantemente às vítimas para quebrarem o silêncio para depois as ignorar?
É natural que as vítimas se questionem por que razão deram o seu testemunho, e se terá valido a pena remexer num passado doloroso. Na Quebrar o Silêncio temos recebido contactos de vítimas que estão em sofrimento por tudo o que está a acontecer Também somos contactados por pessoas crentes que estão profundamente indignadas com a Igreja e que exigem mudança e justiça.
No decorrer da próxima Assembleia Plenária do episcopado, em abril, a CEP anunciou que vai pedir perdão às vítimas de abuso sexual na Igreja. Mas, tal como o próprio Papa Francisco refere «Não basta pedir perdão. Pedir perdão é necessário, mas não é suficiente». Estou de acordo, este perdão público não é suficiente. Nunca foi e, nas atuais circunstâncias, é apenas um gesto simbólico que fica sem efeito perante as manifestações públicas dos seus representantes. Mais do que palavras, precisamos de ações concretas, nomeadamente a suspensão de quem abusou e de quem foi conivente ao ocultar os casos e levá-los à justiça portuguesa. Até isto acontecer, a minha preocupação continua a estar no bem-estar das vítimas que, por parte da Igreja, são confrontadas com a constante desvalorização e desrespeito dos seus representantes.
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