A história é bastante simples: os despachos secretos que Sir Kim Darroch enviou para o Foreign Office (Ministério dos Negócios Estrangeiros inglês), foram parar às páginas do jornal Daily Mail. São notas enviadas por todos os diplomatas, de todos os Estados, para orientar os seus governos sobre como lidar com o país onde estão colocados. São escritos numa linguagem franca e amiúde pouco lisonjeiros para com os governantes citados. Embora opinativos, têm uma função prática e não se espera que omitam pormenores desagradáveis, uma vez que são, convém repeti-lo, secretos. Só o ministro e alguns altos funcionários têm acesso.
Quando, em 2010, o WikiLeaks começou a publicar milhões de documentos do Departamento de Estado norte-americano, muitos continham, evidentemente, comentários embaraçosos para os seus autores. Nenhum país visado se queixou; todos faziam o mesmo, faz parte da função.
Neste caso em concreto, Sir Kim afirma, entre outras coisas, que Donald Trump “irradia insegurança” e nunca se mostrará competente. Exactamente o tipo de apreciações que o Presidente não leva nada a bem, pois a sua susceptibilidade é famosa e notória. Sobre o Governo em geral, comenta: “Não acreditamos que esta Administração venha a tornar-se substancialmente mais normal; menos disfuncional, menos imprevisível, menos dividida em facções internas; menos diplomaticamente atrapalhada e inepta.”
(Um espírito cínico poderia ver este quadro no actual Governo britânico; que relatos fará o embaixador norte-americano do que se passa no Parlamento de Sua Majestade e em Downing Street?)
O que aconteceria com esta fuga de informação em tempos normais? Segundo os conhecedores das relações entre nações, nada. Um presidente deve ignorar as opiniões do corpo diplomático, pois está institucionalmente acima delas. Quando muito, Kim seria afastado de Washington discretamente, daqui a algum tempo, com uma desculpa qualquer. Aliás, nem seria preciso uma desculpa, porque este embaixador, ao fim de uma longa e prestigiosa carreira, reforma-se no fim do ano.
Mas os tempos não são normais, pelo menos no que toca ao protocolo estabelecido há séculos entre países. O Presidente Trump gosta de trocar insultos com gente de todos os escalões e sectores. Ainda há pouco publicou no Twitter poucas e más sobre o mayor de Londres, ainda no avião, prestes a aterrar para uma visita de Estado ao Reino Unido. Há muito que Trump e Sadiq Khan mantêm uma quezília muito pública.
No caso de Kim Darroch, mal saiu a fuga de informação, Trump lançou um tweet à maneira:
“Tenho criticado muito o modo como o Reino Unido e a Primeira Ministra Theresa May estão a lidar com o Brexit. Mas que confusão que ela e os seus representantes criaram! Eu disse-lhe o que devia fazer, mas ela decidiu outra coisa. Não conheço o embaixador, mas nos Estados Unidos não gostam nem têm uma boa opinião sobre ele. Não continuarei a tratar com ele.”
Ou seja, o Presidente simplesmente despediu o embaixador doutro país. Em tempos normais, os tais que já não o são, o Reino Unido defenderia o seu embaixador com unhas e dentes, certo ou errado. Onde já se viu, um estrangeiro a criticar um dos nossos?
Mas nestes tempos a coisa pia mais fino. A Grã-Bretanha está empenhada em conseguir de Trump um bom acordo comercial que compense a saída da União Europeia. Tão empenhada que, finalmente, contra a vontade expressa de muitas figuras públicas e da população, o convidou para uma Visita de Estado. Este acontecimento, coreografado ao pormenor, é uma das maiores especialidades dos ingleses, inventores da expressão “Pompa e Circunstância”. Ele são desfiles de coche, ele são jantares sumptuosos, ele são cerimónias espectaculares em palácios imperiais e salvas de canhão com 41 tiros. Sabendo que Trump adora ser apaparicado, durante os três dias da visita, começada a 3 de Junho, deram-lhe o tratamento completo, com direito a chá íntimo com a Rainha e conversas de palmadinha nas costas com toda a linha de sucessão ao trono.
Quem orientou os pormenores da visita foi Sir Kim Darroch, que ficou felicíssimo com a felicidade de Trump, mas não deixou de alertar, noutro relatório secreto, que com ele nunca se sabe quanto tempo dura a alegria.
Mas a questão mais surpreendente não é o natural desagrado do Presidente; o que nunca se viu foi o futuro Primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, mostrar uma lastimável ambivalência em relação ao caso. Entrevistado na televisão, recusou-se a defender Sir Kim. É evidente que, se já estivesse no cargo, o demitiria com a tal pompa e circunstância. O outro candidato a Primeiro-ministro, Jeffrey Hunt, que por acaso é o atual Ministro dos Negócios Estrangeiros, manteve a postura institucional, dizendo que Trump tinha desrespeitado a Grã Bretanha e a Primeira-ministra. “Os diplomatas norte americanos também dão as suas opiniões a Mike Pompeo, tal como os nossos”. Theresa May, que ainda ocupa o cargo que os outros dois disputam, também manteve o apoio a Darroch, usando, contudo, uma linguagem mais suave: “É um assunto lamentável, ele ter-se demitido. Temos uma enorme dividida de gratidão para com ele.”
