Há dias eclodiu uma mini-polémica envolvendo a economista Susana Peralta, que disse que um dos grupos sociais que devia ser chamado a pagar a crise era a “burguesia do teletrabalho”. Não me pareceu justa a forma como uma boa parte das pessoas leram as declarações e, além disso, achei interessante esta ideia de a pandemia ter criado novas classes sociais. De facto, há uma burguesia do teletrabalho que manteve ou aumentou os seus rendimentos de forma confortável, mas também há um campesinato do trabalho à distância indiferenciado, uma classe operária dos serviços essenciais que se expôs ao risco da doença, uma nobreza senhorial dos que lucraram sobejamente com a pandemia e, por último, os jograis, os trovadores, os segréis, os bardos, os menestréis, os bobos da corte que, se já estavam desprotegidos antes da pandemia, ficaram verdadeiramente sem rede neste último ano.
O SAPO24 desafiou-me a escrever sobre o que teria feito de diferente na gestão da cultura na área da pandemia. Ora, eu não sou especialista nem em gestão, nem em cultura. Mas como quem tem responsabilidades também parece não o ser, de alguma forma sinto-me legitimado e em posição de arremessar algumas postas de pescada. O que é que faltou à gestão da crise na cultura? Em primeiro lugar, - obviamente - dinheiro. Os apoios não só foram insuficientes, como tardaram. É engraçado como o governo mimetizou na perfeição o método de pagamento de muitas pessoas que contratam artistas: pouco, tarde e a más horas. Se outros setores batalharam publicamente por apoios através da greve de fome, muitos agentes culturais têm vindo a levá-la a cabo intermitentemente ao longo deste ano - não por opção reivindicativa, mas por falta de meios para comprar comida.
O que assusta é que a torneira não só esteve quase sempre fechada, partida, pingando muito raramente, como não parece haver vontade política para consertá-la. Aparentemente, a cultura não será alvejada pela bazuca europeia. Pelo menos, de forma direta. Segundo o Polígrafo, a palavra “cultura” é referida três vezes em 147 páginas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Penso que qualquer manual de contabilidade financeira deve incluir mais vezes referências à cultura do que o documento que lança as bases para recuperação do país. Tomando como enraizado o hábito de dar pouco ao setor, o raciocínio do Governo deve ser “bem, para que é que os profissionais da cultura precisam de um Plano de Resiliência, se os gajos são naturalmente tão resilientes?”.
Em resposta a uma Carta Aberta que manifestava indignação em relação à exclusão suprarreferida, António Costa disse que a “cultura é incluída no quadro dos programas transversais”. Ou seja, está perdida numa alínea. Por outro lado, o PRR foca-se muito na transição digital. E bem, sem dúvida que o país dos cadernos de merceeiro tem de ficar para trás. Contudo, no caso da cultura, o problema com o digital não é tanto a transição, mas a regressão que a falta de regulação do digital causa na capacidade de subsistência dos criadores. A cultura já transitou para o digital há anos, mas os proveitos não têm sido distribuídos de forma justa. Os gigantes tecnológicos vivem dos produtores e dos consumidores de conteúdo de países de todo o Mundo, mas não são taxados de acordo com o benefício. Num ano em que o consumo de plataformas de streaming explodiu - contam hoje com 1,4 milhões de subscritores no nosso país - o Orçamento do Estado prevê que estes operadores paguem uma taxa de apenas 1% dos proveitos. Em França, o governo quer 25% dos lucros do streaming sejam canalizados para produção nacional. Em Portugal, temos de nos contentar com um concurso com prémios de 25 000 euros a que concorrem 1200 pessoas.
O futuro próximo para a cultura é incerto, mas poderia ser mais previsível para os seus profissionais, houvesse um planeamento para a reabertura das salas e uma honesta gestão de expectativas em relação ao panorama dos espetáculos ao vivo durante o Verão. Quanto aos festivais, soubemos hoje que o Primavera Sound no Porto foi adiado mais um ano e é previsível que outros sigam o mesmo caminho. É duvidoso que a maioria dos artistas internacionais mantenha as suas tours europeias de pé, pelo que há uma oportunidade de organização de eventos seguros recorrendo ao mercado interno e a artistas residentes. Pede-se uma ativa dinamização cultural durante o Verão, que empregue artistas e técnicos e que estimule as economias locais. O Bons Sons Cem Soldos é um excelente exemplo de como se pode fazer isso. As multidões terão de ser limitadas, mas a aposta em eventos com entrada controlada ao ar livre, aliada à testagem em massa poderão possibilitar um verão menos cinzento.
Por último, é urgente tratar do problema da desmotivação. Muitos criadores, intérpretes, técnicos estarão a considerar deixar de fazer parte do meio cultural permanentemente, depois da porrada que têm levado durante este ano. A noção de que voltarão a ser dos primeiros a fechar atividade assim que pairar sobre o país outro perigo sanitário, sem que as suas necessidades básicas sejam atendidas, demoverá qualquer um de continuar a criar ou participar da criação. No centro da desmotivação, para além das dificuldades económicas, estará a inexistência de empatia que sentirão. Poderia ajudar contar com uma ministra que defende os interesses da cultura junto do governo, e não uma ministra que defende os interesses do governo junto da cultura.
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