Há desencontro total entre as duas versões, e a questão aviva-se de tempos a tempos, suscetível de introduzir ressentimentos na relação que, sendo complexa, é rica entre uns e outros em cada lado do Atlântico.

A mais recente tempestade – que poderia ficar em copo de água mas que está a vir para fora da borda – surge do quinto centenário do começo da conquista espanhola do México. Foi em 1519 que Hernán Cortés chegou ao México, à frente de uma armada com mais de um milhar de homens. Fez cair o império azteca e iniciou três séculos de colonização imperialista por Madrid.

Está reconhecido que a chegada dos conquistadores espanhóis causou, direta ou indiretamente, a morte de parte importante da população indígena. Há quem aponte a perda de 80% das tribos pré-existentes. Resultou a aniquilação de costumes e crenças ancestrais, a destruição de culturas, a espoliação de recursos e, entre outras desgraças, a entrada de doenças que massacraram a população que lá estava. Parece inquestionável que houve tratamento prepotente e autoritário por parte dos colonizadores.

O uruguaio Eduardo Galeano, autor de livros com escrita soberba, deixou-nos esta imagem na acutilante análise da colonização europeia: “Vieram. Eles tinham a Bíblia e nós tínhamos a terra. Disseram-nos para fecharmos os olhos e rezarmos. Quando abrimos os olhos eles tinham a terra e nós tínhamos a Bíblia”.

O trono de Castela decidiu lançar-se nos séculos XV e XVI à conquista. O trono de Lisboa optou por se impor, nesse tempo da expansão marítima, como a maior potência esclavagista no mundo. A escravatura já era praticada em África antes da chegada dos navegadores portugueses. Estes, trataram de fazer multiplicar esse tráfico com a travessia atlântica que alimentou a exploração do Brasil.

O atual presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, escreveu ao Papa e ao rei de Espanha a solicitar-lhes que apresentem aos povos indígenas um pedido de desculpas pelo que é hoje considerado como abuso de direitos humanos.

O conteúdo da carta foi logo rejeitado pelo governo de Madrid e o tom geral das reações foi de grande hostilidade, tornou-se mesmo polémica principal a menos de um mês das eleições gerais espanholas. O socialista Borrell, ministro dos estrangeiros no governo de Espanha, lamentou “profundamente” o conteúdo da carta e avisou que “obviamente” não vai apresentar “extemporâneas desculpas”. Casado, líder do PP, ripostou ao texto da carta classificando-o de “afronta” à Espanha, Rivera, nº1 do Ciudadanos, gritou que é ”uma ofensa intolerável”, Abascal, chefe do Vox, denunciou “uma falsificação da história” e apenas no Unido Podemos houve acolhimento favorável “num processo de recuperação da memória”.

Parece evidente que não faz sentido condenar factos do passado com a mentalidade, os valores e o enquadramento do presente. Não dá bons resultados utilizar o passado para demagogias e manipular o tempo atual. Qualquer análise com essa distorção sai enviesada.

Evidentemente, os impérios coloniais causaram grande sofrimento aos povos indígenas e levaram ao extermínio de alguns. O tráfico de escravos é um mal agora irreparável.

Parecem sábias as considerações do poeta e crítico literário Luís Garcia Montero, atual diretor do Instituto Cervantes: “Não há civilização que tenha as mãos limpas”. Enunciou o sem fim de perdões que haveria que pedir: “Perdão pelo que se passou em Espanha em 1936 (guerra civil) e no México em 1968 (matança de estudantes na Praça das Três Culturas); perdão aos chilenos pelo golpe de Pinochet; vamos pedir contas à Inquisição quando no século XX implantámos a tecnologia da morte nos campos de concentração?”. Conclui, certeiro, Garcia Montero: “A história está feita de barbárie. O nosso compromisso deve ser com o presente e o futuro”.

Se tratássemos de rever a história com a perspetiva ética do século XXI teríamos um gigante na expansão da cultura e civilização grega, como foi Alexandre o Grande, mandado para as catacumbas como bárbaro.

Há no desafio do presidente mexicano uma proposta que, essa, parece boa ideia: a da criação de um grupo conjunto de investigadores que trate de harmonizar, a partir da abundante historiografia, relatos fidedignos do que de facto aconteceu. Investigar, debater, ensinar, contar é um bom princípio, até para aprendermos com o exemplo e tratarmos de combater a continuação de barbáries.

Em simultâneo com isto tudo, há que reconhecer o grande avanço desses tempos da expansão marítima: o mundo antes conhecido era pequeno e fragmentado, com grupos humanos distribuídos por compartimentos estanques. A partir de uma plataforma ibérica adentrada no Atlântico o planeta Terra passou a ter unidade e a poder ser a casa comum de todos, com toda a pluralidade humana. Por lástima com demasiadas quebras no respeito pela dignidade humana.

A TER EM CONTA:

Uma brisa de frescura, uma raridade nos tempos que correm: o triunfo de uma liberal pró-europeia num país da Europa de Leste.

Um sorriso com o voto presidencial na Ucrânia.

Os deputados britânicos conseguirão sair da infinita negativa?

Bauhaus: os 100 anos de uma escola que revolucionou a arquitetura e a arte.