Os franceses adoram discutir e são um povo altamente politizado; quem vê os intermináveis debates na RTF/Channel 4, às vezes sobre temas bizantinos, conhece bem esta realidade. Não surpreende, portanto, que o confronto mais importante dos próximos cinco anos, para a França e para a Europa, tenha sido uma maratona como não se vê em nenhum outro país.
Sobre o que está em jogo já falámos aqui, há duas semanas, e na segunda-feira o nosso colega Sena Santos esmiuçou os cenários da eleição do próximo domingo. Para o não-eleitor português – que não vota em França, mas irá sentir os efeitos da votação – havia a possibilidade de ver na fonte, caso tenha o idioma na ponta da língua, ou seguir a tradução simultânea na CNN Portugal, confusa e ainda mais cansativa. Diga-se, em abono dos intérpretes, que é praticamente impossível traduzir com precisão duas pessoas que falam muito depressa, com um vocabulário especializado. Por exemplo, a TVA (IVA), um ”travailleur detaché” (imigrante de outro país da UE) ou o “amenagement des peines” (redução de pena). Para não falar das iniciais mil, dos bué de organismos e programas que organizam a vida do país.
Adiante. Vamos ao que interessa.
Para começar, a conclusão: não ganhou nenhum dos dois, no sentido de arrasar o outro, como aconteceu no famoso debate de 2015 em que a Marine se espalhou ao comprido.
Como seria de esperar, desta vez Madame Le Pen fez o trabalho de casa e não se saiu mal; mas, numa impressão geral, é muito mais emocional e menos minuciosa com os números do que Monsieur Macron (foi assim que eles se trataram, mesmo na gritaria), um tecnocrata de cabeça fria que sabe citar valores e percentagens.
Os entrevistadores/moderadores, dois jornalistas muito conhecidos que mal conseguiam fazer as perguntas, tal a velocidade e animosidade dos contendores, começaram por uma provocaçãozinha: “Porque acha que será um melhor Presidente?”
Boa pergunta. Le Pen mostrará respeito pelo povo e bom senso nas suas decisões, fomentando a “concórdia entre os franceses” – exactamente o que se pensa que ela não mostrará, nem terá, nem fomentará. Macron tornará a França mais independente e mais forte, uma “grande potência ecológica” – como, não se sabe, pois não o fez até agora. Ou seja, “bullshit” dos dois, desculpem o meu francês.
Seguiu-se um longo segmento sobre o que realmente interessa ao eleitorado, a redução do poder de compra e as receitas para o aumentar. Neste tema, como acontece em geral nos debates entre um presidente instalado e um pretendente a presidente, o primeiro fala no que fez, que são factos, o segundo diz o que quer fazer, que são intenções. É uma vantagem para o incumbente, tem obra para apresentar. Mas a vantagem do candidato é que pode mostrar os podres dessa obra e pode fazer as pessoas sonhar com amanhãs floridos.
A questão do poder de compra anda sempre à volta dos mesmos pontos: baixar os impostos, subsidiar o consumo, regular os preços. Aqui Le Pen mostrou o seu conhecido anti-antieuropeismo, ou melhor, anti-uniãoeuropeismo, pois, como salientou várias vezes, é a favor da “Europa das Nações” e contra a União Europeia. Para já, acabaria com o mercado europeu de electricidade, que ela acha que leva a que os franceses paguem mais pela energia do que se estivessem sozinhos. Macron quer permanecer no mercado e reformá-lo. Marine também é contra o IVA, o odiado imposto comunitário, e acabaria com ele. Onde compensaria esta perda de fundos, não disse. E regularia os preços, o que quer dizer que os fixaria por lei, um recurso velho e relho que parece bom no papel, mas que na prática nunca funciona bem em parte nenhuma. É aqui que o seu pendor autoritário contraria as realidades da governação, que ela nunca teve de enfrentar e que Macron, com cinco anos de boas e más experiências, sabe – e disse – que são lérias. Ele prefere “lutar contra o desemprego” (que político é que nunca disse isto?) e aumentar as reformas. Também “solidariedade na fonte”, outro chavão do parlapiê governativo.
Resumindo, contra a redução do poder de compra, nenhum dos dois foi convincente. A pandemia, a guerra na Ucrânia e as sanções inerentes se encarregam de manter o quadro para os próximos cinco anos, prometam o que prometerem.
