As peripécias destes 290 dias (Trump prestou juramento a 20 de Janeiro de 2017) davam para escrever um livro – aliás, já se escreveram vários, em tão pouco tempo. Só os seus tweets diários (que se tornaram a marca da gestão e personalidade, e são seguidos por 42.174.152 pessoas) já somam 36.340, a uma cadência de treze por dia (números de ontem, contados a partir de 2009).
Trump sempre se considerou um outsider do Partido Republicano (PR), e só o desatino e as hesitações dos influentes partidários, que começaram as primárias com 17 candidatos, permitiram que um “outsider” com muitos valores antagónicos aos valores morais do partido conseguisse a nomeação. E desde então, à medida que Donald vai mostrando a sua personalidade narcisista incontrolável e desinteresse pelos objectivos do Partido que não coincidem com a sua visão, o PR tem assumido uma postura dúbia e desconfortável; apoia-o no que lhe interessa, ignora-o no que não lhe dá jeito.
A posição do PR é bastante clara: enquanto Trump estiver na Presidência, por mais inconveniente que se mostre e mais inconsistências que apresente, permite ao partido avançar com a sua agenda de reformas conservadoras – agenda essa que estava há décadas suspensa, à espera precisamente de um momento como este, com uma maioria nas duas câmaras do Legislativo. Enquanto os EUA e o mundo se espantam e discutem as idiossincrasias do egocêntrico impulsivo, os legisladores discretamente vão mudando as leis criadas nas décadas liberais, apoiados pelas nomeações quase surreais de Trump. Um exemplo, entre muitos: Scott Pruit, escolhido para dirigir a Agência de Protecção Ambiental (EPA), durante a época em que foi Procurador Geral de Oklahoma notabilizou-se por... processar a EPA em nome de grandes empresas poluidoras. Trump não se limitou a sair dos Acordos de Paris; também está a desmantelar esta agência, para alegria dos republicanos ligados aos interesses económicos que mais pagam as restrições ambientais.
Basta ter a paciência de ler a abundante legislação que sai diariamente do Congresso para perceber como se está a dar um recuo colossal em legislação do trabalho, protecção das minorias, garantias dos trabalhadores, e muitas outras áreas em que a Europa e o Canadá, mesmo antes desta legislatura norte-americana, já estava quilómetros à frente.
Contudo, ultimamente, as incongruências de Trump têm levado a que mesmo muitos congressistas republicanos se tenham distanciado do Presidente. Mas fazem-no sempre pouco à vontade, entalados entre a necessidade de agradar ao seu eleitorado e medo de cair na ira do Donald, as duas condições para que possam recandidatar-se quando chegar a sua vez. (Nos EUA as eleições legislativas são divididas em várias etapas, com substituição diferida dos congressistas.)
Mas é no plano internacional que a Presidência tem marcado uma diferença radical quanto ao papel dos EUA. Em termos gerais, a partir de 1945, os Estados Unidos tinham montado um sistema de poder universal que assentava, resumidamente, em tratados de livre comércio, poderio militar inigualável e articulação dum sistema de globalização económica. A palavra chave era “cooperação”, embora essa cooperação por vezes fosse imposta à força. Com Trump e o seu “America First”, o país abandona o papel de árbitro mundial e passa a defender o nacionalismo – primeiro nós, os outros que se lixem. Os parceiros de longa data, especialmente a Europa, assustam-se com esta mudança. Os países do Oriente que contavam com a protecção americana contra a influência da China não estavam preparados para ela; e os vizinhos e parceiros íntimos, Canadá e México, receiam ser prejudicados.
Para toda esta desactivação internacional “egoísta”, Trump tem como justificação uma agenda nacionalista de reconstruir a indústria norte-americana, a começar pelos recursos naturais “sujos” (carvão e petróleo) e a acabar na manufactura industrial que entretanto a globalização levou para outras partes. Em vão os especialistas de todas as áreas e cores explicam que não há retrocesso no processo da sociedade pós-industrial; Trump mantém a sua agenda apesar de, nestes 290 dias de presidência, não ter conseguido nenhum dos seus objectivos. Mesmo o fechamento de fronteiras aos imigrantes tem sido sucessivamente chumbado pelo Judiciário.
E quem está a sofrer mais, dentro do país, são precisamente os milhões de imigrantes. As histórias de terror sucedem-se, como a da miúda de 10 anos que foi presa quando seguia de urgência para o hospital. Imigrantes radicados há décadas no país, com famílias constituídas, têm medo de sair de casa e ser apanhados nas constantes operações policiais.
Por outro lado, as organizações conservadoras, de direita e mesmo fascistas, sentem-se revigoradas e passam ao ataque. A polícia, equipada com armamento de guerra, está mais violenta e inimputável. O problema da venda indiscriminada de armamento à população civil, cada vez mais longe de se resolver, provoca o desgaste constante dos tiroteios e massacres.
A comunicação social do país, considerada “o inimigo” pelo Presidente – um facto inédito nas democracias ocidentais – está estupefacta com a perda de qualidade democrática de instituições que se consideravam inabaláveis. Há um fosso crescente entre as elites intelectuais e a massa de trabalhadores pouco qualificados e mal pagos – o grosso da população, num país sem segurança social nacional nem grandes protecções aos mais fracos.
290 dias depois da tomada de posse de Trump, os EUA estão mais divididos e radicalizados internamente, e mais enfraquecidos internacionalmente. É uma realidade que os apoiantes do Presidente se recusam a reconhecer, mas está a vista de todos.
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