Imagine-se os tempos do muito antigamente (descontando a parte de haver passwords e computadores). Um nobre, acompanhado por um grupo de esbirros, entra por um órgão administrativo do Reino, por exemplo, na Repartição de Finanças e diz: “Passem para cá as passwords dos computadores e ponham-se na rua. Vamos vender o edifício, mas antes disso queremos bisbilhotar as contas de toda a gente!”. Em seguida o mesmo nobre, Lorde Musk, entra pelo Quartel General e manda todos os nobres para os seus castelos e tranca as instalações: “Vocês não cumprem todas as ordens do Rei, por isso não são de confiança; rua!”  (Aqui podemos perfeitamente imaginar um filmes dos saudosos Monty Python)

Enquanto isso, o Rei Trump despede 17 inspetores federais e dá ordens para punir, perseguir e perturbar pessoas com quem tem “contas antigas”. É o caso de um dos mais prestigiados escritórios de advogados, Covington & Burling, que teve a temeridade de fornecer de graça o advogado que acusou o Rei de esconder papéis da coroa e outro escritório, Perkins Coie, por ter duvidado da eleição de 2016. Na primeira punição, o Rei garatujou nas margens do documento: “vamos por o maluco do Jack Smith a cantar!” [Jack Smith foi o procurador que acusou Donald Trump e demitiu-se poucos dias antes da sua tomada de posse]

Bem, acho que já percebeu onde quero chegar, não preciso de mais analogias ao Antigo Regime. As comparações entre Trump e um Rei abundam por aí, pelo facto de recentemente o Supremo Tribunal ter regulado especificamente que ele não pode ser acusado sequer (e muito menos condenado) de tudo o que faça em nome do seu poder executivo. Entre Trump e a monarquia absoluta, o único travão são os tribunais estatais - se estes quiserem. E é estranho que ele não perceba, depois dos processos em que esteve metido, que as pessoas precisam de advogados para se defenderam - mais do que isso, têm direito constitucional a tê-los.

Só a título de exemplo, aquele que viria a ser o segundo Presidente, John Adams (1797-1801), representou os soldados ingleses acusados do famoso “massacre de Boston” (1770), porque achava que qualquer acusado, mesmo inimigo, tinha o direito de ser julgado com justiça. Quarenta e sete presidentes mais tarde, Trump escolheu os advogados que o representaram em litígios, Pam Bondi (no caso de impeachment), Todd Blanche e Emil Bove (no caso do assédio sexual) para dirigir o seu Departamento de Justiça.

Não é preciso ir buscar todos os casos em que Trump, em dois meses como presidente, deu ordens contrárias ao funcionamento habitual do aparelho de Estado, infringiu normas, e mostrou uma clara disposição para mudar completamente as atribuições e objectivos desse aparelho. Temos aqui uma lista dos primeiros 100 dias, da qual apenas escolhemos alguns exemplos:

