Embora ambos falem constantemente e digam coisas opostas ou ligeiramente diferentes, os dois comparsas que tomaram o Governo dos Estados Unidos têm agido com rapidez, enquanto o Congresso não dá sinais de vida (excepto para jenuflectir perante o Rei), e a Justiça é demasiado lenta e complexa para retorquir a tempo, limitando-se a adiar as decisões da dupla uma ou duas semanas.  As duas casas do Congresso têm maioria republicana. A Justiça é formada por muitos tribunais, com muitas instâncias, e as decisões finais, ainda mais lentas, são do Supremo Tribunal, que por acaso também é trumpista. Cheque-mate para o reino de Mump.

Já aqui falei, com certeza, da possibilidade técnica da democracia norte-americana tropeçar nas pedras do caminho, que os subscritores da Constituição de 1787 não podiam prever, e também dos livros de ficção em que essa situação se desenvolve, em especial “It can’t happen here” (“Não pode acontecer aqui”), de Sinclair Lewis. Publicado em 1935, o livro relata a tomada legal do poder pelo Presidente Berzelius "Buzz" Windrip, um tipo simpático que promete ajudar toda a gente realizar o tal “sonho americano”. Os “pais fundadores” de 1787, homens, republicanos liberais e burgueses, estavam a escrever o primeiro conjunto de normas para criar um país igualitário (uma democracia parlamentar, diríamos hoje), ainda antes da Constituição francesa de 1791, e portanto não só não podiam prever todas as aleivosias que os políticos iriam congeminar para tomar o poder, como a evolução social e tecnológica até hoje. Só para dar um exemplo, a chamada “Lei dos Direitos Civis” que dava plena igualdade aos negros, só foi assinada em 1964!

Saltando milhares de páginas desta conturbada história, chegamos assim ao momento presente, em que um indivíduo que tem todos os defeitos apontados pelas mais diferentes religiões e problemas psicológicos há muito detetados pelos especialistas, consegue, por razões que serão discutidas para o resto dos tempos, chegar legalmente a Presidente dos Estados Unidos, com o apoio dos outros dois órgãos do Poder, o Legislativo (maioria no Congresso) e Judicial (maioria no Supremo Tribunal). (Apenas as instâncias judiciais intermédias e o quarto poder, a comunicação social, conseguiram até agora escapar à hecatombe mumpista).

Os efeitos primeiros, principais, adjacentes e subservientes no Mundo Inteiro desta nova Revolução Americana só serão calculáveis ao longo do tempo. Tal como a queda do Império Romano, esta falência democrática tem  situações que já notamos na semana passada, mas há outras que só sentiremos na pele daqui a muito tempo, quando Musk e Trump tiveram desaparecido do mundo dos vivos, barulhentos e poderosos.

Com certeza que os leitores do SAPO24, que não vivem debaixo duma pedra (sem wi-fi...) já sabiam disto tudo, uma vez que está a acontecer em tempo real. Mas o mais interessante é que, ocorrendo novidades diariamente, é impossível saber todas e ter consciência dos efeitos posteriores da maioria. Para simplificar, podemos dividir os factos mumpistas em dois grupos distintos: os praticados por Musk e seus próximos, que se dirigem sobretudo à esfera interna do país, e os actos de Trump que, embora apresentados no país, têm imediatas implicações internacionais. Claro que, sendo os dois unha e carne, os efeitos por vezes misturam-se, sobretudo porque usam uma técnica chamada “flood the zone” (inundar o espaço) que consiste em fazer tanta coisa ao mesmo tempo que as pessoas são afetadas mesmo antes de se aperceber. 

Não temos tempo, nem espaço, nem energia, para falarmos de tudo - é essa a ideia deles, lembra-se? Mas vamos ficar por algumas coisas que nos tocaram mais.

Trump foi eleito, como sabemos. Musk, um cidadão da África do Sul, que por acaso é o homem mais rico do mundo, foi escolhido por Trump, sem qualquer aprovação de outrem, para dirigir um departamento a nível presidencial, DOGE (Departamento de Eficiência Governamental), cuja função é destruir o aparelho do Estado. A desculpa para essa destruição é que o dito aparelho custa muito caro e podiam fazer-se economias de triliões de dólares, economias essas que compensariam a redução da receita dos impostos dos mais ricos, que vão ser reduzidos. (Se não percebeu bem, leia outra vez.)

A maneira como essa destruição está a ser feita é assim: Musk e um grupo de miúdos (vinte a trinta anos) entraram pela porta dentro do Departamento dos Serviços de Administração Geral, GSA, mandaram toda a gente para a rua (literalmente) pediram os códigos de acesso aos computadores, sentaram-se nos postos e começaram a brincar com o código fonte dos programas e a copiar os ficheiros. (Convém lembrar que este serviço paga aos funcionários públicos e tem encargos anuais de 61 mil milhões de dólares) Enquanto os seus rapazes faziam o trabalho, Musk pegou no telefone e deu ordens à C.I.A. para mandar para a Casa Branca um lista descodificada de todas as contratações recentes, para se ver se uns despedimentos reduziriam as despesas.

