Connosco estiveram pessoas refugiadas e requerentes de asilo, que contaram como foram obrigadas a sair das suas casas, a deixar tudo o que conheciam e a partir para a incerteza. Toda a incerteza se torna menos assustadora do que a certeza da morte, da tortura, de violações, de maus-tratos e atentados à integridade física. Uma mulher obrigada a sair do Sudão, por causa da guerra. Um homem que foi prisioneiro de consciência em Angola, resistiu a 433 dias numa cela e agora pode fazer ativismo em liberdade. Outro ainda que chegou enquanto refugiado e é atualmente cidadão português e que ajuda outras pessoas refugiadas e requerentes de asilo na sua chegada e integração — um papel tão importante, face à inexistência de mecanismos e políticas que dêem uma reposta às reais necessidades de quem chega. Histórias de resiliência, de esperança, de superação e coragem. São histórias de quem viu os seus direitos humanos violados, de quem se sentiu em perigo iminente e teve, por isso, que embarcar numa perigosa jornada em busca de segurança e dignidade. A esperança era de as encontrar no nosso país. Todos repetiam “obrigado, Portugal”.
As 1.500 velas assinalaram as cerca de 15.000 assinaturas do nosso Manifesto ‘Eu Acolho’. Este é um apelo ao governo português para que seja um ator de relevo, liderante na União Europeia, para a criação e adoção de políticas migratórias e de asilo concordantes com os compromissos internacionais de direitos humanos aos quais a União se vinculou (e assim também os seus Estados). Estas políticas precisam de abarcar três dimensões.
Por um lado, são necessários mecanismos que permitam aos refugiados e requerentes de asilo chegarem à Europa sem serem obrigados a travessias perigosíssimas em que veem os seus direitos humanos constantemente violados durante o caminho. Atualmente, estas pessoas colocam-se em perigo, a si e às suas famílias. Em tantos casos, acabam por ser vítimas de redes de tráfico de seres humanos, por ficar presos em centros de detenção sem quaisquer mecanismos de proteção, ou mesmo por morrer. Esta realidade tem que mudar.
Por outro, é preciso que os Estados compreendam a importância da partilha de responsabilidades. Itália, Grécia, Malta e outros países às portas da Europa têm ficado com uma grande fatia da responsabilidade na chegada destas pessoas, e os restantes Estados respondem com números que dizem poder acolher – em tantos casos insuficientes, noutros uma resposta ad-hoc. É imperativo que haja uma justa distribuição desta responsabilidade e que esses critérios estejam bem definidos à partida. Além disso, é importantíssimo que os Estados compreendam que o acolhimento não é um encargo, é um benefício. São vários os estudos que demonstram os benefícios que o acolhimento e integração de refugiados traz para os países e para as comunidades, quer sociais e demográficos, quer de dinamização económica e competitividade, e ainda de dinamização cultural e comunitária. Por isso, os Estados têm de compreender as suas obrigações e as vantagens que a partilha de responsabilidades lhes pode trazer.
Em terceiro lugar, no desenvolvimento de estratégias e programas que garantam um melhor acolhimento e integração, que permitam a estas pessoas recomeçar a sua vida com dignidade e apoio. Estamos a falar de aulas de português (ou outra língua do país de acolhimento, claro). Em Portugal, por exemplo, há aulas de português para refugiados, mas há melhorias a fazer. Temos famílias que são obrigadas a fazer centenas de quilómetros para poderem assistir às mesmas (numa fase em que ainda não falam bem português, esta viagem em transportes públicos será ainda mais desafiante); ouvimos relatos sobre como os cursos não estão adaptados, como acabam repentinamente, como, por vezes, algumas aulas não acontecem sem que exista um aviso prévio (pelo que as pessoas fizeram as centenas de quilómetros para não terem a aula). Estamos a falar de ajuda na procura de empregos dignos e adequados às competências de cada pessoa, estamos a falar de programas de integração comunitária, de programas de formação aos técnicos e técnicas locais, que acompanham as famílias, que sejam transversais e definidos a nível nacional... Os exemplos daquilo que pode e deve ser feito para melhor acolher e integrar as pessoas refugiadas são muitos.
Pensemos: quando convidamos alguém para nossa casa, para a fazermos sentir bem-vinda não podemos apenas deixá-la entrar e nem com ela falar. No acolhimento a refugiados, com as devidas diferenças, funciona um pouco da mesma forma: estejamos disponíveis para fazer o melhor no acolhimento e integração a estas pessoas.
Infelizmente, a Europa parece pouco ter aprendido com os últimos anos, e ainda não se centrou nas soluções. Está atualmente em discussão o novo Pacto de Migrações e Asilo na União Europeia, mas este não traz as necessárias respostas ao problema de solidariedade existente. Quando devia apresentar uma nova abordagem para facilitar a segurança das pessoas, o que parece fazer é dar uma nova forma a um sistema que tem falhado há anos, com consequências terríveis. Parece projetado para aumentar os muros e reforçar as vedações, e nada faz para aliviar o sofrimento de milhares de pessoas presas em campos nas ilhas gregas ou em centros de detenção na Líbia. É imperativo que se melhorem as propostas e que se centrem no que mais importa: a proteção das pessoas e dos seus direitos humanos.
Talvez este contínuo falhanço aconteça porque o foco tem sido errado: a União Europeia e os seus Estados têm feito passar a ideia de que estamos a atravessar uma “crise de refugiados”, quando a crise é outra, uma crise interna de solidariedade, para com as pessoas que chegam em busca de segurança e entre os próprios Estados.
Quanto a Portugal, quando naquela noite ouvimos repetidamente o agradecimento ao país, sentimos também gratidão a estas pessoas, pelo seu reconhecimento do que fizemos. Mas com o olhar no horizonte do muito que devemos e podemos ainda fazer, pois são infelizmente tantas mais as histórias que ainda não alcançaram este final feliz.
Que um dia muitas mais pessoas possam dizer “Obrigado, Portugal. Obrigado, Europa.”
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