  • Saída da Organização Mundial de Saúde
  • Saída dos Acordos de Paris sobre Alterações Climáticas
  • Sanções ao Tribunal Criminal Internacional
  • Anulação da cidadania automática por nascimento a filhos de imigrantes sem documentação.
  • Limitação dos géneros a masculino e feminino (com exclusão de bi-sexual, transgénero, etc)
  • Criação do DOGE, Departamento de Eficiência Governamental, dirigido por um estrangeiro que lhe deu 280 milhões de dólares para a campanha eleitoral, Elon Musk, com autorização ilimitada para entrar onde quisesse e fazer as alterações que quisesse (fechar o departamento, despedir toda a gente, ter acesso a todos os passwords, vender o edifício)
  • Desmantelamento da USAID (Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional) um organismo instituído em 1961 para ajudar as populações dos países pobres ou menos desenvolvidos e recuperação de desastres naturais. Este organismo é considerado a melhor maneira de aplicar “soft power” a favor dos Estados Unidos e é supervisionado por um dos 17 Inspectores Gerais do Estado que foram despedidos por Trump.
  • Despedimento dos directores do Conselho Nacional de Relações de Trabalho, Conselho de Avaliação de Mérito, Comissão para a Igualdade de Oportunidades de Trabalho e o Conselho de Liberdades Civis e muitos outros. (Como o despedimento é ilegal, há várias acções a correr nos tribunais)
  • Oferta de despedimento com compensações a todos os empregados federais.
  • Paragem de trabalho da Agência de Protecção Financeira ao Consumidor.
  • Despedimento sumário de mais de duas dúzias de Procuradores Gerais de Justiça.
  • Entrega de uma lista de todos os agentes do FBI que trabalharam nos casos da insurreição de 6 de Janeiro (assalto ao Capitólio)
  • Proibição de contratar funcionários federais.
  • Despedimento de todos os funcionários federais estagiários. (Com menos de um ano de serviço.)
  • Remoção em todas as páginas impressas ou na internet de organismos públicos de dezenas de palavras, especialmente “transgénero”, DEI (Diversidade, Equidade, Inclusão) e “energia limpa”.
  • Perdão a todos os que foram processados ou condenados pelo ataque ao Capitólio a 6 de Janeiro
  • Eliminação do Ministério da Educação
  • Eliminação da EPA (Agência de Protecção do Ambiente)
  • Redução drástica dos meios do Departamento de Protecção aos Militares Desmobilizados

Esta lista, que não é nem pouco mais ou menos exaustiva, dá pelo menos uma ideia do radicalismo das medidas tomadas. Algumas, não incluídas aqui, como a substituição das direcções do FBI e da CIA, podem ter implicações irreparáveis no sistema de segurança do país (caso do FBI) e a colheita de informações importantes para os EUA no mundo.

Alem destes casos de “limpeza” do aparelho estatal, há outros referentes a protecções civis e perseguições públicas além, evidentemente, das posturas internacionais que são demasiados importantes para entrar nesta lista de “miudezas”, como é o caso da mudança de alinhamento da Ucrânia para a Federação Russa, o fim implícito na participação da NATO e das garantias de segurança a Taiwan e ao Japão - além das atitudes que ninguém percebe se são reais, piadas de mau gosto, ou medições da reacção internacional, como a anexação do Canal do Panamá e da Groenlândia.

Trump e Musk
Trump e Musk US President Donald Trump and Tesla CEO Elon Musk speak to the press as they sit in a Tesla vehicle on the South Portico of the White House on March 11, 2025 in Washington, DC. (Photo by Mandel NGAN / AFP)

Que eu me lembre, não há nenhum caso na História contemporânea, ou mesmo mais antiga, em que uma revolução tenha provocado num país mudanças tão radicais. Com certeza de que as revoluções de que nos lembramos, mesmo as mais violentas (como a de 1789 em França ou a de 1917 na Rússia) não levaram ao fechamento completo dos aparelhos de Estado nem ao despedimento de todos os seus funcionários; para um país funcionar precisa de milhares de pessoas anónimas a executar tarefas não explicitamente políticas nem que precisam de ser alteradas pela nova ordem social. Injustiças e vinganças, muitas com certeza; mas não é possível parar o dia-a-dia do fornecimento de actos médicos, policiais e administrativos que permitem a uma sociedade funcionar minimamente.

O que se está a passar nos Estados Unidos é extraordinário. Não estou a falar na sua situação internacional, que atinge o planeta inteiro, mas dentro do próprio país, em que mudanças por vezes sub-reptícias podem provocar resultados fatais. A súbita falta de controlos em certos sectores - tão diversos como na saúde, no sistema judicial e prisional, nas regras de conduta social, pode provocar efeitos inimagináveis.

Depois há os aspectos verdadeiramente surreais (literalmente) como o anúncio aos carros Tesla feito pelo Presidente da República no relvado da Casa Branca, a proposta de transformar Gaza num resort de férias, verdadeiras “macacadas” que carecem de qualquer respeito institucional.

Os tempos mudaram, não há dúvidas. Onde nos devemos colocar (individualmente) nestes tempos, é o problema de cada um.