Até ao ano passado, poucas pessoas fora da Rússia sabiam da existência de Yevgeny Viktorovich Prigozhin. No mundo, o seu nome circulava apenas pelos serviços de informações de vários países, como sendo o possível chefe duma organização militar clandestina, o Grupo Wagner. Em Setembro, finalmente, Prigozhin reconheceu publicamente o seu papel e até foi publicado um vídeo onde recrutava criminosos nas prisões russas para as suas “forças especiais” combaterem na Ucrânia.
A partir daí, avaliam os analistas, tem aumentado cada vez mais a sua influência junto de Vladimir Putin, de conselheiro informal para influenciador, reclamando da brandura do seu chefe. Talvez sejam boatos - sabe-se que Putin gosta de mandar e não aprecia conselhos -, mas vale a pena conhecer a história pouco edificante deste homem nascido pobre, de mãe solteira, em Leninegrado, em 1961.
Prigozhin é um homem baixo, careca, com ar de negociante. Nem os fatos caros e os guarda-costas que sempre o acompanham lhe dão figura de chefe mafioso. Fala incisivamente, vê-se que sabe o que quer. Pelos vistos, sempre soube.
Teve a infância difícil duma sociedade altamente burocrática e hierarquizada, onde os elevadores sociais estão praticamente restritos aos poucos escrupulosos. Na adolescência tentou fazer uma carreira desportiva em esqui livre (cross country), ajudado pelo padrasto, mas não conseguiu resultados promissores. Virou-se para actividades menos saudáveis, tanto que em 1979 apanhou uma pena suspensa por roubo e fraude. Dois anos depois foi condenado a uma pena efectiva de doze anos, mas ao fim de nove anos, em 1990, beneficiou de um indulto.
Ainda com o padrasto, iniciou um negócio de carrinhos de cachorros quentes. Deviam ser muito bons, ou os russos gostam muito de cachorros quentes, porque o negócio prosperou formidavelmente, a ponto de entrar como sócio minoritário numa cadeia de super-mercados de São Petesburgo. A seguir, com mais dois sócios, entrou no sector dos casinos, mas esse empreendimento não correu tão bem e resolveu voltar-se para a restauração. Isto em 1997, para se ter uma ideia do ritmo dos negócios.
O seu restaurante flutuante, ao estilo francês, ganhou fama tão rapidamente que em 2001 serviu um jantar de Estado com Putin e Chirac, o Presidente francês. Putin gostou dele, celebrou um aniversário no restaurante, e em 2003 Prigozhin já tinha uma cadeia em várias cidades e podia considerar-se amigo do Presidente da Federação Russa. Ficou conhecido como o “Chef (cozinheiro) de Putin”.
Uma amizade valiosa, sem dúvida. A sua empresa, Concord Catering, fez contratos de milhões de rublos para fornecer refeições às escolas e departamentos governamentais, acabando por produzir as rações de combate do exército russo a partir de 2012.
Seguindo um padrão que agora reconhecemos como típico do putinismo, os enormes lucros de Prigozhin implicavam alguma ajuda ao aparelho político. Assim, começou a financiar uma organização conhecida como Glavset, cuja função é espalhar desinformação nos Estados Unidos através da Internet; uma “troll farm”, como se costuma chamar e este tipo de actividade. Os serviços norte-americanos identificaram um movimento intenso da Glavset durante as eleições de 2016 - a favor de Trump e contra Hilary, evidentemente.
A participação de Prigozhin no Grupo Wagner é outra história - surpreendente, aliás, pois com certeza há uma distância entre servir comida estragada a colegiais (segundo Navalny, opositor do regime, houve milhares de casos de desinteria nas escolas) e dirigir assassinos no estrangeiro.
O Grupo Wagner foi fundado em 2014 por Dmitriy Utkin, um oficial do GRU, (sigla do Directório Central do Quartel General das Forças Armadas). Tudo indica que a saída de Utkin do comando de espionagem e contra-espionagem da Federação Russa foi organizada precisamente para criar esta força militar, que tem características especiais; não fazendo parte das forças armadas - na realidade nem existe oficialmente - pode efectuar operações “sombra”, que não comprometem a Rússia internacionalmente nem obedecem às leis humanitárias da guerra. (Referimo-nos à Convenção de Genebra e a outros tratados que são usados quando se quer acusar o inimigo de massacres, violações, bombardeamentos de fósforo e outras actividades menos limpas).
O nome tem uma explicação extraordinária (mesmo!): Wagner era o compositor favorito de Hitler. O Grupo usa uma simbologia para-nazi e tem deixado sinais nazis em muitos teatros onde opera, mas realmente não se pode dizer que seja nazi; os seus objectivos são os interesses da Rússia de Putin, quando esses interesses exigem uma acção mais musculada. Não é uma organização ideológica, se considerarmos que o putinismo não é uma ideologia, mas antes a apropriação de várias teorias fantásticas sobre o destino da Rússia no mundo. (Sobre o Império Euro-Asiático já falamos noutra ocasião.)
Depois de sair do GRU, Utkin ainda se meteu em várias actividades, como uma empresa de segurança, uma brigada das Spetsnaz (as forças de elite russas) e uma organização militarizada obscura conhecida como o Corpo Slavónico, que teve um mau encontro com uma força curda/americana algures entre a Síria e o Iraque. Pouco se consegue saber sobre estas entidades e actividades, mas o que interessa é que em 2014 eles aparecem em operações na Ucrânia, depois de terem efectuado missões mais pequenas (mas não menos bárbaras) noutros países. Em toda a parte onde surge, há histórias de violência inaudita não só contra os “inimigos”, mas dentro da própria organização. Costumam fuzilar os oficiais desobedientes, por exemplo. Houve avistamentos de membros do grupo em países africanos, mas é difícil distinguir mercenários nas terras-de-ninguém deste planeta sempre em conflito.
Durante muito tempo especulou-se que o verdadeiro líder do grupo não seria Utkin, que era apenas o chefe operacional no terreno. Quem pagava, apoiava politicamente e fazia a indispensável ligação com o Kremlin era Prigozhin. E Prigohzin sempre negou, com o seu ar de civil incapaz de incivilidades.
Até que aconteceram duas coisas: primeiro, o vídeo linkado acima em que apela aos detentos num estabelecimento prisional, prometendo-lhes a liberdade se sobrevivessem seis meses no teatro de guerra; segundo, uma afirmação do próprio, que significa um maior ascendente sobre Putin e desmonta a desinformação de que o grupo nada tem a ver com as operações militares oficiais da Federação Russa.
E pronto, aqui está uma carreira bem sucedida para (não) contarmos como exemplo aos nossos filhos, quando não sabem como subir na vida.
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