Como para quase tudo, os brasileiros também têm uma expressão feliz para o eterno fado dos mais desfavorecidos: “Pão de pobre cai sempre com a manteiga para baixo”. As crises podem afectar toda a gente. Mas os que estão económica e socialmente mais vulneráveis, precisamente pelo facto de o estarem, acabam sempre por sofrer um embate maior, venha ele de onde vier.
Com esta profunda crise que passámos não foi diferente e temos agora dados sistematizados que podemos analisar para lá do “achismo” e da reacção de facção ou de ocasião. A Fundação Francisco Manuel dos Santos divulgou a obra multimedia Portugal Desigual que vale a pena conhecer e que, entre outras, responde à pergunta “Quem perdeu mais com a crise?”. O período analisado é entre 2009 e 2014 e a conclusão é que a quebra efectiva de rendimentos foi maior (25% contra 12% na generalidade da população) no patamar mais baixo de rendimentos, até 3628 euros por ano.
Uma quebra que se deve essencialmente ao aumento do desemprego, já que este segmento não foi directamente afectado pelos cortes de salários ou pensões, como o estudo refere. E que não pode ser amortecida por prestações sociais reduzidas num Estado à beira da bancarrota.
Mas se não fosse assim seria certamente de outra forma, porque é a manteiga que dá sempre de caras com o chão sujo.
Agora foram os mais desqualificados e precários os primeiros a sofrer, através do desemprego. Mas há 30 anos, aquando do resgate de 1983-85, também tinham sido os mais pobres a sofrer com a perda de salário real, “comido” em grande parte por uma inflação que tinha chegado aos 30%. Sem poupanças, porque os rendimentos escassos fazem sobrar dias e não dinheiro no final do mês, com mais baixas qualificações e por isso menos ferramentas para encontrarem novos empregos, com vínculos laborais frágeis ou mesmo inexistentes, são sempre estes o elo mais fraco seja qual for o contexto. Já fomos resgatados com moeda própria e controlos de capitais e já fomos resgatados na zona euro e com menos instrumentos de política económica e orçamental à nossa disposição.
Eu acredito que a pobreza e as desigualdades são uma preocupação e prioridade para a generalidade dos políticos e dos partidos. Têm é caminhos muito diferentes para tentar chegar ao mesmo objectivo. Uns mais eficazes do que outros, certamente, no curto e longo prazos. E ninguém tem a “bala de prata”, a solução, a receita que tudo resolve.
Não tem sido, aliás, por falta de tentativas diversas que estamos a falhar. Já nacionalizámos e privatizámos, já regulámos e desregulámos. Já tivemos moeda que desvalorizávamos para ganhar competitividade e já tivemos moeda forte, emprestada da Alemanha. Já apostámos nas qualificações, já nos apaixonámos pela educação, já tivemos “choques” tecnológicos. Já criámos e multiplicámos prestações sociais. Já subimos impostos, todos e mais alguns, para pagar tudo e mais alguma coisa. Já atirámos com investimento público para a economia, um racional e necessário e outro delinqente, que nos deu auto-estradas onde não circulam carros, estádios de futebol onde não se joga à bola, aeroportos onde não aterram aviões. E já cortámos cegamente no investimento público. Já tentámos reduzir os impostos para as empresas e já recuámos na medida. Já tivemos leis laborais mais rígidas e menos rígidas. Já tivemos horários laborais mais longos e mais curtos. Já incentivámos o negócio bancário com bonificações de juros para a habitação e já tivemos que resgatar bancos com dinheiro dos contribuintes. Já apoiámos a construção e o imobiliário e já lamentámos o peso que o sector teve na economia. Já fizemos os livros brancos todos que há para fazer, já chamámos gurus internacionais para nos desenharem “clusters”, já tivemos os PIN - Projectos de Interesse Nacional. A lista, feita de memória, podia continuar. “Bandeiras”, “apostas”, “paixões” e “compromissos” é coisa que não nos tem faltado. Uns mais à direita, outros mais à esquerda. Todos a sucederem-se, muitas vezes revertendo os que vinham de trás.
O que nunca tivemos foram políticas estáveis que permitam o investimento, o crescimento e a criação de emprego. Que não mudem a cada ano, a cada ministro ou, com sorte, a cada legislatura. Que garantam um horizonte de estabilidade a pequenos e grandes empresários, a trabalhadores e pensionistas, a gestores públicos ou privados. Que dimensionem o Estado às capacidades da economia e que libertem o essencial dos seus recursos para as políticas sociais, a redistribuição de rendimentos e para as funções que só o Estado pode exercer.
Demoramos a aprender mas um dia lá chegaremos: a melhor maneira de proteger os que de facto precisam é o crescimento económico e o investimento permitido pela criação de riqueza. Só se distribui o que existe e não temos que ficar surpreendidos que a grande distribuição que ciclicamente fazemos é de pobreza e não da riqueza que não criamos.
Não sei quando nem como vai ser a próxima crise económica e social em Portugal. Mas uma coisa é certa: os mais desfavorecidos continuarão a ser os mais afectados e aqueles que mais dificilmente vão recuperar depois dela. Talvez seja então mais inteligente tentar evitar essa crise, não?
Outras leituras:
- O bom senso tardou mas acabou por chegar. Passos Coelho já não apresenta e credibiliza o livro que nunca teria sido escrito se a sensatez e a decência não estivessem tão mal distribuídas.
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