Na Guerra Fria, os espiões sentavam-se ao balcão de bares de hotéis à uma da manhã e falavam em surdina. Na Guerra de 2022, os espiões sentam-se em painéis de canais informativos à uma da manhã e berram desalmadamente. O James Bond da Wish, o George Smiley da feira, o Dusko Popov dos casinos online, Alexandre Guerreiro — antigo analista do SIED — tem surpreendido muitos pela facilidade com que tem entrado pelas nossas casas dentro. Porém, ao contrário do que é habitual nos espiões, não se esconde sorrateiramente atrás de um reposteiro, exibe-se antes com bazófia na televisão por cabo. É um modus operandi algo duvidoso, numa profissão tão dependente do recato.
Um espião que tenha um desejo incontrolável de ser figura pública é como um piloto que tem vertigens: por muito que tenhamos compaixão pela patologia, é difícil acreditar que seja bom no seu trabalho. Mais, porque é que um ex-espião haveria de ter a ambição de se tornar comentador televisivo? É que a espionagem é um ramo cool, ao passo que o "comentariado" é um setor muito pouco sexy. Nenhuma criança do recreio diz “quando for grande quero ser comentador residente de um canal informativo”. Ser espião é um emprego que tens de esconder da família, já ser comentador residente num canal informativo é um emprego que queres esconder da família (algo que que é impossível, pois és comentador residente num canal informativo).
Há pouca produção literária sobre tudólogos, mas há muita sobre espiões. Somos todos do tempo colectivo em que os espiões cultivavam sobretudo a discrição. Não me parece que John Le Carré tivesse interesse em contar a história de um operacional cuja missão secreta passasse por irritar quotidianamente o cidadão José Milhazes. Por outro lado, o próprio Le Carré desmente esta ideia de que os espiões não querem protagonismo, uma vez que, na qualidade de ex-MI5, decidiu optar pela bem menos camuflada carreira de autor bestseller e por fazer recorrentemente cameos em filmes baseados nos seus livros. Portanto, é sensato termos dúvidas quanto a Alexandre Guerreiro: ou se torna no novo fenómeno político criado pela televisão informativa que ninguém requisitou ou se torna no novo fenómeno literário no género do romance de espionagem que toda a gente adora. Ou no novo Ventura ou no novo Le Carré. Escolham vocês.
Alexandre Guerreiro de modo algum corresponde ao arquétipo do espião de tuxedo e martini na mão que viaja o Mundo. Tem sim ar de funcionário da bomba de gasolina que manda uns bitaites arriscados sobre geopolítica. Tenho a sensação de que Alexandre foi demasiadas vezes barrado no Kremlin, a discoteca da 24 de julho, pelo que dedicou a sua vida a conseguir que lhe estendessem a passadeira no Kremlin, a residência do Presidente Putin. É certo que tanto a gasolina como a opinião estão caras, mas não sei se devemos prestar-lhe tanta atenção só porque fala barato. Não nos podemos esquecer de dar atenção ao contraditório, mas talvez não seja preciso dar permanente contraditório a quem só quer atenção.
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