E a guerra na Ucrânia foi o tema seguinte, onde, como se esperava, Le Pen ficou pior, muito pior. É contra o bloqueio das compras de gás e petróleo à Rússia, com a desculpa de que teme uma aliança entre a Rússia e a China. Macron foi buscar – era inevitável que fosse – o facto do partido dela ter recebido um empréstimo da Rússia, portanto tem o rabo preso a Putin. Mas, contra-argumentou a Madame, pediu à Rússia porque nenhum banco francês lhe quis emprestar, e não quis porque Macron, na altura ministro, não deixou. Ao que Monsieur contra-contra-argumentou que não teve nada a ver com isso e que o facto concreto é que a dívida é um ónus político. Marine aproveitou o tema, ingrato para ela, para mais uma vez argumentar contra a União Europeia: “Não há um povo europeu, há a união dos povos europeus”. E, a propósito, disse que não concorda que os trabalhadores vindos de outros países da UE paguem impostos nos seus países de origem, reduzindo o erário nacional.
Seguiu-se outra questão insolúvel, a idade da reforma. Le Pen quer fixá-la nos 60-62 anos, Macron quer reformas mínimas de 1.100 euros (aqui, o reformado português suspira...), mas não diz onde vai buscar o dinheiro. Quanto à situação desgraçada dos reformados, ela quer um sistema mutualista para os lares, ele pretende melhorar a ajuda domiciliária. O pendor autoritário dela vem sempre à superfície, embora tente apresentá-lo como um sorriso. Aprendeu muito, desde os tempos da Frente Nacional, mas basicamente vê sempre o Estado como a autoridade omnipresente.
No tema da ecologia, outro estropício, Le Pen tem uma ideia lírico-nacionalista: fomentar a produção local de bens alimentares, diminuindo o custo ecológico dos transportes. Menos importações de bens de consumo levariam a uma redução de 50% da emissão de gases, diz ela. Quanto a fontes de energia limpas, Macron salientou que 100% de nuclear é impossível, Le Pen lembra que a energia eólica é uma dor de cabeça para quem vive debaixo das turbinas. Enfim, a equação não tem solução.
No ensino, Macron quer combater o abandono escolar com mais ensino profissional, mais desporto e arte para os jovens. Le Pen daria um subsídio aos trabalhadores-estudantes e, lá vem o pendor, imporia a “disciplina e o respeito pelos professores”, estando subentendido que o problema são os emigrantes indisciplinados. Precisamente, Macron quer dar ajudas aos “mais desfavorecidos”, também subentendido que são os mesmos imigrantes.
E a imigração é o tema em que o desentendimento é total. Le Pen quer acabar com a “imigração anárquica e massiva, uma barbaridade, uma selvajaria”, repatriar os ilegais e os delinquentes, penas mais duras para os radicais. E acabar com as reduções de pena, que só favorecem a criminalidade. Macron diz que é preciso é reforçar os meios repressivos; nestes cinco anos contratou mais dez mil polícias, aumentou em 30% o orçamento da Justiça e criou mais 1.500 postos de trabalho administrativos para aliviar os magistrados. Ou seja, quer uma justiça mais eficaz, mas não quer apontar os canhões aos imigrantes em particular. O que levou à inevitável discussão sobre o Islão (visto que os imigrantes são, presume-se, maioritariamente islâmicos.) Marine quer proibir completamente o véu islâmico, sinal “da submissão da mulher, contrário aos valores da República”. Emmanuel diz que os valores da República são precisamente a liberdade de usar o que se quiser, inclusive o véu.
Passando por cima doutras minúcias e dos momentos em que os dois subiram de tom – sempre com civilidade, diga-se – é interessante notar que estivemos perante duas posições antagónicas, mas essencialmente conservadoras. A antiga “esquerda” (será que este rótulo ainda faz sentido?) desapareceu completamente do debate político. Os apelos populistas de Marine Le Pen são os que os “trabalhadores” (outra palavra em desuso) querem ouvir. Emmanuel Macron é um tecnocrata, que é o que os burgueses valorizam. (Hoje, todos são burgueses, na França dos franceses. Só os imigrantes excluídos, ou auto-excluídos, ainda não chegaram a tais aspirações. Mas também não votam.
O debate terá mudado as intenções de voto de alguns? É duvidoso. A chave agora está na escolha dos que votaram nos candidatos perdedores da primeira volta. Os de Zémmour irão certamente para Le Pen; os outros conservadores, não necessariamente. E a esquerda, vai cometer o disparate de se abster, dando a vitória à Madame, ou voltará a apertar o nariz e votar Macron? Domingo saberemos se a União Europeia sobrevive a mais este percalço no seu percurso.
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