O mês de dezembro começou com o nascimento da filha de Mark Zuckerberg e Priscilla Chan. Como prenda de nascimento, o milionário que fundou o Facebook e a sua mulher anunciaram ao mundo que iriam doar 99% das suas acções da companhia a uma entidade criada com o objectivo de “promover o potencial humano e a igualdade”.

O anúncio gerou as ondas de choque que uma notícia deste calibre é capaz de gerar, sobretudo na era… do Facebook. Houve quem elogiasse, houve quem criticasse, houve quem se sentisse inspirado e houve quem se sentisse ainda mais cínico em relação à humanidade. Não é todos os dias que um jovem milionário – Zuckerberg mal passou a barreira dos 30 anos – agarra em 45 mil milhões de dólares e diz que vai salvar o mundo. Mesmo que a redenção seja algo procurado desde sempre por vários outros milionários, a verdade é Zuckerberg é muito novo, muito rico e muito metediço nos assuntos do mundo. Mesmo comparando com o seu ídolo de adolescência, Bill Gates, tudo isto parece acontecer cedo demais.

Mas vamos por partes, porque o tema está longe de ser binário – desculpem, pessoas do facebook ávidas por atacar ou defender sem margem de dúvidas o que quer que seja.

Esta é uma notícia de uma decisão pessoal, fiscal e política. E, pelo caminho, é também uma decisão moral e financeira, duas palavras que dificilmente poderiam ter mais atrito.

Comecemos pela pessoal. Zuckerberg e a mulher foram pais pela primeira vez. Têm há poucos dias nos braços um ser minúsculo que subitamente se tornou o centro do mundo. Atirem-me pedras, chamem-me totó – posso viver com isso. Mas quem de vocês, pais e mães, não olhou para os filhos e pensou, não uma, mas muitas vezes em tudo o que faria para os proteger dos maus? E os maus são a doença, a violência, a injustiça, o fim do planeta, escolham. Quem de vocês não desejou não uma, mas muitas vezes, poder corrigir o mundo, concertar todas as avarias e assim garantir uma vida feliz àqueles por quem faremos sempre tudo?

A diferença entre nós, comuns mortais, e a família Chan-Zuckerberg é que eles têm 45 mil milhões de dólares de que não precisam para as despesas da casa. E com esse dinheiro nas mãos é fácil, é tentador e é justo que se pense em mudar o mundo para o oferecer a um filho que acabou de nascer. É lírico, é utópico, nunca nenhum dinheiro chegará para isso tudo, mas com 45 mil mil milhões já se começa qualquer coisa.

Têm mais pedras por aí? Quando se chega aos 31 anos e já se criou um império com mil milhões de seguidores e se tem uma conta bancária com mais zeros do que alguma vez se poderia imaginar, parece-me natural que nos ocorram alguns pensamentos. Há uma altura em que mais mansão menos mansão, mais carro menos carro, mais ilha menos ilha, a coisa se torna um pouco maçadora e repetitiva. Sim, eu sei, é inimaginável para o comum dos mortais que já não se saiba onde mais gastar dinheiro, mas pelo menos admitamos que é possível.

Além de que, quando já se realizou todos os sonhos de infância, loucuras de adolescência e caprichos, se tivermos dois dedos de testa, algumas questões vão começar a inquietar-nos. A primeira inquietação é, provavelmente, pessoal e egoísta. Tanto dinheiro e, ainda assim, todos os dias morrem pessoas por doenças que assustam, intimidam, recordam a nossa fragilidade. Vencer a morte e a doença através da ciência é, por isso, uma tentação mais que natural de quem tem 45 mil milhões de que já não precisa. Comprar o futuro é o último poder. Diz a carta de Zuckerberg e Chan à filha e ao mundo: “A medicina só é efectivamente uma ciência há menos de 100 anos e já assistimos à cura de várias doenças e bons progressos noutras. (…) à medida que a tecnologia acelera, temos uma hipótese real de prevenir, curar e tratar todas as doenças ou pelo menos a maioria nos próximos 100 anos”.

Além de vencer a doença e adiar a morte, emendar o mundo está ao alcance de quem tem 45 mil milhões para gastar na educação, no ambiente, na justiça social. Porque se tem dinheiro e se tem consciência, podemos realmente influenciar o destino do mundo… Uau, e esse é um poder que bólide algum, extravagância alguma nos pode compensar.

Chegamos então aos temas financeiros e fiscais. Está tudo cá. Zuckerberg e a sua mulher podem querer salvar o mundo para a sua filha Max mas, pelo caminho, encontraram uma forma legal e robusta de proteger os seus investimentos e protagonizar uma extraordinária campanha de marketing pessoal.