Quem analisou sucintamente a questão, do ponto de vista britânico, foi a Ministra do Governo Sombra trabalhista, Liz McInnes.
Já menos surpreendentes são as razões que, segundo os comentadores, terão levado a esta fuga de informação. Trata-se de mais um episódio da luta entre brexiteers [pessoas favoráveis à saída do Reino Unido da União Europeia] e europeístas. Darroch, que já foi representante do Reino Unido em Bruxelas, é visto como um europeísta. Neste momento tão delicado em que o seu país precisa desesperadamente de um acordo com os Estados Unidos, não é conveniente ter um embaixador em Washington pouco empenhado nas negociações. E a melhor maneira de o eliminar é tornar públicos os seus relatórios (a que muito poucos têm acesso), matando dois coelhos numa cajadada: afastar um empecilho e agradar a Trump. Johnson, que também já foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade, certamente que é um dos poucos que conhecia os documentos. Daí a elucubrar que a coisa partiu dele, vai uma curta distância. Quanto à sua atitude perante a fuga de informação, David Cassidy, no “The New Yorker”, não poupa as palavras:
“Nos últimos dias, Johnson mostrou ser tudo menos um leão. Na sua negação propositada de defender Kim Darroch, agora ex-embaixador em Washington, e depois duma série de vitupérios característicos de Donald Trump, [a sua atitude] fá-lo parecer mais um cãozinho a lamber os pés do seu dono exigente e abusivo. Certamente que primeiros-ministros anteriores – inclusive Theresa May — têm usado uma linguagem subserviente para proteger as relações da Grã-Bretanha com Washington. Mas nenhum se mostrou tão obsequioso como Johnson, que nem sequer ainda chegou a Downing Street”
É interessante analisar como as relações entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos têm evoluído ao longo do tempo. Tudo começou muito mal, como se sabe. Os colonos ingleses radicados nas colónias viam com muito maus olhos o facto de pagarem impostos à Coroa britânica sem terem representação no Parlamento. No taxation without representation foi o que os levou a revoltar-se. Na década de 1770, com o Império Britânico bem estabelecido e a respectiva arrogância no auge, tais queixas da plebe, ainda por cima colonial, eram vistas com desprezo. O resultado foi uma guerra sangrenta em que os ingleses chegaram a incendiar Washington, em 1814. A tão cantada “relação especial” entre o Reino Unido e os Estados Unidos começou muito mal e só passou a ser citada muito mais tarde, quando a intensa imigração das ilhas, a língua comum e outros factores levaram a esquecer os insultos de parte a parte. (Tal como a famosa “aliança mais antiga do Mundo” entre a Grã-Bretanha e Portugal, só serve quando serve os interesses ingleses.)
Foi o caso das duas guerras mundiais, cuja versão oficial canta a tal “relação especial” que levou os americanos a ajudar logística e militarmente os ingleses. Na verdade, tanto no caso da Primeira Guerra Mundial, como no caso da segunda, outras razões houve, diferentes e demasiado complexas para desfiar aqui. Em ambas as situações a opinião pública e a Administração norte-americanas estiveram muito divididas sobre o assunto. Na Primeira, a decisão dos alemães de atacar navios neutrais que estivessem no teatro de operações, e que levou ao torpedeamento de cargueiros norte-americanos, fez virar a balança. Na segunda, foi o ataque dos japoneses, aliados dos alemães, que tornou a entrada inevitável.
Certamente que há uma simpatia entre os dois países, mas também há incontáveis episódios desagradáveis. Gradualmente, à medida que o Império Britânico ia perdendo brilho e território, a arrogância para com os norte-americanos, considerados em geral uns simplórios, deu lugar a uma pretensa igualdade que servia sobretudo aos ingleses.
Há com certeza muitos livros que tratam deste assunto, mas lembramo-nos de um em particular: “O americano tranquilo”, um romance do inglês Graham Greene passado no período em que os americanos substituem os britânicos na península da Indochina. Uma força que se esvai e outra que cresce ou, melhor dizendo, uma arrogância que a realidade obriga a transformar-se em subserviência.
O caso dos despachos de Sir Kim Darroch, um episódio menor em termos históricos, coloca à nossa frente como as relações entre países, tal como as relações entre pessoas, têm um equilíbrio sempre precário. Os protagonistas, centrais que pareçam, são afinal figurantes numa trama que se desenrola inexoravelmente.
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