Hillary ganha a Trump mas não ganha ao trumpismo que encabeça uma muito relevante alteração política alimentada pelo ressentimento e pela fúria de tantos perdidos na crise. São muitos milhões de revoltados que acusam as elites políticas de se governarem com o turbocapitalismo que deixou na margem tanta gente.
O que está em alta e que faz o futuro não ser previsível é o mesmo movimento antipolítica que levou à maioria do Brexit no Reino Unido, e que conduz a inquietantes derivas egoístas como a de Orbán na Hungria, a do Movimento Cinco Estrelas em Itália, a guiada pela família Le Pen em França ou a do Partido dos Finlandeses. Todos fortemente isolacionistas embora num tempo em que, mais do que nunca, precisamos de estar juntos a cooperar. Os que defendem a rutura querem ir para onde? Querem construir o quê? Já basta de Erdogan, Putin, Maduro, Duterte ou Al Sisi.
O escritor Nobel Mário Vagas Llosa lastima, no livro "A Civilização do Espetáculo", que os media se tenham resignado a participar na "frivolização" da política e que se tenha diluído a fronteira entre o jornalismo sério e o de escândalos. O populismo é alimentado há décadas nos EUA em tertúlias radiofónicas que em antena aberta, por 24 horas em cada 24, expandem a raiva do discurso de caverna. O aparecimento, em meados da década de 90, da cadeia Fox News em televisão ampliou o poder de fogo para o bombardeamento populista. O sensacionalismo misturado com o populismo tornou-se aditivo para o espetador. Milhões de pessoas que perderam a esperança - em revolta contra dirigentes políticos que não só não revelam competência para cuidar de quem está excluído como sobre quem paira a suspeita de corrupção - encontraram refúgio nesses canais populistas. Passou a ser verbalizado e potenciado no espaço público um rancor sobre os poderosos que os media tradicionais não se atreviam a expor. Esta engrenagem levou à confusão, entre rumor, especulação e notícia. As redes sociais, naturalmente, não evoluíram como alternativa de seriedade rigorosa.
Políticos de má colheita têm dado argumentos de sobra a esses canais que difundem o egoísmo e o ódio. Acontece nos EUA, na Europa e em todos os continentes, num momento em que o jornalismo que conquistou reconhecimento como rigoroso tem estado debilitado pela transformação profunda resultante de três fatores que, conjugados, geraram a tempestade: globalização, crise económica e novas tecnologias. Parece estar a começar o período de saída da turbulência, com os media tradicionalmente de referência a encontrarem um novo modelo para que o jornalismo desenvolva o diálogo entre as várias versões e as várias leituras possíveis dos factos de domínio comum. Precisamos de investigação jornalística e reportagem feita com rigor e ambição, que nos traga entendimento do que está a acontecer e que nos acrescente mundo.
Os media que nos EUA são baluarte do jornalismo nunca nos últimos 25 anos deixaram de escrutinar o casal Clinton. E estes puseram-se a jeito para ficarem debaixo de fogo: quando é revelado que Bill e Hillary cobraram 154 milhões de dólares por 728 conferências desde o momento em que deixaram a Casa Branca; e que a Fundação Clinton, agora com dois mil colaboradores, recebeu, só no ano de 2014, 338 milhões de dólares em doações, sendo 54 milhões provenientes de autocracias como a Arábia Saudita e o Kuwait. A má imagem, as críticas e as suspeitas ficam à mercê.
A imprensa mais populista há muito que demoniza os Clinton, com tanta artilharia que há mesmo quem assuma estar convencido que Hillary é capaz de matar ou mandar matar para atingir os seus fins.
A eleição resolve-se hoje, mas a guerra está para continuar. Trump, provavelmente, vai já na próxima madrugada atirar culpas da sua esperada derrota para a onda de hostilidade contra ele em toda a imprensa americana, numa quase unanimidade sem precedentes. Felizmente para todos nós, nestas últimas semanas a imprensa dos EUA cumpriu o seu dever – embora depois de algumas concessões iniciais à criatura de telerrealidade de Donald Trump – e esclareceu os cidadãos de modo a que na próxima madrugada não se corra o risco de acontecer o que Paulo Portas ontem definia como o de “ganhar o pior”. Certamente não vai acontecer. Antes uma presidente politicamente competente, que sabe onde está o mundo e o que é necessário ajudar, e que tem consciência de que as alterações climáticas são uma ameaça, do que uma criatura com discurso ignorante que capitaliza a antipolítica e a raiva.
Também a ter em conta:
James Nachtwey, com 68 anos, é um missionário do jornalismo na forma de reportagem fotográfica. Ele é uma testemunha do sofrimento humano. Não se cansa de repetir que para contar bem o que vê precisa de ter os olhos, a mente e o coração sempre bem abertos. E conta-nos assim.
Ainda bem que temos um Papa que se escandaliza com o sistema que salva bancos mas que se furta a salvar os refugiados.
Primeiras páginas escolhidas neste dia em que é medida a força eleitoral do populismo nos EUA: esta da The New Yorker, esta do La Razon, esta do La Repubblica, esta da Veja, esta do Die Tageszeitung, esta do Morgenpost, esta do La Jornada, e esta do Público.
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