Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.
Quando era pequenina, vivia nas longínquas montanhas da ilha de Santo Antão, em Cabo Verde. Lembro-me, como se fosse hoje, de aprender com os meus pais, religiosos fervorosos, a ter de ser uma jovem exemplar. Que não usava decotes… que não mentia em momento algum… que tinha de tirar boas notas e comportar-me bem, em todos os contextos. Nas reuniões religiosas, era-nos incutido que, se não agíssemos como fiéis seguidoras destas normas colectivas, um dia viria o Armagedon e sucumbiríamos nesta assustadora destruição.
Até que a adolescência, e a irreverência, começaram a vir ao de cima e passei a fazer perguntas às quais os meus pais não estavam preparados para me responder. Tão-pouco encontrava resposta na famosa Bíblia. «Mas o Armagedon nunca mais chega»?; «Até quando temos de viver em função do incerto?», perguntava-me, já cansada de ser uma filha exemplar.
Sim, porque aquele pavoroso Armagedon varreria todos os males da face da Terra e traria uma Nova Era onde, finalmente, os bons viveriam num paraíso, longe do sofrimento, doenças e pestilência. Sentia-me a ser lentamente formatada, pelos meus pais e pelos anciãos da congregação, ao ritmo dessas pessoas temerosas, mas que sobreviveriam.
Lá cresci. E a irreverência cresceu comigo. Ganhei asas, libertei-me de todas aquelas crenças limitadoras e dei um novo significado à minha própria vida. Não podia continuar a viver escrava de um Novo Mundo que, um dia — e que eu não sabia quando —, chegaria!
Passaram-se quase 15 anos desde que deixei de atribuir qualquer significado ao Sr. Armagedon. Porém, a vida é irónica. Não é que na minha primeira semana de confinamento, algures no mês de Março, ao telefone com a minha mãe, deixei escapar: “mãe, se calhar é o Armagedon que chegou!”. Ela sorriu, mas logo ripostou: “não brinques com coisas sérias, filha! Isto é mesmo muito mais grave do que pensamos.”
Sim, isto é muito mais grave do que pensamos. É claro que eu só estava a usar o meu humor e a ironia para arrancar um sorriso à minha mãe, ainda que virtualmente. Mas, desde esse dia, tenho pensado muito como será o mundo pós-covid. Nesta que é (sim!) uma nova era. E onde os meus filhos — agora tão pequeninos — irão viver.
Quando contabilizarmos todas as perdas, todos os prejuízos, todos os efeitos nefastos desse bichinho invisível — e que detesto chamar pelo seu nome —, no meio de tanta dúvida, a única certeza que teremos é de que o mundo nunca mais será o mesmo.
Será que esse bichinho é o Armagedon?
Esta «nova era» será um mundo no qual só os mais resilientes sobreviverão. Um mundo onde apostarmos no nosso desenvolvimento pessoal deixou de ser uma modernice, para passar a ser das ferramentas mais valiosas que podemos ter.
As doenças de foro mental ganham proporções exponenciais devido ao isolamento. Enquanto uns se sentem privilegiados, por estarem em isolamento no conforto das suas casas — e queixam-se que os filhos estão a ser uns chatos —, outros desesperam e recorrem ao Banco Alimentar, para garantir apenas o dia de amanhã.
Enquanto umas reclamam que não têm quem lhes faça as unhas ou a depilação, lhes limpe a casa ou o escritório, outras desesperam porque deixaram de ter aquela única fonte de rendimento, que era exactamente fazer as unhas ou limpar a casa dos outros.
E é aí que eu vejo esperança. Vejo esperança na solidariedade e na valorização das coisas mais simples da vida. No pós-covid, seremos muito mais humanos. E se não o formos, é porque somos uns casmurros!
Se não valorizarmos, mais do que nunca, os profissionais de saúde que estão a sacrificar as suas vidas por nós, é porque não aprendemos a lição. Se ralharmos com os educadores dos nossos filhos, porque descuraram por um segundo, é porque não somos merecedores desta segunda oportunidade!
Vejo positividade em tudo e é assim que quero ver o futuro: difícil, porém risonho e muito mais solidário e igualitário. Um novo mundo onde os meus filhos não terão medo do Armagedon, porque esta pandemia veio mudar o comportamento de toda a humanidade e é urgente sabermos interpretar o nosso papel enquanto agentes de mudança.
Uma pandemia que trouxe com ela um legado e várias aprendizagens. Eu não sei como viverás o teu novo mundo mas, quanto a mim, se eu sobreviver, e mesmo não tendo cumprido todo aquele script que a religião me ensinou — que era factor sine qua non para ser merecedora de uma nova era — percebo que serei uma pessoa muito melhor, porque tenho aprendido e apreendido todos os ensinamentos que esse bichinho invisível nos trouxe.
Quero acreditar que muitas das aprendizagens serão positivas, para todos e todas. Valorizaremos muito mais uma tarde no parque com os nossos filhos, do que aquela viagem de sonho a Bali para nos reencontrarmos connosco mesmos. Agora é a hora. Agora é a hora para mergulharmos nas nossas profundezas e libertarmo-nos de tudo o que já não nos serve e que não queremos levar connosco no regresso ao mundo novo.
E enquanto não entramos neste novo mundo, e somos obrigados a usar máscaras para nos protegermos, aproveitemos a oportunidade para nos libertarmos das máscaras que já não nos servem.
Agora é a hora para ligarmos àquela amiga que não ligamos há séculos, ficarmos experts em meditação, porque finalmente percebemos que, durante a vida toda, não parámos vezes suficientes para agradecer o privilégio que é podermos apenas respirar (sem um ventilador).
Como é que será o mundo após o confinamento? Difícil! Diferente! Incerto! Mas com uma única certeza: sairei à rua, vou cantar, dançar e regozijar como se não houvesse amanhã! E vou dizer ao sr. Armagedon: Já não tenho medo de ti.
*Evódia Graça escreve segundo o antigo acordo ortográfico
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