Numa empresa, trabalhadores e administração chegam a um acordo laboral para responder a variações de encomendas e de produção.
Do comunicado divulgado para anunciar o entendimento aparecem, entre outras, duas citações desses responsáveis: a) "Acreditamos que a redução para um turno é uma situação transitória e que o futuro está ao nosso alcance. Queremos também mostrar à casa-mãe que sabemos adaptar-nos às circunstâncias"; e b) "Esta solução permitirá a manutenção do emprego e do rendimento dos colaboradores, sem colocar em causa a produtividade da unidade".
A pergunta é: qual destas frases é a da administração e qual é a da Comissão de Trabalhadores?
Não é óbvio, contrariando o que estamos habituados. E se soubermos que a primeira frase (a) é a dos trabalhadores e a segunda (b) a que cita a administração, temos a sensação de estar a ver um pouco do nosso mundo ao contrário. A administração a sublinhar a manutenção do emprego e dos rendimentos e os trabalhadores a pensarem no futuro da unidade e na imagem dentro do grupo multinacional. Onde é que já se viu? Viu-se, vê-se, na Autoeuropa, por exemplo.
Bem sei que a fábrica portuguesa do grupo Volkswagen é o exemplo fácil que está sempre à mão. Mas só é fácil porque eles, administrações e representantes dos trabalhadores, o têm feito assim de forma continuada, responsável e equilibrada para todos os interessados.
Há uns anos, um director-geral da Autoeuropa mostrou-me dados que comparavam a fábrica com outras do grupo VW. A produtividade era das mais elevadas, o absentismo era dos mais baixos e a generalidade dos indicadores de qualidade, eficiência e eficácia estava muito bem situada no ranking global da marca que inclui fábricas em várias geografias, na Europa (Espanha, França, Alemanha, Itália, vários países do Leste da Europa), América Latina ou Ásia.
O ambiente laboral, a forma como administração e Comissão de Trabalhadores negoceiam e se entendem, não é seguramente alheia a estes resultados.
Isto acontece há décadas e tendo como protagonistas vários directores-gerais de várias nacionalidades - alemães, um espanhol, dois portugueses -, o que indicia que mais do que as pessoas, as suas personalidades ou habilidades negociais, há uma cultura no grupo de envolvimento dos trabalhadores na gestão laboral que dá bons resultados.
Mas o segredo também está do lado dos trabalhadores, de quem os representa e defende os seus interesses: António Chora, o histórico líder da Comissão de Trabalhadores. Não consta que Chora seja passivo nessa sua tarefa, senão não seria reeleito sucessivamente pelos cerca de 3500 trabalhadores. Também já aconteceu uma proposta de acordo laboral negociada com a administração ter sido rejeitada por uma larga maioria dos trabalhadores, obrigando à sua renegociação, o que mostra que ali ninguém facilita na defesa de direitos e no cumprimento de deveres.
António Chora e os seus colegas sindicalistas estão certamente mais preocupados com a Autoeuropa, a sua sustentabilidade e a repartição justa de benefícios do que na criação de focos de instabilidade laboral ou social, reais ou fictícos, que possam abrir o Telejornal e contribuir para a impopularidade mediática dos governos. E prestam contas aos seus pares trabalhadores da empresa sem a preocupação de mostrar serviço político a qualquer Comité Central partidário ou à direcção de uma central sindical, como acontece com os representantes dos trabalhadores em tantas outras empresas.
A Autoeuropa é o exemplo mais mediático e de maior dimensão de que muito do nosso fado laboral não tem que ser uma inevitabilidade. Que a produtividade pode ser tão boa ou melhor do que na generalidade dos países, que a formação permanente é fundamental, que uma gestão que responda também aos anseios dos colaboradores, envolvendo-os, tem bons resultados, e que o maniqueísmo do "nós contra eles" é um disparate quando o que está em causa é a manutenção de postos de trabalho e o rendimento dos trabalhadores, a vitalidade de unidades produtivas e a sua competitividade global.
Num momento em que assistimos a conflitos laborais mal resolvidos - veja-se o desfecho do caso dos estivadores, que conseguiram essa coisa fantástica que é impedir as empresas de contratar novos trabalhadores - e a decisões tomadas a régua e esquadro que vão custar muito dinheiro aos contribuintes - a sinuosa gestão do regresso às 35 horas no Estado - os protagonistas da Autoeuropa podiam ajudar ainda mais o país ensinando como se fazem as coisas bem feitas. Bem sei que a missão deles é construir automóveis, mas só lhes podemos ficar gratos por mais esse esforço adicional.
Outras leituras
- Por falar em trabalho, aqui está a discussão sobre as 35 horas. Muita teoria e ideologia, pouca flexibilidade e estudo.
- Marcelo, lentamente, a começar a marcar a agenda. Isto vai ser muito mais do que banhos de multidão e simpatia distribuida a todos.
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