F de FARMÁCIA
Não é só na farmácia: também no supermercado e no talho. Estamos cá fora, todos a uma distância considerável. Uns tentam ficar a um metro, outros a quatro, alguns têm máscara, outros levam luvas. Ninguém sabe exactamente o que fazer e há sempre olhares desconfiados: hum, aquele não leva luvas; ah, aquela máscara não serve para nada! E depois, a esta distância, conversamos, não conversamos? É difícil viver em sociedade quando as regras sociais mudam de um dia para o outro. Aliás, é sempre difícil viver em sociedade, mas agora é como se a sociedade fosse composta exclusivamente por gente insegura. O certo é que quase todos tentam fazer o melhor que conseguem. Devagar, a bicha vai avançando, entrando um de cada vez na farmácia... Passemos para a outra letra.
G de GALO
Os meus sogros estão em Ponte de Sor, fechados em casa. Com um quintal cultivado e muitos animais, a palavra «casa» tem um significado um pouco mais amplo do que por aqui... No outro dia, o avô António apontou o telefone ao galo e os meus filhos ouviram o famoso cacarejar — e ficaram aos saltos. Lá na cabeça deles estavam a correr naquele quintal, entre animais e plantas. Podia agora começar a perorar sobre o regresso às coisas simples da vida e não sei que mais, mas não foi nada disso: não foi a primeira vez que o avô lhes mostrou o galo. Mas foi a maneira possível, à distância de tantos quilómetros.
H de HISTÓRIAS
Com tanta gente fechada em casa como nunca se viu, todos queremos contar, escrever, inventar — e todos fazemos sugestões para ajudar os outros a passar o tempo. São tantas as sugestões que uma pessoa fica cansada só de pensar em tudo o que pode fazer. Confesso: o tempo esfumou-se. Em casa, com os dois miúdos a correr e o mundo de cabeça para baixo, tenho muito menos tempo. Até ler é mais difícil! Quem diria? Enfim, chega à noite, vou adormecer o meu filho mais velho e ele pede-me histórias com os colegas, na escola dele. Quer imaginar os dias normais. E eu conto as brincadeiras dele e dos colegas, enquanto ele adormece, mais calmo.
I de IRRITAÇÕES
Andamos nervosos. De repente, há uma bicha a caminho — parece-nos — da proibida praia. A polícia manda parar todos os carros, para perceber quem vai para casa e quem vai passear. Ficamos, claro, indignados da maneira como nos indignamos neste século: com um teclar furioso. Então andamos todos neste esforço de não sair do sofá e há quem queira ir molhar os pés? Depois, percebemos: a bicha foi provocada pela própria acção da polícia e a maioria daquelas pessoas estava apenas a voltar para casa, depois de um dia de trabalho — afinal, ainda há muitos que têm mesmo de sair de casa... O certo é que estas irritações, que nos tempos que já lá vão mereceriam dias de longos e furiosos comentários e indignações no Facebook e redes adjacentes, agora passam depressa. Temos mais que fazer — e há outras notícias a obcecar-nos.
J de JOGOS
As crianças só gostam de jogos electrónicos? Gostam muito, é verdade — e têm razões para isso. Mas gostam de muito mais: jogar à bola, conversar com os colegas, fazer tontices, dar saltos e piruetas sem parar. E correr. E rir. E ouvir histórias. Enfim, cada criança é diferente — mas poucas serão as que só gostam de uma coisa, ao contrário da caricatura que por aí circula. O meu filho, agora, até quer aprender a fazer gelados caseiros, por alguma razão que não percebo — e garanto que não fui eu que lhe dei a ideia, que sei tanto de fabrico de gelados como de epidemiologia.
Pois bem: vamos aos gelados! Para a semana conto, se a aventura couber nalguma das letras que aí vêm.
Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.
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