Ao transferir 99% das acções do Facebook em sua posse para uma sociedade de responsabilidade limitada, o casal garante várias coisas e, como escreveu o New York Times, passa o dinheiro de um bolso para o outro. Ou seja, não perde o controlo e não tem de se submeter às regras que, por exemplo, teria se constituísse uma fundação. Numa eventual fundação Zuckerberg, uma percentagem dos fundos teria de ser alocada todos os anos e a forma de aplicar o dinheiro teria de ser escrutinada de forma transparente. Numa sociedade de responsabilidade limitada, Zuckerberg e a mulher são donos e senhores de toda e qualquer decisão sobre o seu dinheiro.

Adicionalmente, esta forma jurídica permite uma maior amplitude de acção. É, em simultâneo, uma empresa e uma joint-venture com terceiros. Permite o investimento em empresas sociais (organizações que actuam no território social mas que têm fins lucrativos, mesmo que o lucro seja avaliado em parâmetros não convencionais) e em causas políticas.

E depois, claro, há os benefícios fiscais. Nesta forma societária, o casal Chan e Zuckerberg não terá carga fiscal adicional e será taxado como indivíduo. Além disso, em caso de processo legal contra a empresa de responsabilidade limitada, os activos de Chan e Zuckerberg ficam, à luz da legislação americana, fora de qualquer disputa.

Mas o melhor está por vir – devil is in the detail. Se a nova empresa ‘social’ de Zuckerberg doar fundos para causas sociais, recebe uma dedução fiscal como qualquer outro cidadão. Mas, na realidade, pode fazer bem mais do que isso. Pode doar os ganhos decorrentes da valorização das acções do Facebook que lhe foram atribuídas e aí terá uma dedução equivalente ao preço de mercado dos títulos sem que seja aplicada qualquer imposto adicional. Simpático, muito simpático, principalmente porque a família Zuckerberg pagaria bem mais de imposto caso tivesse, simplesmente, as acções na sua conta bancária. O dono de uma das maiores fortunas do mundo pode, assim, simplesmente, não ter de pagar impostos por ela. É a América no seu esplendor.

E eis que chegamos à política.

"The times, they are changing". Bem mais que Bob Dylan poderia antecipar. A forma como os indíviduos e as empresas influenciam as decisões que governam o mundo é hoje um dos tópicos quentes em qualquer agenda política. Na América, este é um tema de heróis e vilãos, bem mais do que na Europa. Basta olhar para Espanha, onde um dos homens mais ricos do mundo, Amancio Ortega, dono da Inditex que detém marcas como a Zara, sendo 15 mil milhões de euros mais rico do que Zuckerberg, não tem uma intervenção social nem de longe, nem de perto semelhante. Porquê? A economia explica e a cultura também. Começa-se pelo facto de os benefícios fiscais serem muito mais reluzentes nos EUA do que no Velho Continente. Depois, do outro lado do Atlântico, há mais ricos-muito-ricos, há uma nova geração de ricos-muito-jovens (a geração Sillicon Valley) e, sendo uma sociedade que deixa as pessoas muito mais à sua sorte – o Estado social é uma extravagância europeia –, é também uma sociedade que participa mais na construção da sorte. O que faz com que a inovação social seja um tema forte e que mobiliza hoje muitos dos protagonistas dos grandes negócios tecnológicos. Se conseguiram encontrar os buracos no sistema que lhes trouxeram fortunas, também se sentem capazes de encontrar soluções para a miséria humana nas suas várias dimensões.

O tema está longe de ser pacífico e estes novos milionários estão longe de ser heróis de capa e espada. São produto da mesma sociedade que gera os seus marginalizados, aqueles que se prontificam a socorrer quando se encontram sentados em cima de muitos milhões. O escritor afro-americano Teju Cole protagonizou uma dos textos mais emblemáticos sobre esta nova Era do Bem e cunhou o termo Complexo Industrial do Salvador Branco. "Da (Goldman) Sachs, à Invisible e à TED, a indústria que mais cresce nos EUA é o Complexo Industrial do Salvador Branco (…) O salvador branco apoia políticas brutais de manhã, funda instituições de caridade à tarde e recebe distinções à noite".

Mesmo que não goste do termo, Zurckerberg revê-se certamente neste papel do ‘salvador branco’. Como também se deverá rever no lema de que Deus manda-nos ser bons, mas não nos manda ser parvos. A verdade é que a discussão sobre todo este novo dinheiro e toda esta nova miséria – seja a do desemprego, seja a da guerra ou da fome – é bem mais ampla do que os meros 45 mil milhões do fundador do Facebook. Nos Estados Unidos como na Europa, é preciso pensar em novas formas de salvar o mundo. Sim, é sentimental, mas porque também o prometemos aos nossos filhos.

Tenham um bom fim de semana!

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