Quando nasci a minha cidade ainda não era uma cidade. Só três anos depois, em 1999, é que Macedo de Cavaleiros subiu na categoria administrativa. Nos últimos 10 anos, o concelho perdeu quase 10% da população, cifrando-se agora em 14 mil indivíduos, distribuídos por uma área de aproximadamente 700 quilómetros quadrados. Posto em perspectiva, temos um espaço sete vezes maior do que o concelho de Lisboa para uma população 39 vezes menor.
Torna-se assim mais simples de entender: o que domina o interior é o espaço, um enorme espaço amplo e vazio, de mato desordenado ou terrenos esparsos, herdados de geração em geração. Propriedade sem utilidade, salvas as honrosas excepções.
Crescer no interior do país é, em simultâneo, uma bênção e um fardo. Ganhar consciência do país em que vivemos todos, mesmo sem dar por isso, cultiva um sentido de urgência nas reformas por fazer, germina dentro uma chama de revolta perante as décadas de abandono sistemático. É que o abandono não é só da terra por cultivar, é sobretudo das mãos trabalhadoras que não há para cultivá-la.
Um desinvestimento de se dizer a um jovem nascido por cá que, se quer ir a um cinema com cartaz actualizado, tem de se deslocar pelo menos duas horas em viagens de carro. Ou, como mais tarde descobri, já no meu exercício profissional, quem precisar de uma mamografia apenas terá acesso ao aparelho necessário numa de duas instituições privadas. Também ter um AVC por estes lados não é a mesma sorte de quem tem um AVC num grande centro litoral, e o mesmo se poderia dizer em relação a quase tudo o resto. Prova disso, e é uma recordação que guardo agridoce e difusa, foi o dia em que uma boa mole de gente transmontana saiu à rua para exigir a permanência do helicóptero do INEM nas proximidades da cidade. É que cada um desses cidadãos sentia na pele uma luta - podemos dizê-lo sem demagogia -, pela sua sobrevivência ou, mais do que isso, pela sua dignidade.
Este afastamento do poder central condiz bem com a personalidade profunda de quem aqui vive. Um transmontano é sempre alguém que se protege e se fecha em si mesmo, com medo não se sabe bem do quê. Desconfiado, é claro, e com boas razões. Bastante teimoso, com os pés assentes, firmes, na terra que pisa. “Com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas”, como diria Torga sobre a torga.
A população mais instruída consegue emprego no terceiro sector, amplamente associado à função pública. A pulso saíram das aldeias, das viagens excessivamente longas no autocarro escolar, de adormecerem ao fim da tarde em cima da mochila e meia dúzia de livros espalhados em cima da mesa. Existe em todos os transmontanos o embalo da lareira, e o som crepitante do fogo é sempre um regresso a um certo aconchego.
Os mais novos e mais educados cedo fogem do distrito. Vão em busca do Ensino Superior em Braga, Porto, Coimbra, Lisboa. A maioria por lá fica. Se Portugal tivesse para o estrangeiro uma taxa de “fuga de cérebros” sequer aproximada da que aqui existe, já os governos teriam içado a bandeira vermelha, prontamente estimulando agressivas políticas públicas de investimento e incentivo.
Ao domingo as famílias juntam-se no largo da igreja, festivamente almoçam fora com as melhores roupas. De tarde a tristeza cai como uma neblina suave, inexorável, fresca. Ao pôr-do-sol os estudantes partem nos autocarros a abarrotar de suor, medo e uma ou outra lágrima disfarçada. As mães são o pulmão dessa emoção. Abraçam os filhos como se fossem para uma guerra distante, porque vão. E a sexta-feira seguinte é uma incerteza longínqua, desconfiada.
Viajando de transportes públicos, é mais rápido chegar a Lisboa vindo de Berlim do que vindo de Bragança. O distrito é servido apenas pelos autocarros da Rede Expressos. O comboio é uma coisa que existe na cabeça dos avós, por vezes apagada pela demência. Memórias dos apeadeiros a rebentar de soldados, mães, filhos, milhões de sacos floridos de legumes. Hoje linhas abandonadas ao defunto da saudade ou reconvertidas, muito modernamente, em ciclovias daqui para nenhures.
Não se entenda este texto como um epitáfio. Aqui há gente, aqui há futuro. O ar puro e as vistas largas, a solidão das ruas quando morre Agosto e toda a emigração se dissolve, a par dos incêndios (crónicos, inevitáveis). Os velhos regressam para os lares ou para a beira do lume, os putos fazem bolas de fumo no caminho da escola. Uma vida normal.
As eleições autárquicas são sempre momentos de agitação. Em cada cartaz reconheço caras familiares. Toda a gente se conhece de certa forma, toda a gente é sempre filha de alguém. Alguns chamariam provincianismo a esta noção de comunidade.
Em 230 há 3 deputados eleitos pelos cidadãos do distrito. Há muitos outros a falar sobre a regionalização, a descentralização, o desenvolvimento rural, a “interioridade”. Até hoje, não se sentem acções à altura das palavras. Talvez um dia.
Comentários