Em outra intervensão, desta vez de Trump, este exigiu que os serviços administrativos da NASA, parassem o que estavam a fazer e se dedicassem a eliminar todos os pronomes de e-mails e outros formulários que contêm termos ofensivos como “diversidade”, “povos nativos” ou “mulheres na liderança”, isto depois do presidente assinar uma ordem executiva, que exige às agências "acabar com o financiamento federal da ideologia de gênero", ou seja, programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI).

O pessoal do DOGE tem estado a dormir nas instalações dos GSA porque não há tempo a perder, mas Musk vai passando pela Casa Branca, onde tem uma coutada.  

Um caso mais grave (se é possível medir graus de gravidade) passou-se com a Agency for International Development, USAID, a famosa agência norte-americana que doa alimentos, remédios, médicos, enfermeiros e equipamento para as zonas mais pobres do mundo, e que tem um orçamento de 41 mil milhões de dólares.

O famoso colunista do Times, Nicholas Kristof,, ao escrever sobre o assunto, deu-lhe um ótimo título: “O homem mais rico do mundo rouba as crianças mais pobres do mundo”.

O caso da USAID é um dos muitos que certamente será contestado em tribunal: foi criada pelo Congresso em 1961 e é o Congresso que decide a sua dotação. (Aliás, é o Congresso que controla as despesas do país). Trump e Musk  já se tinham referido à USAID como uma “organização criminosa” dirigida por “lunáticos”.

Entre as agências mais antipáticas a Trump está, evidentemente, o FBI. Para já, demitiu seis sub-directores e fez o Congresso escolher para director Kash Patel, um indivíduo que já escreveu vários livros a criticar a organização. Enquanto Patel passava pela aprovação do Congresso, o novo sub-director pediu o nome de todos os agentes que participaram no caso do ataque ao Capitólio em 6 de Janeiro. Como se calcula, são milhares. A todos, esses e os outros, foi distribuído um inquérito para avaliar as suas opiniões políticas, o que é ilegal. Os estragos causados no FBI levarão décadas a corrigir, se tal for possível. Não é preciso lembrar que se trata de uma polícia criminal não uniformizada (semelhante em parte à nossa Polícia Judiciária) para coordenar o combate ao crime, rigorosamente apolítica e indispensável num país dividido em 50 estados, cada um com a sua polícia própria.

O número de agências federais imprescindíveis que está a ser desmantelado é tal que não podemos falar de todas, mas a ideia de que o Estado precisa de ser reduzido para gastar menos não faz exceções. Já se sabe de interferências no Serviço Meteorológico e na extinção do Ministério (Federal) da Educação.

Quanto à situação internacional, não sei se lhes diga, se lhes conte. Vamos escolher apenas dois casos mais na berra, a Ucrânia e Israel, porque são muito diferentes e terão desfechos diferentes. No caso da Ucrânia, já está decidido (hoje, sábado) que haverá uma reunião entre representantes da Federação Russa e dos Estados Unidos para propor um plano de paz. Os americanos já disseram, de antemão, que a Ucrânia terá de ceder território, não poderá ter tropas estrangeiras estacionadas no que sobrar, e, evidentemente, não pode entrar para a NATO. Quer dizer, o Secretário de Estado, Marco Rubio, numa reunião da NATO a decorrer em Bruxelas, já deu aos russos o mínimo que eles podem exigir… 

Mas o mais chocante é que nem a Ucrânia nem a União Europeia participarão das negociações. Terão apenas de aceitar ou não o resultado. Muitos comentadores lembraram-se da posição de Chamberlain, o primeiro ministro inglês que em 1938 aceitou que Hitler invadisse a Checoslováquia a troco de não ter mais “ambições territoriais” na Europa. A partir daí a posição ficou conhecida por ser uma falsa partida: dar uns nacos ao invasor, à espera não queira mais. É o que Donald vai fazer com Vladimir.

Neste caso da Ucrânia, com certeza que não será possível evitar algumas perdas, uma vez que a Europa não tem nem exército nem equipamento e os Estados Unidos armados em Reino da Mumpia não irão ajudar em nada. Aliás Trump já disse várias vezes, de diferente maneiras, que não se interessa com o que possa acontecer à Ucrânia - nem à própria Europa.

Um caso rocambolesco é o da Palestina. Já todos leram os sonhos de Trump sobre a “Riviera de Gaza”, não preciso de elaborar sobre o assunto. O facto de ser uma solução impossível - completamente impossível - não o tem impedido de elaborar sobre o assunto, perante o escândalo geral. Netahnyu, o primeiro-ministro israelita a quem interessaria uma situação assim, que prolongasse a guerra para sempre, não deixou de mostrar em público a sua surpresa - estava ao lado de Trump, em Washington - e disse apenas que era um plano “revolucionário” e “muito criativo”. Todos os estados árabes - todos os estados do mundo, na realidade - acharam a ideia surreal, típica de um pato-bravo que só vê oportunidades imobiliárias onde os outros vêm princípios vários. 

David Remick, no “The New Yorker” a propósito destes assuntos, lembrou uma teoria de Maquiavel que teria sido dita a Nixon por Haldeman: “Há alturas em que é muito inteligente fingir-se louco”. Bom esta teoria não serviu a Nixon, que não conseguiu convencer ninguém de que era louco, mas funciona perfeitamente com a dupla Trump/Musk. E, como se costuma dizer, ainda a procissão vai no adro....